No final do ano passado, a Unicamp contabilizava 125 patentes licenciadas, que lhe renderam R$ 1,9 milhão em ganhos econômicos e royalties, um recorde na história da instituição. O invento que mais gerou divisas em 2015 foi um novo tipo de óleo vegetal, com baixos teores de ácidos graxos saturados, desenvolvido para substituir o uso da gordura trans em vários produtos da indústria de alimentos, como bolachas, bolos, sorvetes e salgadinhos de pacote. Licenciado em 2014 para a multinacional Cargill, que possui um acordo de cooperação com a universidade, o ingrediente é fruto do trabalho de dois pesquisadores do Laboratório de Óleos e Gorduras da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), Lireny Aparecida Guaraldo Gonçalves e Renato Grimaldi.
Empregada para melhorar a consistência e aumentar a durabilidade dos produtos, a gordura trans é prejudicial à saúde e seu uso tem sido proibido ou restringido no exterior. No Brasil, desde o início de 2014, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passou a regular de forma mais rígida o emprego de informações nutricionais complementares, como as expressões “baixo em gorduras saturadas” e “não contém gordura trans”, nos alimentos processados. “Quando a legislação mudou, já tínhamos chegado ao novo óleo vegetal”, afirma Grimaldi. Detalhes técnicos do óleo e o valor monetário gerado pelo licenciamento são mantidos em sigilo.
A história do desenvolvimento desse novo ingrediente ilustra algumas das características mais marcantes da FEA, que, como a Unicamp, comemora meio século de existência em 2016. O pioneirismo é uma delas. A Unicamp foi a primeira instituição de ensino superior da América Latina a criar um curso de engenharia de alimentos. Inaugurou no país um campo de estudos que cresceu em paralelo à expansão da indústria alimentícia. “Hoje há mais de 80 cursos superiores de engenharia de alimentos no Brasil”, diz Antonio José de Almeida Meirelles, diretor da faculdade. Outro traço presente desde os primórdios da faculdade é sua proximidade com as empresas do setor. Além de acordos e parcerias de pesquisas com a indústria, a FEA formou empreendedores. Empresas especializadas em fornecer ingredientes para o setor de alimentos, como Sun Foods, Alibra e Carino, foram fundadas por ex-alunos da instituição.
A atuação do engenheiro agrônomo André Tosello (1914-1982) foi crucial para o estabelecimento em 1966 da Faculdade de Tecnologia de Alimentos (FTA), nome original da instituição. Amigo de Zeferino Vaz, primeiro reitor da Unicamp, e dono de uma empresa de máquinas agrícolas, Tosello foi no final dos anos 1950 diretor da divisão de Solos, Mecânica Agrícola e Tecnologia do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Defensor da ideia de que o Brasil deveria também se ocupar do estudo e do processamento de sua grande produção agrícola, esteve à frente do projeto que, em 1963, criou em Campinas o Centro Tropical de Pesquisas e Tecnologia de Alimentos (CTPTA), que seis anos mais tarde viria a ser rebatizado de Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital). A instalação do centro serviu de apoio para o processo de estruturação da FTA, da qual Tosello foi o idealizador e o primeiro diretor.
A pesquisa esteve presente na história da FEA desde os primeiros anos. Em 1970, a faculdade formou seu primeiro doutor, Ricardo Sadir. O título da tese, orientada por Tosello, é ilustrativo de um país que, na época, combatia a desnutrição e buscava novas fontes de nutrientes: “Estudo de um fermentador para produzir proteínas dos derivados do petróleo”. Em 1971, Tosello criou uma entidade jurídica de direito privado, a Fundação Centro Tropical de Pesquisas e Tecnologia de Alimentos (FCTPTA), que servia de apoio à faculdade e a aproximava de representantes da indústria. Após a morte de seu mentor, a entidade passou a se chamar Fundação André Tosello.
Leite de soja na merenda
Nas primeiras duas décadas da faculdade, a atuação de seus professores e pesquisadores esteve voltada principalmente para o desenvolvimento de novos processos físicos, químicos e de engenharia para o setor alimentício. “Até os anos 1960, havia poucos alimentos industrializados no país”, lembra Gláucia Pastore, coordenadora do Laboratório de Bioaromas e Compostos Bioativos da FEA e pró-reitora de Pesquisa da Unicamp. A proteína texturizada de soja passou a fazer parte da dieta de uma parte dos brasileiros em razão de estudos de pesquisadores da faculdade. Em 1977, o professor Roberto Hermínio Moretti, hoje aposentado, obteve a patente de um equipamento capaz de produzir cerca de 200 litros de “leite de soja” por hora. Nascia a “vaca mecânica”. Até hoje as novas versões do equipamento carregam esse apelido. Entre outros usos, a vaca mecânica foi empregada para promover o leite de soja na merenda escolar de alunos de escolas públicas. Ao longo da história da FEA, a merenda foi alvo de estudos que ajudaram a estabelecer políticas públicas para a alimentação oferecida na rede pública de ensino.
Em 1981, começou uma iniciativa que viraria uma referência internacional no setor: o banco de fontes de carotenoides, pigmentos naturais que dão a cor amarela, laranja ou vermelha para os vegetais, muitos dos quais comestíveis, como a cenoura, o milho e o tomate. Os carotenoides funcionam como agentes antioxidantes, reforçam o sistema imunológico e alguns deles são precursores da vitamina A. À frente do projeto estava a professora Delia Rodriguez-Amaya, pesquisadora filipina que trocara os Estados Unidos pelo Brasil no fim dos anos 1970. Em 2008, ao lado de Jaime Amaya-Farfan, seu marido e também professor da FEA, e Mieko Kimura, ex-aluna de graduação e pós-graduação da FEA e professora do campus de São José do Rio Preto da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Délia publicou o livro Fontes brasileiras de carotenoides, com informações sobre 270 frutas e hortaliças que contêm o pigmento. Uma versão desse trabalho foi traduzida para o inglês e publicada no Journal of Food Composition and Analysis.
Alimentos funcionais
Os trabalhos com os chamados alimentos funcionais ou bioativos, cujas propriedades nutritivas podem ser benéficas para prevenir ou minorar o aparecimento de certos problemas de saúde, representam hoje uma linha importante de pesquisas da FEA. Em uma sociedade marcada por uma população urbana cada vez mais sedentária e obesa, que consome em demasia comida ultraprocessada, esse tipo de estudo tem espaço para se multiplicar. Muitos aditivos provenientes da química de síntese, que hoje funcionam como conservantes ou aportam sabores aos alimentos, poderiam ser substituídos por compostos naturais. Nutrição e saúde andam lado a lado nesses estudos. Apesar de salientarem que comida não deve ser confundida com remédio, os pesquisadores afirmam que as características de uma dieta podem ser um fator promotor de boa saúde. “Os alimentos podem promover uma revolução silenciosa”, opina Gláucia Pastore. “No exterior, há as cranberries [fruta vermelha rica em antioxidantes que seria útil para combater infecções urinárias]. No Brasil, temos muitos vegetais e frutas com potencial para serem alimentos funcionais.”
Nativa do Brasil, a jabuticaba é um caso interessante de alimento tipicamente nacional que tem sido alvo de trabalhos a respeito de possíveis benefícios à saúde. O pesquisador Mário Roberto Maróstica Junior, coordenador do Laboratório de Nutrição e Metabolismo da FEA, estuda os possíveis benefícios da ingestão da casca da fruta para combater inflamação intestinal e obesidade e para reduzir a resistência à insulina em diabéticos. “A casca hoje é jogada fora, embora seja rica em substâncias fenólicas, com efeitos antioxidantes”, explica Maróstica, que também estuda as propriedades terapêuticas dos frutos do tucum, palmeira típica da Mata Atlântica. “Mas não adianta comer churrasco todo dia e achar que a jabuticaba vai ser a salvação.”
Uma faculdade para a engenharia agrícola
Em 1985, a engenharia de alimentos gerou um filhote: a Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri), que então se tornou uma unidade independente na Unicamp. Desde 1975, havia um departamento e um curso de engenharia agrícola funcionando na então Faculdade de Engenharia de Alimentos e Agrícola (FEAA), última designação formal da atual FEA. Em depoimento ao livro comemorativo A construção do saber – A história da FEA, publicado em 2012, o engenheiro de alimentos José Tadeu Jorge (atual reitor da Unicamp), que coordenou a redação do projeto de criação da Feagri, disse que“as duas áreas são muito distintas e seria mais difícil o crescimento de ambas se elas permanecessem juntas”. Dessa forma, o corpo docente do antigo Departamento de Engenharia Agrícola foi deslocado para a nova unidade, que ficou com os equipamentos e prédios que já utilizava.
A unidade engloba o curso de graduação, pesquisas sobre água e solo, construções rurais, equipamentos agrícolas, sustentabilidade rural e tecnologia de pós-colheita. “Além das áreas em que historicamente temos tido destaque, como biocombustíveis e máquinas e implementos agrícolas, queremos desenvolver mais estudos nos próximos anos em sensoriamento remoto, agricultura de precisão, biotecnologia agroindustrial e laser biospeckle [método usado para medir o pico da maturação de frutas]”, diz o professor Gustavo Mockaitis, presidente da comissão de pesquisa da Feagri.
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