Um dos órgãos mais complexos do corpo humano é o fígado. São conhecidas pelo menos cinco mil funções para esse órgão, que compreendem a captação de substâncias, síntese, metabolismo e coagulação do sangue, consideradas indispensáveis à vida. Não é de se admirar, portanto, que pessoas enfrentem sérias dificuldades quando perdem parte do fígado em intervenções cirúrgicas. Sua situação pode melhorar em futuro próximo. Uma equipe multidisciplinar da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto está realizando pesquisas sobre maneiras de estimular a regeneração do fígado a partir da parte restante do órgão.
A primeira parte do estudo, envolvendo trabalhos de laboratório em ratos, terminou com muito sucesso. A partir do ano que vem, provavelmente, começam os testes em seres humanos, no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.”Os resultados são extremamente animadores”, diz o professor Orlando de Castro e Silva Júnior, do Departamento de Cirurgia, Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, coordenador da equipe, que envolve ainda os departamentos de Farmacologia e Patologia da própria faculdade e o Instituto de Física de USP de São Carlos.
Os pesquisadores conseguiram comprovar que é possível estimular a regeneração hepática em animais de laboratório, tanto com o uso de luz laser de baixa potência como com o uso de algumas substâncias químicas. As perspectivas são de que os métodos tenham sucesso também em seres humanos, abreviando o período de tratamento e a volta às atividades normais depois da operação.
O início dos testes em seres humanos depende agora da aprovação dos métodos a serem aplicados, pela comissão de ética do Hospital das Clínicas. Essa é uma praxe em experiências como esta, que ainda não fazem parte da literatura médica internacional. Os pacientes serão, principalmente, pessoas que têm parte do fígado extraída devido a vários fatores, como tumores irreversíveis. As experiências, iniciadas há três anos, contaram com um investimento de R$ 369,7 mil da FAPESP, dentro do projeto temático Transplante Experimental de Fígado e Regeneração Hepática, coordenado pelo professor Castro e Silva.
Quarta parte
“Conseguir acelerar a regeneração do fígado é fundamental”, diz o médico sobre os pacientes submetidos a esse tipo de cirurgia. “Com isso, proporcionamos ao fígado remanescente melhores condições de adaptação ao organismo e melhor recuperação do paciente”, acrescenta. Há casos em que os médicos tiram até 75% do fígado do paciente. O restante, a quarta parte do órgão, é capaz de regenerar-se, se estiver em boas condições. Gradualmente, o fígado volta a exercer todas as suas funções.
A fase crítica ocorre nos primeiros dias depois da operação. Mesmo com um acompanhamento médico intensivo, o paciente sofre bastante. A mudança que ocorre no metabolismo de captação e excreção gera um desconforto muito forte. Se for possível acelerar essa regeneração, o paciente vai passar mais depressa por essa fase. Além de ter o desconforto aliviado, ficará menos tempo internado e terá a recuperação abreviada.
Problema social
O problema não é raro. As doenças do fígado estão entre as mais graves e as de tratamento mais difícil. Dos casos de hepatite B, entre 5 e 10% evoluem para uma hepatite crônica ou uma cirrose hepática, doença que pode levar à morte. Entre os casos de hepatite C, a maioria apresenta uma infecção persistente e evolui para se transformar numa doença crônica do fígado. Uma boa parte das cirroses tem origem no consumo exagerado de bebidas alcoólicas. “A cirrose por álcool tem elevada prevalência em nosso meio”, diz o professor Castro e Silva. “Isso mostra como o alcoolismo é um grave problema social.”
Entre os tumores que atacam o fígado, o de maior incidência parece ser o carcinoma hepatocelular. Nos países ocidentais, ela é de uma em cada 100 mil pessoas. Entre 80 e 90% dos casos de tumores hepáticos primários, ele se instala quando o fígado já está comprometido por outros problemas, especialmente as cirroses provocadas pelos vírus dos tipos B e C (o tipo A é considerado benigno). Se não for tratado convenientemente, a mortalidade é muito alta, chegando a 35% em um ano, 80% em dois anos e 95% em três anos.
Atualmente, as ressecções parciais do fígado cirrótico para tratamento desses tumores primários não podem ser maiores de 15%. O remanescente cirrótico não tem o mesmo poder de regeneração que o normal. “Com o laser, estamos tentando verificar a possibilidade de ressecções maiores em fígados cirróticos, com tumor, visando melhores índices de ressecabilidade de tumores”, afirma o cirurgião.
Capacidade natural
No trabalho de recuperação do fígado depois que parte dele é extraído numa cirurgia, os médicos contam com um ponto valioso. O órgão tem, naturalmente, a capacidade de regenerar-se, apesar da sua complexa estrutura, que ostenta sete diferentes tipos de células e uma dupla irrigação sanguínea. O objetivo da equipe de Ribeirão Preto é acelerar essa regeneração. Para isso, partiu de muito pouco. “Não havia na literatura nenhuma descrição de como regenerar o fígado”, diz o professor Castro e Silva.
“Foi um verdadeiro achado verificar que o raio laser pode colaborar para essa regeneração”, acrescenta. Em circunstâncias comuns, o fígado leva cerca de seis meses para voltar ao peso normal depois que parte dele é extraída numa cirurgia, de acordo com avaliações feitas por exames de tomografia computadorizada e ressonância magnética.
Também foram testadas com sucesso substâncias farmacológicas. Nos testes com ratos, a equipe da USP de Ribeirão Preto conseguiu multiplicar por dez a regeneração do fígado 24 horas depois da operação, em 70% dos casos, com o uso da droga bradicinina. Os pesquisadores ainda não têm resposta sobre o porquê desses resultados. Outra droga, a substância P, usada em várias aplicações pelo Departamento de Farmacologia da USP de Ribeirão Preto, obteve amplitudes menores de regeneração. Mas os resultados de sua aplicação foram considerados animadores, especialmente porque antecipou o pico de regeneração de 24 para 17 horas.
A aplicação do laser mostrou-se menos eficiente – apenas duplicou a capacidade de regeneração. Mesmo assim, o resultado foi considerado positivo e merecedor de ser incluído no prosseguimento dos estudos. Os pesquisadores descobriram que o comprimento de onda correspondente à cor azul foi o que melhor estimulou a regeneração hepática. Houve um cuidado especial com relação à intensidade da luz, uma vez que existe o risco de uma aplicação muito forte causar danos celulares. A conclusão é a de que uma aplicação de até 1000 mw por centímetro quadrado de tecido não causa danos às células.
Pontos específicos
Um aspecto muito importante, mas que ainda intriga os pesquisadores, é o de que o fígado remanescente responde positivamente ao estímulo dos raios laser seja qual for a área bombardeada. Trata-se de uma enorme vantagem, pois há pontos do fígado nos quais, pela sua localização, o bombardeio específico seria extremamente difícil. De qualquer maneira, os médicos vão tentar descobrir agora se existem pontos no fígado onde a ação do laser pode mostrar-se mais eficaz do que em outros.
Outro aspecto do projeto que vai começar brevemente é verificar se o fígado consegue regenerar-se, se for submetido ao tratamento com raios laser, mesmo se sofrer uma ressecção de até 90%. Trata-se de uma experiência muito importante para os casos de insuficiência hepática aguda. Há casos em que o paciente entra no hospital com uma hepatite aguda fulminante. Sua única esperança é um transplante, o mais rapidamente possível. “A hipótese é que poderíamos irradiar o fígado nessas condições ou para reverter a situação ou melhorar as condições do doente, dando-lhe a chance de esperar, em melhores condições clínicas, a chegada de um órgão para transplante”, diz Castro e Silva.
Há mais. Durante as pesquisas, a equipe de Ribeirão Preto descobriu que o lisinopril, nome genérico de um hipertensivo, também acelera a regeneração hepática. Isso abre importantes perspectivas. É comum que os pacientes de operações no fígado desenvolvam, no pós-operatório, níveis variáveis de hipertensão arterial. Só isso já justificaria o uso do lisinopril. Se a droga também acelerar a regeneração do fígado, o tratamento mataria dois coelhos com uma só cajadada.
Funcionou nos animais de laboratório, mas a equipe quer fazer ainda mais experiências, antes do início dos testes em seres humanos, no ano que vem. “Temos que ser cautelosos antes do uso clínico”, diz o professor Castro e Silva. “Precisamos ter a comprovação definitiva dos graus de eficiência dos diversos métodos”, acrescenta. De qualquer maneira, os testes iniciais apontam para um progresso muito grande, em futuro não muito distante, para um problema muito sério da medicina atual.
Perfil
Orlando de Castro e Silva Jr., 46 anos, é cirurgião responsável pelo Setor de Cirurgia Hepática da Disciplina de Gastroenterologia do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, coordenador do Núcleo de Pesquisas em Hepatologia Cirúrgica e do curso de Pós-Graduação da área de Cirurgia. Fez o pós-doutorado em cirurgia hepática na Universidade de Barcelona, na Espanha.
Projeto
Transplante Experimental de Fígado e Regeneração Hepática
Investimento
R$ 369,7 mil