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Obituário

Raízes judaicas do Brasil

Anita Novinsky inovou ao pesquisar temas como Inquisição, racismo e antissemitismo sob a perspectiva da história das ideias

Anita Novinsky em São Paulo, em 2018: professora colocou a temática da Inquisição no centro do debate historiográfico em países de língua portuguesa

Reprodução Inquisição no Brasil / Vimeo

Em um momento no qual a identidade nacional brasileira era pensada a partir das influências indígenas, africanas e europeias, a historiadora Anita Waingort Novinsky colocou no centro do debate historiográfico análises sobre as origens judaicas da população nacional. Morta aos 98 anos em 20 de julho, Novinsky também foi uma das primeiras pesquisadoras a ter acesso direto aos cerca de 45 mil processos da Inquisição, armazenados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal.

Professora titular emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Novinsky nasceu na Polônia e imigrou com os pais para o Brasil quando tinha apenas 1 ano, em 1923. Graduada em filosofia pela USP em 1956, tornou-se doutora em história social pela mesma universidade em 1970, sob orientação inicial do historiador Lourival Gomes Machado (1917-1967), que morreu antes da defesa de tese, e, posteriormente, do historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). No final da década de 1970, especializou-se em racismo no mundo ibérico pela Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais (EHESS) e, em 1983, concluiu um estágio de pós-doutorado pela Universidade Paris XII, ambas na França.

Fundou, em 2002, o Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, na USP. Nele desenvolveu e coordenou estudos sobre a presença judaica no Brasil, a Inquisição, o Holocausto, os direitos humanos e os direitos dos animais. Em 2013, recebeu o prêmio Pioneira da Ciência no Brasil do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Suas pesquisas fomentaram a abertura do Centro de Referência em Inquisição Anita Novinsky, em 2019, no Centro de Memória do Museu Judaico de São Paulo, que hoje reúne mais de uma centena de livros, além de pesquisas e dissertações sobre o tema.

Novinsky formou gerações de historiadores especializados em estudos inquisitoriais e comunidades cristãs-novas originárias da península Ibérica, constituídas por judeus convertidos à força em decorrência de políticas das monarquias da região. “Além de amiga, também a considerava minha mãe intelectual”, diz a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da FFLCH, que fez parte da primeira geração de estudantes formados por Novinsky. Ela recorda que quando Novinsky foi aluna da EHESS frequentou, com o historiador francês Robert Mandrou (1921-1984), um curso sobre história das mentalidades. Ele a convidou para fazer a tese de doutorado na instituição. “Ao ouvir os relatos de Novinsky sobre os prisioneiros e a Inquisição, até então desconhecidos, Mandrou solicitou uma bolsa ao Centre National de la Recherche Scientifique [CNRS]”, conta Tucci Carneiro. A partir desse momento, Novinsky passou a frequentar cursos ministrados pelo filósofo Michel Foucault [1926-1984], o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981), a filósofa Julia Kristeva, o filósofo e crítico literário Roland Barthes (1915-1980), além de seminários organizados pelo historiador Leon Poliakov (1910-1997). “Ela foi pioneira em introduzir o pensamento desses autores em seus cursos no Programa de Pós-graduação em História Social da FFLCH-USP”, relata Tucci Carneiro, que iniciou o mestrado em 1972 sob orientação de Novinsky. “Nessa época, ela começou um curso sobre história das mentalidades e passou a abordar o tema dos cristãos-novos, que havia sido objeto de sua tese de doutorado e até então era pouco conhecido no âmbito da universidade”, conta.

Resultado da pesquisa, o livro Cristãos-novos na Bahia (Perspectiva, 1972) investiga a dimensão social dessa comunidade na sociedade baiana do século XVII, estimando que entre 10% e 20% da população de Salvador tinha ascendência judaica. “Na obra, ela sustenta a tese de que o cristão-novo era um homem dividido: cristão para os judeus e judeu para os cristãos e, por isso, também era perseguido pela Inquisição. Mas ela não se fixou somente nos homens, do ponto de vista de gênero. Sublinhou o papel de mulheres convertidas ao cristianismo como transmissoras do judaísmo. Com o fechamento das sinagogas, elas passaram a protagonizar, no âmbito doméstico, a resiliência das tradições judaicas”, detalha o historiador Ronaldo Vainfas, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ele lembra que Novinsky formou muitos professores e pesquisadores em diversas universidades brasileiras, orientando dissertações e teses de excelência. “Ela foi minha professora na USP e abriu meus caminhos à pesquisa de fontes inquisitoriais em várias perspectivas”, conta, ao recordar que dedicou a Novinsky seu livro Jerusalém colonial: Judeus portugueses no Brasil holandês (Civilização Brasileira, 2010).

“Nas aulas sobre o Brasil colonial, a perseguição da Inquisição aos judeus era um tabu. Pesquisas anteriores aos anos 1970 sustentavam que eles eram acossados porque a Igreja os considerava hereges, quando análises mais apuradas da documentação histórica mostraram que, na verdade, a burguesia cristã tradicional da época via na ideia de pureza de sangue a possibilidade de excluir os cristãos-novos da sociedade”, afirma Tucci Carneiro. Também especialista no assunto, ela explica que tanto na Espanha como em Portugal e suas colônias os fundamentos do antissemitismo eram teológicos, baseados na ideologia de pureza de sangue, que definia os cristãos-novos, judeus, ciganos e mouros como “infectos”. Pelo crime de heresia, segundo os inquisidores, os cristãos-novos deviam ser punidos com confisco de bens, prisão ou morte na fogueira. Segundo Novinsky, essa ideologia atendia aos interesses da burguesia cristã-velha, que queria excluir os cristãos-novos da concorrência comercial. Tucci Carneiro trabalhou com esses argumentos em sua dissertação de mestrado.

Em 2002, Tucci Carneiro organizou com a historiadora Lina Gorenstein, que também foi orientanda de Novinsky, o livro Ensaios sobre a intolerância. Inquisição, marranismo e anti-semitismo (Humanitas), que reúne textos de pesquisadores formados pela chamada “escola Novinsky”, entre eles o antropólogo Luiz Mott, hoje aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e a historiadora Laura de Mello e Souza, da Universidade de Paris IV – Sorbonne, na França. “De 1972 até esse momento, Novinsky influenciou uma geração produtora de novos conhecimentos na historiografia”, destaca a pesquisadora ao citar os estudos de Mott sobre cristãos-novos homossexuais perseguidos pela Inquisição, e os de Gorenstein, autora de análises precursoras sobre mulheres cristãs-novas no Rio de Janeiro. Segundo Tucci Carneiro, o legado de Novinsky tem fomentado o desenvolvimento de pesquisas comparativas sobre nazismo, racismo, discriminação e totalitarismos. “Ela estabeleceu um modelo teórico para repensar as relações com o outro em todas as suas dimensões”, diz, ao lembrar que a historiadora se assumia como judia e sionista.  Um dos projetos em aberto deixados por Novinsky envolve a criação do Museu da Tolerância na USP, cujo lançamento oficial aconteceu em 2004, mas o projeto não saiu do papel.

Fábio Nakamura/FFLCH-USPHistoriadora participa de banca de defesa de dissertação de mestrado na USP, em 2019Fábio Nakamura/FFLCH-USP

A historiadora Íris Kantor, da FFLCH, observa que as pesquisas de Novinsky propiciaram a emergência de novas identidades étnico-religiosas no Brasil contemporâneo “ao subsidiar a formação do movimento conhecido como bnei anussim, ou filhos dos judeus convertidos à força”. Kantor avalia que Novinsky reinterpretou o fenômeno do marranismo, que consiste na ocultação ou dissimulação da identidade judaica. “Apoiada nos autores da Escola de Frankfurt, ela compreendeu o marranismo como um gesto de resistência cultural, dissidência programática e heterodoxia autoconsciente”, detalha. O termo marrano designa os descendentes de judeus sefarditas portugueses e espanhóis, que foram obrigados a abandonar o judaísmo.

O historiador Daniel Strum, da FFLCH, destaca que Novinsky colocou a temática da Inquisição no centro do debate historiográfico no universo acadêmico de língua portuguesa. “Esse interesse também se relacionava com questões pessoais. Ela veio ao Brasil criança, foi adolescente durante o Holocausto e teve perdas familiares significativas. Queria demonstrar que os judeus eram também fundadores da identidade brasileira”, reflete Strum. Ele comenta que o Departamento de História está em busca de financiamento para editar um livro e organizar um evento em homenagem à docente.

Novinsky doou seu acervo para o Museu Judaico Brasileiro, que deve ser inaugurado em São Paulo ainda este ano, incluindo material reunido durante mais de 50 anos de trajetória intelectual. Kantor, que foi aluna de Novinsky durante a graduação em 1982, atualmente desenvolve, com uma equipe, projeto de organização de seu acervo, que deverá ser disponibilizado em plataforma virtual. De acordo com Kantor, os réus processados pela Inquisição ficavam estigmatizados por muitas gerações. “A ascendência cristã-nova impedia os indivíduos de ocupar ofícios públicos, cursar a Universidade de Coimbra, participar de irmandades e compor instâncias de poder, fortalecendo, assim, as hierarquias  cristãs-velhas”, esclarece.

Em 1965, durante a pesquisa de sua tese de doutorado, financiada com bolsa da Fundação Gulbenkian, Novinsky teve acesso ao acervo da Torre do Tombo, em Portugal, onde estão reunidos cerca de 45 mil processos da Inquisição. Naquele momento, poucos historiadores tinham acesso direto à documentação original, que mal estava organizada. Ela teve a possibilidade de iniciar o levantamento sistemático dos processos relacionados com réus oriundos do Brasil. Em 1978, publicou Inquisição: Inventários de bens confiscados a cristãos novos no Brasil (Editora Imprensa Nacional. Casa da Moeda, Lisboa). Nas décadas seguintes, editou instrumentos de pesquisas fundamentais para o conhecimento da documentação original.

Um dos aspectos controversos do pensamento de Novinsky diz respeito à aproximação entre a repressão da Inquisição, que durou 285 anos, com as práticas nazistas durante o Terceiro Reich (1933-1945). “Novinsky se perguntava até que ponto as práticas da Inquisição, que envolviam a cultura de delação, segredo, tortura e banalização da violência, podem ser consideradas matrizes do racismo científico nazista”, observa Kantor.

“Novinsky ensinou gerações de alunos da USP a analisar os processos inquisitoriais à luz da censura, influenciada pelas teorias de Foucault”, reforça Tucci Carneiro, ao destacar que parte dessas reflexões foi compilada no livro Minorias silenciadas – História da censura no Brasil (Imprensa Oficial, Edusp, 2001), sob sua organização. Ela recorda as ponderações feitas pela historiadora em torno do edital de casamento de dom Manuel I (1469-1521), rei de Portugal, que incentivou a publicação do Édito de Expulsão (1496) dos judeus do país e dos cristãos-novos depois do batismo compulsório de 1497. “Novinsky considerou esse documento como o primeiro libelo antissemita da história de Portugal”, enfatiza.

“Novinsky é referência incontornável à geração que se dedicou a estudos sobre a atuação do tribunal do Santo Ofício no Império português. Tive o privilégio de ser aluno de uma de suas disciplinas quando cursava o primeiro ano do mestrado em história na USP, em 2006. Por meio de seus livros e aulas compreendi como a violência religiosa e os critérios discriminatórios dos estatutos de pureza de sangue marcaram profundamente a formação histórica da sociedade brasileira”, destaca o historiador Aldair Rodrigues, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Além da originalidade da tese envolvendo a “identidade dilacerada” dos cristãos-novos, ele ressalta seu empenho à organização e publicação de vastos repertórios de documentos inéditos da Torre do Tombo. “Esse trabalho permitiu revelar detalhes sobre a dimensão demográfica e o perfil social dos grupos perseguidos pelo tribunal da fé em uma época em que os repositórios digitais ainda não eram acessíveis. Nos mostrou os rostos, as carnes e os ossos de crianças, mulheres e homens vítimas da intolerância religiosa vinculada ao ódio étnico-racial”, detalha Rodrigues.

“Lembro-me até hoje da primeira vez que vi Novinsky. Foi durante uma de minhas primeiras aulas na graduação em ciências sociais na USP. Era uma presença marcante, uma mulher linda e elegante, com uma barriga enorme, em um estágio avançado de gravidez, e ao mesmo tempo com uma postura muito profissional e articulada”, recorda a socióloga Eva Alterman Blay, da FFLCH. A pesquisadora conta que encontrou Novinsky em um congresso em Israel, há cinco anos, quando a historiadora participou de todas as conferências acompanhada de uma de suas netas. Por fim, Strum afirma que, em agosto de 2020, ela apresentou um projeto para seguir lecionando na USP como professora sênior, abrir duas vagas de orientação e uma linha de pesquisa envolvendo análises sobre as relações entre bandeirantes e jesuítas durante o período colonial. Anita Novinsky deixou duas filhas, três netos e uma bisneta.

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