É difícil imaginar que o corpo (humano ou de qualquer ser vivo) possa reagir preventivamente a uma escala de tempo muito superior à própria vida, preparando-se, por exemplo, do ponto de vista fisiológico às temperaturas que se prevê vigentes daqui a alguns séculos. No entanto, é um pouco o que fazem linhagens usadas em laboratório de cianobactérias da espécie Synechococcus elongatus, seres unicelulares que vivem de luz, fazendo fotossíntese, e cujo ciclo de vida tem cerca de um dia, segundo revelou a bióloga brasileira Maria Luísa Jabbur, pesquisadora do Centro John Innes, no Reino Unido, em artigo publicado em setembro na revista Science. Quando as bactérias são “avisadas” da chegada do inverno, logo se preparam – mesmo que a chegada do frio só venha a acontecer várias gerações adiante.
Jabbur estuda o relógio biológico nessas cianobactérias desde o estágio de graduação, como parte do antigo programa brasileiro Ciência sem Fronteiras, na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos. “As cianobactérias são um modelo excelente para ritmos circadianos, e durante um bocado de tempo o foco da pesquisa com elas foi voltado para questões mecanísticas e evolutivas, que são muito mais facilmente estudadas nelas do que em eucariotos”, conta. “Acho que a questão fotoperiódica foi deixada de lado.” Quando se deu conta dessa lacuna em estudos sobre o relógio interno das cianobactérias em um tempo mais alargado, já no doutorado e de volta à Vanderbilt, ela propôs um experimento ao orientador, o biólogo norte-americano Carl Johnson, que nos anos 1990 participou da identificação de três genes (kaiA, kaiB e kaiC) envolvidos no relógio circadiano desses organismos, junto com os biólogos japoneses Takao Kondo e Masahiro Ishiura, da Universidade de Nagoya, e a bióloga molecular norte-americana Susan Golden, da Universidade da Califórnia em San Diego.
A proposta pareceu absurda, mas o pesquisador não barrou a criatividade da aluna, sendo coerente com o aviso que mantinha em um papelzinho grudado na porta de sua sala: “O progresso é feito por jovens cientistas que fazem experimentos que os velhos cientistas dizem que não funcionariam”.
“Eram necessários poucos reagentes, só o que eu tinha a perder era meu próprio tempo; calculei que seria entre uma e duas semanas, então valia a pena”, relembra Jabbur. Deu certo de primeira e bastou uma semana para voltar com a resposta em duas placas de Petri, de acordo com reportagem publicada na Quanta, revista norte-americana de jornalismo científico, em outubro. Ambas exibiam pontos verdes que eram as colônias bacterianas e tinham sido mergulhadas em água gelada para simular a chegada do inverno, mas uma delas tinha sido mantida em dias característicos do verão, com mais horas de luz do que de escuridão, até ser exposta ao frio. A outra continha descendentes de uma linhagem de bactérias que tinha sido “avisada” da chegada do inverno por uma mudança nas condições luminosas que envolviam mais horas no escuro. Essa segunda tinha pontos verdes mais abundantes, sinais indiscutíveis de sobrevivência e reprodução, criando colônias mais vicejantes. Parecia um contrassenso, afinal esses organismos fabricam seu alimento a partir da luz.
O resultado valeu refazer o experimento com um olhar mais detalhado, com três grupos de cianobactérias expostas por oito dias a tratamentos distintos, que refletem as estações bem marcadas, típicas de zonas temperadas: oito horas de luz e 16 de escuridão a cada dia, simulando o inverno; o mesmo tempo de luz e de escuridão, um quadro de meia estação; e iluminadas por 16 horas, como se fosse verão, sempre em 30 graus Celsius (°C), a temperatura preferida por essas bactérias. Nessas condições, as gerações dos microrganismos se sucediam até que a pesquisadora colhesse amostras que punha no gelo dentro de tubinhos de plástico. “De tempos em tempos eu tirava algumas gotas do meio de cultura com bactérias no gelo e punha em placas novas para avaliar quantas células tinham sobrevivido”, relembra Jabbur. Por volta de cinco dias depois, as bactérias tinham se reproduzido o suficiente para que fosse possível contar os pontos verdes: eles eram três vezes mais abundantes nas que receberam iluminação de inverno, indicando que as gerações anteriores teriam se adaptado às condições de frio, ainda que não tivessem sido expostas a elas. O projeto, que era uma curiosidade lateral, acabou se tornando o foco principal de seu doutorado e lhe garantiu destaque na área. “É um resultado que as pessoas associam a mim.”
Relógio modelo
De acordo com a física Gisele Oda, coordenadora do Laboratório de Cronobiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), as cianobactérias tiveram um papel central na evolução do conhecimento da cronobiologia por terem desbancado, desde os anos 1980, a arraigada noção de que o relógio biológico estaria presente somente em organismos com núcleos celulares organizados, ausentes nesses microrganismos. “Com elas, demonstrou-se que todos os seres vivos, mesmo os unicelulares, com e sem núcleos nas células, têm ritmos circadianos”, conta a pesquisadora, que não participou do estudo, mas conheceu Jabbur quando esta cursava a graduação no IB-USP.
Oda estuda como roedores subterrâneos, os tuco-tucos, distinguem dias longos de dias curtos mesmo passando boa parte do tempo sem ver luz (ver Pesquisa FAPESP nº 261). “As cianobactérias surpreenderam mais ainda porque apresentam sazonalidade, e ainda por cima conseguem determinar que o dia é mais longo no verão do que no inverno, sendo que cada indivíduo pode viver menos do que um dia inteiro”, compara. “Pensávamos que seria necessário viver no mínimo 24 horas para poder dizer que o dia é mais longo do que a noite no verão.”
O biólogo Carlos Hotta, do Instituto de Química (IQ) da USP, coordena um grupo especializado na investigação dos ritmos circadianos das plantas e também se declara surpreso com o fato de bactérias terem um mecanismo para perceber um espaço de tempo tão grande. Ele não participou do estudo e define o relógio biológico das cianobactérias como completamente distinto dos outros organismos, com um oscilador central que define o ritmo com base apenas em proteínas e suas interações, além de meios de detectar o ambiente e levar a informação ao organismo.
Jabbur explica que essa espécie tem cerca de 2.700 genes, entre os quais os três identificados por Johnson e colaboradores. A cada dia, kaiC passa por um processo químico de ganho e perda de moléculas com fósforo, em consequência de interações entre kaiA e kaiB. Esse movimento de fosforilação e desfosforilação é sincronizado com o dia e a noite e se dá por meio de reações químicas cíclicas que dependem só das proteínas, sem a necessidade de ativação continuada dos genes e de transcrição gênica.
Do ponto de vista do laboratório, esse sistema químico baseado em proteínas significa que os experimentos podem ser feitos de forma simplificada dentro de tubos de ensaio, sem a presença das células propriamente ditas. “Isso torna esse sistema especialmente bom para o estudo cronobiológico e nos permite, por exemplo, deixar o relógio parado em uma parte do ciclo”, diz a pesquisadora, que depois do doutorado se estabeleceu no Reino Unido no laboratório do biólogo britânico Antony Dodd, que investiga como a regulação circadiana afeta a adaptação de plantas e microrganismos às flutuações ambientais.
Ela verificou que, quando expostas a dias curtos, as cianobactérias mudam a composição de sua membrana, com dobras nos fosfolipídios que a tornam menos rígida, um processo conhecido como dessaturação. “Elas fazem isso de forma antecipatória.” Com a membrana mais permeável, aumentam as trocas de moléculas entre as células e o meio, o que contribui para a sobrevivência no inverno.
“Para as plantas, a capacidade de prever as estações é fundamental e envolve a definição de quando produzir flores ou perder as folhas”, compara Hotta. Quem não tiver a capacidade de saber a hora do dia e a estação do ano está em desvantagem evolutiva. Mas para entender que um organismo esteja preparado para lidar com algo que excede em muito seu tempo de vida, é preciso mudar o ponto de vista evolutivo para uma visão de que a seleção natural atue sobre a linhagem, e não sobre a bactéria individual, afirma o artigo na Science.
O estudo reforça a noção do fotoperiodismo como um fenômeno muito antigo e fornece um modelo para estudar seus mecanismos e sua evolução. De antiguidade evolutiva, aliás, as cianobactérias entendem: esse tipo de organismo existe há cerca de 3,5 bilhões de anos e contribuiu para criar a possibilidade de vida na Terra, ao produzir grandes quantidades de oxigênio por meio da fotossíntese.
“Queremos usar as cianobactérias como modelo para entender como respostas fotoperiódicas podem evoluir diante da mudança climática: basicamente dar para elas um cenário como o que se prevê para 2100 e ver como evoluem depois de alguns anos sendo expostas a essas condições”, propõe Jabbur. As soluções usadas por elas podem, por exemplo, guiar o cultivo de plantas alimentícias de forma mais produtiva.
Artigo científico
JABBUR, M. L. et al. Bacteria can anticipate the seasons: Photoperiodism in cyanobacteria. Science. v. 385, n. 6713, p. 1105-11. 5 set. 2024.