Quem adentrar casualmente o Espaço Interativo do Centro de Biotecnologia Molecular Estrutural (CBME) pode acabar achando que foi parar numa dimensão paralela, na qual a fabricante de brinquedos Lego passou às mãos de uma diretoria formada por biólogos, bioquímicos, físicos e químicos. Para qualquer lado que se olhe há uma paisagem multicolorida de peças de plástico, unidas em estruturas elegantemente complexas. No entanto, em vez de carros, casas ou fortalezas, as pecinhas que enchem o casarão neoclássico no centro de São Carlos formam as folhas beta e as hélices alfa das proteínas, ou a famosa dupla hélice do DNA. Os modelos coloridos têm uma semelhança impressionante com as simulações computacionais dessas moléculas – com a vantagem óbvia de que não é preciso nenhum mecanismo de realidade virtual para que se possa manipulá-los.
A versão Lego das biomoléculas é apenas uma das estratégias da equipe do CBME, sediado em São Carlos, para dar um sabor lúdico ao estudo dos constituintes básicos dos seres vivos. Num jogo ao estilo do clássico Banco Imobiliário, por exemplo, troca-se a velha aquisição de imóveis pela tarefa de montar uma proteína, aminoácido por aminoácido. Para os saudosos das cartas do Super Trunfo há uma versão da brincadeira também dedicada a essas unidades formadoras das moléculas protéicas. E há mais células virtuais interativas, DVDs com conteúdos atuais sobre biotecnologia e outras ferramentas do tipo a caminho, conta a professora Leila Beltramini, coordenadora de difusão do CBME. “Estamos trabalhando agora com o desenvolvimento de um modelo desse tipo para os aminoácidos, do qual já temos um protótipo”, diz ela.
Criar mais essa ferramenta lúdica provavelmente não vai ser um grande problema para Leila, acostumada a tocar vários projetos ao mesmo tempo. “Eu tenho vários pseudópodes”, costuma brincar a pesquisadora do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC/USP), comparando-se aos microorganismos que estendem projeções de sua membrana para todos os lados. Além, obviamente, de seu trabalho de pesquisa de bancada – ela estuda a estrutura/função e aplicações biotecnológicas de lectinas de plantas – e do projeto do Lego biomolecular, Leila também coordena as avaliações dos recursos didáticos desenvolvidos
e numerosas oficinas de capacitação que sua equipe ministra a professores e alunos de nível universitário, professores do ensino médio e fundamental dentro e fora do estado de São Paulo. Esta área de pesquisa em educação e difusão de ciências foi iniciada graças à implantação dos Cepid pela FAPESP, ressalta a professora Leila.
Dos raios X ao plástico
Não é de estranhar que o CBME tenha dedicado tanta atenção à modelagem de moléculas orgânicas. Afinal de contas, seus 21 pesquisadores membros – oriundos da USP de São Carlos, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas (LNLS), e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – têm como principal objetivo o design racional de moléculas para aplicações médicas e biotecnológicas, e a função dos compostos orgânicos está diretamente ligada à sua forma. Um projeto coordenado pelo diretor do centro, Glaucius Oliva, da USP de São Carlos, tenta usar a visualização estrutural das proteínas como ferramenta para projetar drogas melhores contra a doença de Chagas, a esquistossomose e a leishmaniose; outro, capitaneado por Heloísa de Araújo, da UFSCar, investiga a estrutura molecular de venenos de serpentes, que costumam ser fonte de aplicações terapêuticas interessantes. Ao longo do trabalho, Oliva e seus colegas já conseguiram projetar inibidores derivados de plantas da flora brasileira, os quais, in vitro, impediram a alimentação do parasita de Chagas.
A equipe do centro, no entanto, precisou criar praticamente do zero os kits para montagem de biomoléculas. No caso das proteínas, por exemplo, a necessidade de modelos ao mesmo tempo práticos e realistas nasceu na sala de aula, em meio às tentativas de explicar a intrincada estrutura tridimensional protéica, normalmente visualizada a partir de padrões de difração de raios X. Richard Garratt, também do Instituto de Física da USP de São Carlos, conta que costumava usar modelos que mostravam átomo por átomo. “Todo mundo dizia que entendia. Aí eu dizia: ‘Bom, se entenderam, então façam’, mas aí a coisa se complicava. Afinal, esse troço se enovela no espaço tridimensional. Se a gente fosse fazer átomo por átomo, ia levar o ano inteiro para terminar, ia ficar um trambolho e não ia ajudar em nada para entender”, diz Garratt.
Veio então a idéia de se inspirar na aparência dos modelos computacionais de proteínas, que mostram estruturas mais gerais das biomoléculas de forma visualmente característica. Aproveitando esse alfabeto visual, a equipe projetou peças específicas para representar a torção da cadeia de aminoácidos das hélices alfa ou o aspecto menos retorcido e “pregueado” das folhas beta, além de alças que pudessem ligar hélices a folhas. O sistema de peças é versátil o suficiente para que a escala de representação varie um pouco, possibilitando tanto a representação de peptídeos (mais modestos em tamanho) quanto a de proteínas grandes. O resultado tem um apelo visual impressionante, como no caso do modelo da famosa GFP, a proteína fluorescente verde que é normalmente usada como “etiqueta” em experimentos envolvendo transferência e expressão de genes.
Enquanto o trabalho com os modelos protéicos ficou mais a cargo de Garratt, Leila concentrou seus esforços nos modelos do DNA e sua molécula-irmã, o RNA. Os princípios, nesse caso, foram parecidos: peças de aparência característica são usadas para representar o par fosfato-açúcar (mal comparando, equivalente ao “corrimão” da escada torcida que o DNA forma) e as bases nitrogenadas adenina, timina, guanina, citosina e uracil. Para simular a complementaridade entre as bases (já que a adenina só pode se unir à timina e a guanina, à citosina), os pesquisadores criaram encaixes de dois orifícios para a primeira dupla e de três orifícios para a segunda. Assim, fica claro o caráter específico das ligações de hidrogênio que unem os pares de bases. Quando uma cadeia de tamanho apreciável fica pronta, é possível usar a maleabilidade do plástico para produzir uma dupla hélice de dar inveja ao modelo montado por James Watson e Francis Crick em 1953, quando a dupla de cientistas elucidou a estrutura do DNA.
Os recursos didáticos complementam-se conceitualmente e podem ser utilizados nos diferentes níveis de ensino (do ensino básico ao pós-universitário), auxiliando no entendimento das estruturas moleculares e na função que estas desempenham nos seres vivos. Planejados para produção em larga escala, esses materiais alcançaram escolas e universidades, foram avaliados quanto à eficiência no processo ensino/aprendizagem de estudantes de graduação e pós-graduação, professores e alunos do ensino médio. Os resultados foram extremamente positivos, tanto pela facilidade de manipulação e aplicabilidade didática quanto pelo conteúdo na aquisição do conhecimento específico. Até pelo nível diferente de complexidade na montagem, o kit Construindo modelos topológicos de proteínas tende a ser um desafio para estudantes de graduação e pós-graduação. O kit Construindo as moléculas da vida é utilizado desde as últimas séries do ensino fundamental até a pós-graduação, pois com ele é possível entender desde a estrutura do DNA até conceitos mais complexos relacionados aos genes e processos de transcrição (produção de moléculas de RNA mensageiro) e de tradução (síntese de proteínas).
Explicadas desse jeito, as soluções usadas para cada tipo de molécula parecem simples, mas o processo para chegar até elas foi longo e trabalhoso. Por sorte, o projeto passou por uma longa série informal de revisão por pares ao ser apresentado à comunidade científica durante as reuniões anuais da Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq) e também se beneficiou dos comentários de professores que poderiam usá-lo como apoio didático.
“A produção ainda é praticamente home-made“, explica Leila, contando que as peças são produzidas, a partir dos moldes projetados pela equipe, por uma máquina injetora do Centro de Divulgação Científica e Cultural (CDCC) de São Carlos, que se localiza ao lado do Espaço Interativo do CBME. Quando o projeto dos aminoácidos ficar pronto, os interessados poderão montar toda a cadeia da síntese protéica, do DNA à transcrição em RNA e à tradução em proteína ludicamente (um modelo de ribossomo em plena síntese protéica, com RNAs mensageiros e de transferência e aminoácidos sendo montados, já pode ser visto no Espaço Interativo).
O passo seguinte ao desenvolvimento dos kits – colocar a ferramenta na mão de possíveis interessados – envolveu trabalho árduo em várias regiões do país. Inicialmente com verba de R$ 30 mil fornecida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e depois por conta própria, Leila e seus colegas travaram contato com instituições que poderiam servir como multiplicadoras. Assim surgiram núcleos de educação e difusão de biologia estrutural e biotecnologia em locais como as universidades Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), em Toledo, Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Federal do Ceará (UFC). Nesta última, além de utilizado na universidade, o material é levado para escolas do ensino médio, pela professora Ana Lúcia Freitas, do Departamento de Bioquímica da UFC. Em geral, o CBME envia alguns de seus membros para ministrar cursos de capacitação para professores e alunos das universidades e também para professores do ensino médio das regiões em questão, na ocasião da implantação dos núcleos parceiros.
Além disso, museus de ciência como o Espaço Ciência Viva, no Rio de Janeiro, e o Museu de Microbiologia do Instituto Butantan, disponibilizam os kits para seus visitantes. “Ministramos um curso para professores sobre novas ferramentas para o ensino de microbiologia, e os interessados podem adquirir o kit de DNA em nossa lojinha”, conta a bióloga Glaucia Colli Inglez, coordenadora do Museu de Microbiologia do Butantan, que também ajudou na montagem do Espaço Interativo do CBME em São Carlos.
Faça você mesmo
No contato com os professores e alunos de ensino médio, a preocupação da equipe do centro é não se restringir ao conteúdo básico da biologia molecular, mas também ressaltar o próprio método científico. Um dos momentos mais interessantes dos cursos de capacitação, por exemplo, é quando os modelos à la Lego ficam de lado e os participantes aprendem a extrair DNA de verdade.
“Nós não costumamos dar um protocolo pronto para eles”, explica Leila. Usando como fonte de DNA cebolas ou morangos, quem participa é levado a raciocinar sobre a estrutura das células. Como, por exemplo, o fato de que as membranas celulares têm gordura em sua composição. “Aí começamos a questionar com o pessoal: bom, se tem gordura ali, será que podemos usar um detergente para rompê-la? Mas será que se pode simplesmente usar o detergente ou é preciso macerar o morango antes? Essas questões ajudam as pessoas a ver que o procedimento científico não cai do céu”, diz a pesquisadora. Para os professores que participaram de projetos conjuntos com o CBME, a experiência é enriquecedora.
“É interessante tanto pelo contato com o pessoal da universidade quanto pela possibilidade de trazer novas ferramentas para o trabalho da sala de aula”, diz Zélia Isabel Cavallaro Alves, que ministra aulas de biologia para alunos do ensino médio na Escola Estadual Professor José Juliano Netto, em São Carlos.
Alunos do ensino médio, em grupos pequenos, também podem colocar a mão na massa nas instalações do espaço interativo do CBME em São Carlos, onde há equipamentos básicos para pesquisa e os estudantes podem realizar experimentos relacionados a biologia molecular e biotecnologia. Os estudantes que já têm interesse em seguir a carreira científica podem ser selecionados por seus professores para participar da Escola Avançada de Biotecnologia, organizada anualmente pelo professor Otávio Thiemann e ministrada por alguns pesquisadores pertencentes ao CBME, nos laboratórios de ensino do IFSC, na qual os alunos têm a chance de avançar nos estudos teóricos e práticos da área. A cada ano, entre 30 e 40 estudantes do Brasil todo participam da escola.
A estimativa é que 2.500 professores e alunos já tenham participado dos cursos ministrados pela equipe, mas o raio de ação do CBME como difusor científico é bem maior. Um jornal trimestral voltado às escolas públicas, o CBME inFORMAÇÃO, tem tiragem de 10 mil exemplares, circulando na região de São Carlos e também entre os parceiros da instituição em outras cidades e estados. Esse raio de ação tem tudo para crescer com o projeto de transformar parte do site do grupo num portal de ensino de biologia estrutural e biotecnologia, projeto este apoiado pelo CNPq. A idéia é disponibilizar farto material para download, usando software livre, como o programa Células Virtuais e a série de DVDs produzidos e desenvolvidos pela equipe. “A intenção é que isso se torne um modelo replicável, além de disponibilizar o material de difusão de outros colegas que queiram divulgá-lo ali”, afirma Leila Beltramini. Nada mais justo que a replicação, uma das chaves do funcionamento da vida, beneficie também os que querem estudá-la.
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