Durante a época de queimadas, que vai dos meses de junho a outubro, o ar da Amazônia apresenta concentrações de até 500 microgramas de partículas em um metro cúbico (m3) de ar, quando o normal para a região é de 15 a 20 microgramas por m3 de ar. É um índice de poluição muito alto. Basta considerar que a legislação brasileira indica como padrão de qualidade do ar o máximo de 50 microgramas de particulas por m3. O ar da cidade de São Paulo registra, na média, 70 microgramas/m3 e o estado de alerta é atingido aos 150 microgramas/m3. Na Amazônia, é comum serem observadas concentrações duas a três vezes maiores que as verificadas em São Paulo.
Mas não são apenas os elevados índices de partículas que comprometem a atmosfera amazônica, mas também a sua caracterização. Há uma presença muito grande no ar de partículas de metais pesados como o mercúrio e o chumbo, além de gases como o monóxido de carbono, e uma concentração de ozônio em altos níveis.
Essas informações são resultados da pesquisa realizada no âmbito do projeto temático Caracterização de Gases e Partículas de Aerossóis da Atmosfera Amazônica e seu Relacionamento com Processos de Transporte e Emissões de Queimadas , coordenado pelo pesquisador Paulo Eduardo Artaxo Netto, do Instituto de Física da USP, e financiado pela FAPESP. A pesquisa teve a duração de quatro anos e contou com a participação de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e do Instituto de Química da USP.
Paulo Artaxo explica que os aerossóis são partículas que ficam em suspensão na atmosfera e carregam metais pesados, como chumbo e zinco – substâncias que existem em concentrações pequeníssimas mas que são essenciais para o ecossistema se desenvolver – e nutrientes essenciais para a floresta, como fósforo, nitrogênio e potássio. Com as emissões das queimadas e a atividade dos garimpos, aumenta de 10 a 20 vezes a presença de metais como o mercúrio, o chumbo e o zinco na atmosfera amazônica.
“Nossa intenção foi estudar a interferência física e química das emissões das queimadas na composição das partículas naturais em suspensão e o impacto no clima e no ecossistema da região”, informa ele. “Constatamos que, naqueles meses em que ocorre maior volume de queimadas e que coincide com o período menos chuvoso, há um decréscimo de até 30% da radiação solar que incide sobre o solo. Parte dessa radiação é absorvida pelo excesso de partículas nocivas de aerossóis suspensas na atmosfera”. Recebendo menos radiação solar do que o de costume, ficam altamente prejudicados o processo de fotossíntese e o bom desenvolvimento da vegetação.
O mais preocupante é que o volume de queimadas na região, decorrentes do desmatamento principalmente para formação ou renovação de pasto em criações de gado, está aumentando desde 1990, chegando a cerca de 15 mil km2 de área desmatada por ano.As medições dos poluentes foram realizadas com a instalação de três estações de monitoramento do ar em pontos estratégicos da região. Duas em áreas críticas de queimadas, nos municípios de Cuiabá e de Alta Floresta, no Mato Grosso, e uma na região da Serra do Navio, no Amapá, onde o ar é livre de emissões de queimadas. “Precisávamos comparar as concentrações de aerossóis existentes nesses dois ambientes e a influência das queimadas”, diz Paulo Artaxo.
5 milhões de km2 de fumaça
Durante o estudo, as medições em terra e o monitoramento realizado por satélite puderam acompanhar o movimento das nuvens de fumaça originadas pelas queimadas. Em 29 de agosto de 1995, uma grande nuvem de fumaça cobriu cerca de 5 milhões de km2, numa área igual a mais da metade do território brasileiro. “Nesse dia, coletamos amostras de partículas na atmosfera em concentrações de até 400 microgramas de partículas por m3 de ar, caso muito grave se compararmos com São Paulo, por exemplo, onde por muito menos se decreta o estado de alerta”, comenta o pesquisador.
Normalmente, as correntes de ar da Amazônia descem até o Sul do Brasil e saem para o Oceano Atlântico. O mesmo ocorre com parte da fumaça, que se dispersa em altitudes que vão de 5 mil até mais de 10 mil metros, indo desembocar no oceano, porém carregando mais nutrientes. Paulo Artaxo explica que, “junto com a alta concentração de poluentes emitidos pelas queimadas, saem agregados também uma parcela significativa de nutrientes (fósforo, nitrogênio, potássio etc), deixando a floresta mais pobre e implicando em importantes conseqüências para o futuro da Amazônia”.
Outra conseqüência das queimadas é o aumento da concentração de ozônio, gás tóxico para os seres vivos e para as plantas. O ozônio não é produzido diretamente pelas queimadas, mas pela reação química secundária com outros gases produzidos por elas. “Detectamos concentrações de ozônio de 80 a 100 partes por bilhão (ppb) de m3 de ar, quando, em São Paulo, o valor típico é de 50 ppb.
Por isso, pode-se dizer que a concentração de poluentes em algumas regiões da Amazônia, durante a época das queimadas, é bem maior que em São Paulo”, compara Artaxo. A alta carga de ozônio e outros poluentes afeta a saúde da floresta e da população local. No município de Alta Floresta é comum o atendimento hospitalar de pessoas com bronquite e asma, durante os meses em que as queimadas predominam.
Areias do Saara
A análise dos elementos químicos e orgânicos presentes no ar da Amazônia foram realizadas no acelerador nuclear do Instituto de Física da USP. Os feixes de partículas de alta energia do acelerador interagem com as amostras de ar, trazidas da Amazônia para análises em São Paulo. Ali é possível analisar os metais pesados, como mercúrio, chumbo e cobre, além de nutrientes essenciais à floresta como fósforo, enxofre, cálcio e outros. Também foi detectada a presença de material orgânico, posteriormente identificados em microscópio eletrônico de varredura, como pedaços de vegetais, fungos, fuligem, pólen, etc.
No total, foram encontrados no ar da Amazônia de 20 a 30 elementos por cada amostra. Eles são divididos em duas categorias. Partículas finas, que permanecem muito tempo na atmosfera e são extremamente danosas ao homem e ao ambiente natural, quando encontradas em excesso, contendo mercúrio, chumbo, cobre e níquel, e partículas grossas, como pedaços de vegetais, fuligem, pólen, cílios de plantas e pedaços de solo, presentes próximo ao local de emissões de queimadas. Na pesquisa ficou confirmada, também, a presença de aerossóis e areia oriundos do deserto do Saara, na África, que são transportadas para a Amazônia por meio de correntes de ar de alta altitude.
“Além de analisarmos o que sai em forma de emissões, estudamos o ar que entra na região Norte do país”, justifica Artaxo, acrescentando: “Precisamos estudar mais esse fenômeno para identificar quantitativamente qual a influência dos nutrientes e outros materiais aerotransportados da África para a Brasil e investigar se eles tiveram importância no nascimento da floresta amazônica, que reconhecidamente tem um solo muito pobre”.
Projeto futuro
No levantamento de dados, os pesquisadores da USP e do INPE tiveram também a colaboração de dois aviões da NASA-National Aeronautics and Space Administration, dentro do projeto SCAR-B-Smoke Clauds and Radiation-Brasil, ou Experimento de Medidas de Radiação, Fumaça e Nuvens da Amazônia, que mediu também a influência das partículas de aerossóis na radiação solar.
“Esse projeto temático nos permitiu fazer um trabalho a longo prazo, para coletarmos dados de forma sistemática e podermos trabalhar, trocando informações, com os pesquisadores da Nasa, de forma integrada”, analisa Paulo Artaxo. O projeto temático teve também a coordenação setorial de três pesquisadores do INPE:
Alberto Setzer, em sensoreamento remoto, Volker Kirchhoff, em química de gases, e Carlos Nobre, em meteorologia. A FAPESP forneceu US$ 400 mil durante os quatro anos de pesquisa, gastos principalmente na infra-estrutura de campo na Amazônia e na montagem das estações de monitoramento. Ao todo, foram publicados 60 trabalhos científicos e feitas cerca de 80 apresentações em conferências internacionais, resultando ainda em três teses de mestrado, quatro de doutorado e a participação de dois bolsistas de iniciação científica.
Todo o trabalho realizado neste projeto temático servirá de base de estudo para um dos maiores projetos de pesquisa a ser realizado no Brasil. É o Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia, que está sendo chamado de LBA, sigla retirada do nome em inglês Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia. O projeto tem na coordenação geral o professor Carlos Nobre, do INPE, e vai reunir 200 pesquisadores brasileiros e estrangeiros a partir do início de 1998.
“Vamos estudar, com os dados levantados neste projeto temático, os efeitos das partículas resultantes das queimadas na ecologia da Amazônia”, explica Paulo Artaxo. De maneira geral, o LBA vai buscar um melhor conhecimento do funcionamento ecológico da Amazônia, abrangendo o clima, os rios, composição da atmosfera, o homem e os impactos das mudanças de uso do solo. Esse estudo interdisciplinar deverá ser realizado de 1998 a 2003. E Artaxo resume a importância desse experimento: “Precisamos entender melhor a Amazônia para fornecer informações e estudos para a estruturação de uma estratégia de desenvolvimento sustentável para a região, além de analisar os impactos da Amazônia na composição da atmosfera e do clima no restante do planeta “.
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