De 2016 a 2019, a Amazônia perdeu 32 mil quilômetros quadrados (km2) de vegetação nativa – o equivalente a 0,6% da área ocupada pelo bioma no território brasileiro – por causa de queimadas e desmatamento, indicam dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em consequência do recrudescimento recente na degradação da floresta, observada principalmente no Arco do Desmatamento, nas porções sul e leste da Amazônia, cerca de 1.400 onças-pintadas podem ter morrido ou sido desalojadas das áreas em que viviam. “Esse número é um sinal de alerta e merece atenção”, afirma o veterinário Ronaldo Morato, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e líder do trabalho, apoiado pela FAPESP, que chegou a esse cálculo. “Ele representa 1,8% da população de onças que se calcula existir na Amazônia brasileira.”
Publicada em 25 de junho na revista Conservation Science and Practice, essa estimativa é ainda imperfeita. Conhecer o número exato de onças mortas, feridas ou deslocadas pela ação de motosserras ou do fogo exigiria a captura e marcação prévia de cada indivíduo para que, depois, sua localização fosse acompanhada por meio de colares rastreáveis por GPS e armadilhas fotográficas. Ante a impossibilidade de realizar esse tipo de rastreamento em uma área tão vasta e de deslocamento complexo como a Amazônia, o biólogo Jorge Saraiva de Menezes, da equipe de Morato, calculou o número aproximado de felinos mortos ou expulsos naquele período cruzando dados de áreas que perderam mais de 50% da cobertura nativa com informações a respeito da concentração de onças na região.
A Amazônia é hoje o principal refúgio de onças no mundo. Há alguns anos, o biólogo polonês Włodzimierz Jędrzejewski, do Centro de Ecologia do Instituto Venezuelano de Pesquisas Científicas, e colaboradores usaram informações de dezenas de armadilhas fotográficas instaladas em 80 locais para calcular o total de onças-pintadas nas Américas. De acordo com a estimativa, apresentada em 2018 na revista PLOS ONE, existiriam hoje por volta de 173 mil onças.
Exclusivas das Américas, continente no qual entraram após se separarem há 3 milhões de anos de uma linhagem ancestral de grandes felinos na Ásia, as onças-pintadas (Panthera onca) estão entre os maiores carnívoros do mundo. Podem alcançar quase 2 metros de comprimento (do focinho ao início da cauda) e pesar 150 quilos. Em tamanho e força, perdem apenas para dois outros felinos evolutivamente próximos: o leão (Panthera leo), hoje encontrado na África subsaariana e em parte da Índia; e o tigre (Panthera tigris), que sobrevive em pequenas porções da Ásia. As onças são corredoras velozes, atingem até 80 quilômetros por hora, além de exímias nadadoras e hábeis escaladoras de árvores. Na natureza, vivem de 10 a 15 anos e podem ser encontradas em campos e savanas, mas preferem áreas de mata fechada, próximas de cursos d’água e distantes da presença humana.
Por influência de fatores ambientais, como cobertura florestal, temperatura, disponibilidade de alimentos e alterações na paisagem, as onças existentes hoje estão distribuídas de modo irregular por uma área de 8,9 milhões de km2, metade do território que ocupavam no início do século XX, quando eram encontradas dos Estados Unidos à Argentina (ver mapa). Segundo os cálculos de Jędrzejewski, nove países da América do Sul, todos contendo trechos da floresta amazônica, concentrariam 93% das onças (cerca de 161 mil animais). No Brasil, onde recebe ainda o nome de jaguar, jaguaretê e canguçu, estaria o maior contingente: 86,8 mil exemplares – nove em cada 10 deles na Amazônia.
A situação da espécie é menos grave que a do leão e do tigre, dos quais restam, respectivamente, 20 mil e 4 mil exemplares na natureza. Mas não permite descuidos. Biólogos, geneticistas e especialistas em conservação consideram que apenas uma pequena proporção dos indivíduos – no caso dos felinos, algo em torno de 10% da população – seja, de fato, capaz de procriar e contribuir para a manutenção da espécie. É a chamada população efetiva, um conceito genético que equivale aproximadamente ao conjunto de animais que colaboram reprodutivamente ao longo das gerações. Em algumas áreas de vegetação fragmentada, esse número pode ser muito baixo (por exemplo, menos de 10 indivíduos), o que gera problemas para a manutenção da diversidade genética no local.
Em 2017, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) classificou a onça-pintada na categoria “quase ameaçada de extinção” por causa de uma redução de 20% a 25% em sua população global em 21 anos. Em uma avaliação de 2013, Morato e colaboradores haviam estimado que em 27 anos o número de onças no Brasil teria encolhido 30% e redução semelhante é projetada para as próximas três décadas. A principal ameaça à espécie, indicam vários estudos, é a perda e a fragmentação de áreas de vegetação nativa, em geral decorrente de atividades humanas como expansão agrícola, mineração, construção de hidrelétricas e abertura de estradas.
Onças são predadores solitários que precisam de grandes espaços para caçar e sobreviver. Em um grande estudo sobre o deslocamento desses felinos, o ecólogo Jeffrey Thompson, pesquisador da Associação Guyra e do Instituto Saite, ambos no Paraguai, e 60 colaboradores, vários deles do Brasil, acompanharam por anos o trajeto percorrido por 111 onças em sete países das Américas e 13 ambientes. Os resultados desse trabalho, um dos últimos assinados pelo zoólogo paulista Peter Crawshaw Junior, um dos maiores especialistas em onça do país, morto em 26 de abril deste ano em consequência da Covid-19, foram publicados em 7 de julho na revista Current Biology. Eles indicam que a área média de que as onças precisam para viver – a chamada área de vida – varia muito de um bioma para outro. É menor, da ordem de 60 km2 a 200 km2, em ambientes com vegetação mais densa e abundância de alimentos, como o Pantanal ou os Lhanos, como são chamadas as planícies de savanas da Colômbia e da Venezuela, e um pouco maior, por volta de 250 km2 na Amazônia. Pode, no entanto, chegar aos 400 km2 no Cerrado e na Caatinga, onde a disponibilidade de alimento é menor e a presença humana maior.
Antes da chegada do colonizador europeu, havia onças em todo o território do que viria a ser o Brasil, afirmam os estudiosos do felino. Com a derrubada de matas, porém, elas foram varridas de uma vasta faixa que vai do Nordeste ao Sul do país. Desapareceram dos Pampas e hoje sua distribuição é restrita a um terço do Cerrado, 20% da Caatinga e menos de 10% da Mata Atlântica – calcula-se que, nos dois últimos biomas, só existam algumas centenas de indivíduos. Apenas a Amazônia brasileira comporta onças em cerca de 80% de sua área.
“A Mata Atlântica representa um caso extremo de prejuízos da ação humana para a diversidade genética das onças”, assegura o biólogo Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), um dos pioneiros no país no estudo da genética do felino. A primeira análise das populações do animal em diferentes países das Américas, conduzida por Eizirik em 2001, ajudou a confirmar que as onças atuais pertencem a uma única espécie e sem subdivisões regionais profundas. Mais recentemente, a bióloga Taiana Haag, trabalhando sob a orientação de Eizirik, comparou as características genéticas de quatro populações de onça distribuídas por remanescentes de Mata Atlântica entre os estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul e constatou que elas haviam perdido diversidade. A população de cada fragmento se tornou mais homogênea rapidamente. Em menos de 10 gerações, os indivíduos de uma mesma população ficaram geneticamente mais semelhantes entre si, enquanto os animais de um fragmento acumularam diferenças aleatórias que os tornaram mais distintos daqueles das outras áreas.