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Resenhas

A caixa pré-modernista

Kit da Edusp traz à luz vanguarda indigenista de Rego Monteiro

Fale em índio malandro e você logo pensará em Macunaíma. Ouça a palavra antropofagia e logo virá à sua cabeça o nome de Oswald de Andrade. Pesquise vanguarda no Brasil e só se comentará a Semana de 22. Mas, bem antes de tudo isso ser inventado, um pernambucano pouco conhecido influenciou a cabeça desses paulistas tão celebrados. Vicente do Rego Monteiro (1889-1970) foi o moderno número um e morreu se queixando de que poucos o reconheciam como tal. A justiça tardou e não falhou. A Edusp acaba de lançar a caixa Do Amazonas a Paris: as lendas indígenas de Vicente do Rego Monteiro, um kit que, nos moldes da Caixa modernista, de 2003, traz, em edição fac-similar, com tradução para o português (o original é em francês), duas raridades de Rego Monteiro, editadas na França entre 1923 e 1925, respectivamente: Légendes, croyances et talismans des indiens de l’Amazone e quelques visages de Paris. Organizada pelo professor da USP Jorge Schwartz, a caixa com os livros reproduz originais que estão guardados no acervo de Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP). O mesmo kit serviu como catálogo para a exposição homônima que, até fevereiro, estava em cartaz em Paris, na Maison de l’Amérique Latine.

Lendas e crenças é uma deliciosa mistura de estética marajoara e orientalismo japonês ilustrando a cosmogonia tapuia e tupi, como o nascimento da noite, da lua e do mar; histórias sobre o broto das palmeiras; a origem do Amazonas; gênios e poderes do amor boto; e um sem-número de historietas sobre medos, bichos, assombrações, velhos de mil mulheres, cobras e personagens míticos como Curupira, Caapora, Tupã etc. A apresentação do fac-símile é primorosa e os desenhos de Rego Monteiro, de um vanguardismo inaudito. Impossível não pensar que, cinco anos depois deles, Mário de Andrade buscaria nesses livros inspiração para seu Macunaíma. O antropófago desenhado pelo pernambucano certamente marcou Oswald. E, bem antes da Semana, o pintor, na França, já sabia que o caminho do novo passava pela recuperação, estilizada, do passado mítico das nossas raízes mais ancestrais. Era a ousadia de mostrar a brasilidade mais extremada como contraponto da cultura europeizada e, ainda mais abusado, na própria Europa.

Daí a paródia genial de Algumas vistas de Paris, em que, nos moldes dos antigos viajantes europeus que vinham ao Brasil para descrever o exotismo, Rego Monteiro inventa um diário de um velho cacique em visita aos principais pontos turísticos da cidade-luz: a torre Eiffel (“São os escombros da torre de Babel”), o Trocadero (“Foi com o maior aperto no coração que vi meus ancestrais em posturas estranhas”), o arco do Triunfo, entre outros. O desenho do nativo-Rego Monteiro é uma primorosa mistura de art déco geométrica e o traço marajoara, presente no outro livro da caixa. Um programa de índio, no bom sentido da expressão.

Jorge Schwartz (org.). Do Amazonas a Paris: as lendas indígenas de Vicente do Rego Monteiro. (Edusp, 200 páginas, R$ 150,00)

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