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Ficção

Porque tudo é dor, meu chapa

Benzina, aguarrás e fuego na buemba. É desse material que os sonhos são feitos. Pelo menos os meus, nos últimos nove ou oito meses. Tudo piorou nesse meio tempo. Meus limites foram transpostos com fúria crescente. Os índices estavam caindo e minha personalidade, descompensando. Precisava de um estímulo para manter o equilíbrio e, por não poder parar, a melhor solução foi recorrer aos avanços da ciência para metabolizar angústia e stress. Foi daí que resolvi responder o anúncio daquela empresa. Um nome sugestivo: Zen Delivery.

O serviço anunciado: no interior da mente, yin e yang controlados por aditivos. Havia uma quantia a ser paga para quem se deixasse submeter aos tratamentos químicos que expandiriam a mente, consciência e humor. Eu havia visto o comercial da empresa num catálogo de auto-ajuda para empresários de sucesso. Um futuro melhor para meus impulsos naturais: eram o que anunciavam. Para ser sucesso, eu havia desenvolvido uma necessidade orgânica de estar aditivado.

Foi por isso que me ofereci para estas experiências. Há oito meses. Acabei de receber um demonstrativo completo da empresa, junto com meu histórico e fichário da polícia, me colocando limpo outra vez. Pagam bem, me mantêm acordado e tinindo quando é necessário e um pouco além. Me fizeram novamente um homem completo – feio, forte e formal. E faz bem estar novamente com ficha limpa. Ah, sim. Esse é o pequeno contratempo, o preço a pagar pelo mundo maravilhoso. Eu havia sido preso, há três semanas, por espancamento. Esqueci um detalhe que os homens de branco daquela empresa adoraram: estávamos falando em potencialidades estimuladas, não somente de prazer e alívio. O tratamento da Zen Delivery, vez ou outra, mandava pros picos minha agressividade natural, aquela resultante de comandos e estímulos que colocam o homem na linha instintiva do animal. Daí, era somente selvageria.

Numa dessas que acabei preso.
Estava num bar, pronto pra exercitar minha confiança e auto-estima, olhando de vez em quando para uma garota que conversava, sem muito interesse, com dois babacas. Enjoado da lerdeza daquele jogo que parecia não render nada, resolvi ir ao banheiro. Estava me sacudindo quando os dois apareceram, querendo tirar satisfação. Esquivei do primeiro soco e fui revidar. Apaguei. Somente voltei a mim quando era agarrado por cinco pessoas e tirado, à força, do banheiro. Disseram que eu cheguei a ser requintado. Que eu havia quebrado os braços dos dois. Que o menos ferido teve a mandíbula e todas as costelas quebradas, à base de socos e chutes.

Com essa composição química correndo em minhas veias, por mais que eu possa aparentar serenidade, há um mar de lava fazendo 100 km em 2 segundos aqui dentro. Melhor não mexer comigo. É vitamina e faz bem pros dentes – principalmente dos outros. Mas o que importa é que estou solto de novo nas ruas. Talvez faça parte da continuidade de uma das tais experiências em que andei me metendo. Os homens de branco avisaram que poderiam acompanhar de perto o “desenvolvimento dos efeitos dos medicamentos estimulados por situações cotidianas em campo aberto”. Voyeurismo: talvez alguém esteja me observando nesse exato momento. Me sinto pronto pra atacar, como se fosse compelido a isso. Um desejo que surge no estômago, vai se alimentando das excrescências que vejo, ouço, cheiro e tateio ao redor, sobe até a garganta e se espalha pelo corpo, como um câncer que quer ser expelido.

Bem na hora do almoço.
Resolvo tirar o dia de folga em um parque próximo. Não posso deixar de acompanhar o bate-boca de duas pessoas perto de mim. O casal não pára de discutir, bem à minha esquerda. Eu não consigo sair do lugar. As vozes vão ganhando corpo na minha cabeça, indo em direção contrária à torcida organizada na minha adrenalina. Campainha de Pavlov. Me contraio por inteiro. E na seqüência, apago.

Quando dou por mim novamente, embaixo do meu braço direito, há um rosto. Ou melhor, algo que um dia foi um rosto de um homem. Agora era uma massa roxa e inchada. Batem uns flashes. Estou empurrando a mulher, que grita como se cantasse uma ópera, e soco a boca do estômago do homem. Ele se curva e meto uma cotovelada na nuca, soco na boca e chute no joelho. Ele cai, a mulher berra e tenta avançar pra cima de mim, mas ganha uma cotovelada no estômago e um chute na cara. O cara tenta se levantar e é aí que vôo por cima dele, prendendo os braços com meus joelhos e travando seu pescoço com o braço direito. A canhota vai e volta na cara dele umas quinze vezes, em golpes secos e rápidos. E daí que eu volto à sintonia. A mulher soluça, mas me olha cúmplice.

É impressão minha ou está tudo ficando quente?
Melhor não esperar uma resposta. Fugir. Sim, sim, solução acertada. Correr pra longe e deixar tudo voltar a fluir – dá pra sentir a química se ajeitando. À medida que corro, vou derrubando, empurrando e me jogando nas pessoas que estão no caminho. Um mendigo, um grupo de adolescentes espinhentos, padres, cafetões em trânsito, meninas com aparelhos nos dentes e beatas que quase se oferecem para sessões de tortura. O que interessa é ir pra bem longe daquele casal. Métodos seculares de suplantação mostram que somente com tensão extrema nos pólos é que se tem o equilíbrio. E esse lado aqui esteve parado demais. Faltava alimento. Palavra mágica, porque minhas energias in the box parecem que estão se esgotando. Um padre se benze e eu tento saltar um muro, mas meu estômago dói e eu só tenho forças pra gritar. Fome. Minha fome. De volta, socando meu corpo inteiro, de dentro pra fora.

Eu estou à procura de salvação. Tudo o que eu queria. Nada mais. Será que os jornais de amanhã irão me demonizar – Mea culpa, mea culpa e… Uma visão ! No burburinho que vai diminuindo na minha cabeça, no fogo que começa a queimar minha carne, fui distinguir o que estava procurando. Agora eu vi. Ele está ali – reconheço porque está usando a mesma roupa que os homens de branco usam. Ele está aqui, dá a impressão de que sempre esteve, e se destaca pra mim – só pra mim, eu sei – no meio daquele bolo de carne. Dá pra definir seu rosto, sentir seu cheiro asséptico e, com o que resta de visão, ler seus lábios murmurando – pra quem – meu veredicto.
Combustão espontânea. Fim da experiência. Buscar novo espécime.

 

Jorge Rocha nasceu em Campos, RJ, e mora em Belo Horizonte, MG. Jornalista e professor universitário, é editor do site Patife.

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