Os músicos são competentes, os instrumentos são de primeira linha, o repertório é agradável e o maestro tira o máximo de sua orquestra, mas o som não flui bem. Os músicos não ouvem uns aos outros e o público não aproveita o eficiente conjunto musical. Um problema que ocorre em muitas salas de espetáculo novas ou antigas. A arquitetura, o tipo de construção e, principalmente, os materiais usados no acabamento da sala nem sempre são os mais indicados para a obtenção de uma boa sonoridade. Para estudar melhor esse tipo de fenômeno e suas variáveis, além de oferecer soluções e uma ferramenta acessível para os profissionais da área, um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveu um software para analisar o comportamento sonoro de salas, teatros e auditórios que pode ser obtido gratuitamente, via download, da internet. Com ele, os pesquisadores fazem medições com o auxílio de um laptop, microfones e caixas de som nos ambientes a serem analisados.
A análise de variáveis engloba valores de 12 parâmetros que fornecem informações sobre aspectos sonoros ligados a inteligibilidade dos sons, equilíbrio entre graves e agudos, distribuição da energia sonora dentro da sala e percepção da posição das fontes sonoras como caixas acústicas, vozes e instrumentos musicais. Também envolve a reverberação, tempo em que um som, após terminar, continua ressoando com suas múltiplas reflexões nas superfícies que compõem um ambiente.
“O software tem funções que o tornam mais abrangente e completo que outros produtos comerciais existentes no mercado”, diz Fernando Iazzetta, professor do Laboratório de Acústica Musical e Informática (Lami) do Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. Ele coordenou um projeto temático financiado pela FAPESP que teve o software como principal resultado. “Nossa área é o estudo da acústica e o sistema faz medições de parâmetros do som nos ambientes a serem estudados.” O software possui ferramentas de cálculo que auxiliam na análise acústica de ambientes e as medições são realizadas a partir da geração de sinais sonoros especiais que são captados por microfones colocados em cada posição que se deseja analisar de uma sala. Ele calcula a resposta impulsiva, que é a resposta da sala ao impulso mecânico do som, caracterizado como ondas que se propagam no ar em variações entre 20 e 20 mil vezes por segundo, ou freqüências de 20 a 20 mil hertz que correspondem à faixa percebida pela audição humana.
A resposta impulsiva fornece um modelo temporal das reflexões na sala, registrando o comportamento do som no ambiente. “Com os números que ele nos fornece podemos também comparar os resultados obtidos com a percepção dos músicos, ou a subjetividade de cada um em relação à sala, se o som está bom ou mau para os instrumentistas.” Isso é realizado por meio de testes subjetivos em que alguns trechos musicais gravados em um estúdio anecóico, onde não existem ecos nem reflexões das ondas sonoras, são tocados a partir de um CD nas salas estudadas. Esses trechos são gravados de modo idêntico em cada sala e, posteriormente, apresentados a músicos experientes que podem comparar as gravações e avaliar como uma determinada música soa em salas diferentes. Outra possibilidade, em estudos mais avançados com o software, para testes também de estúdios de gravação, é o uso de um sistema binaural que simula a audição humana. Esse equipamento é dotado de um busto semelhante a um manequim. As orelhas dele têm formato e contornos iguais às humanas que facilitam a captura de som por meio de microfones especiais embutidos.
Parceria musical
O software, que leva o nome de AcMus, começou a ser desenvolvido em 2002 e contou com a parceria do Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, liderado pelo professor Fábio Kon, além de pesquisadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Escola Politécnica (Poli) e do Instituto de Física (IF) da mesma universidade. No final de 2006 estava validado e pronto para ser distribuído pela internet, via download, no endereço: http://gsd.ime.usp.br/acmus/ O software já começou a ser utilizado por profissionais para auxiliar a reforma e a construção de teatros e estúdios de gravação, como, por exemplo, na reforma do teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). “A partir das medidas produzidas pelo sistema foram feitas as adaptações para que o ambiente tenha maior qualidade de som”, diz o professor Iazzetta.
“Pelo que sabemos, dois outros doutorandos, um da Poli-USP e outro da engenharia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além de dissertações de mestrado e vários projetos de iniciação científica também já utilizaram o software em seus trabalhos. Mas qualquer músico, por exemplo, que queira analisar e adaptar a sua sala de ensaio na própria casa, por exemplo, pode usar o AcMus, mesmo com microfones e caixas acústicas caseiras.” O uso do programa também é indicado para ambientes como salas de aula e pequenos auditórios para palestras. A análise dos resultados serve para melhorar a sala e o conseqüente nível de inteligibilidade de uma palestra. Um exemplo de dificuldade na projeção da voz aconteceu em alguns dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), no Rio de Janeiro, criados no início dos anos 1980, em que o som de uma sala de aula interferia em outra, porque algumas paredes não chegavam até o teto. Com isso, o nível elevado de ruído diminuía a capacidade de concentração dos alunos e obrigava os professores a falar muito alto, prejudicando a voz desses profissionais. O problema foi resolvido, depois de um estudo acústico, simplesmente colocando-se tijolos para tampar as aberturas.
Dentro em breve, o software terá também a função de simular o comportamento acústico em um teatro ainda na fase de projeto. “Os mesmos parâmetros de medição de uma sala real são calculados na planta, em três dimensões, do local a ser construído, garantindo a boa qualidade do som e eliminando possíveis problemas antes da construção”, diz Iazzetta. Será possível analisar a geometria da sala, simular o comportamento acústico e fazer uma descrição detalhada dos materiais a serem usados. “Essa simulação é realizada levando-se em consideração não apenas a geometria, mas também o desempenho acústico de cada superfície que compõe o ambiente. Os materiais que revestem essas superfícies possuem coeficientes de absorção sonora que determinam a quantidade de energia do som que é absorvida ou refletida de volta para o ambiente. Por exemplo, se um material absorve 20% das ondas, ele reflete os outros 80%.”
Materiais rígidos e lisos como paredes e tijolos tendem a refletir o som, enquanto materiais macios e porosos como tapetes, espumas e estofados absorvem as ondas sonoras. São características importantes também para o tipo de cadeira da platéia. Ela precisa ser equivalente à absorção do som de uma pessoa média. “Isso acontece porque o som não pode variar quando algumas cadeiras estão vazias, ou mesmo antes da apresentação, quando da passagem do som que normalmente é feita com o teatro vazio.” Para melhor caracterização das medições acústicas, o AcMus leva em conta ainda outros dados como umidade e temperatura da sala.
Para validar o software e testá-lo em relação à funcionalidade, os pesquisadores fizeram uma análise comparativa do comportamento acústico de seis salas, todas da administração pública. Em São Paulo, eles levaram os equipamentos para cinco teatros: anfiteatro Camargo Guarnieri, com 367 lugares, auditório do Memorial da América Latina, 1.600, Teatro Municipal de São Paulo, 1.580, Teatro São Pedro, 636, e Sérgio Cardoso, 864. O sexto foi no município vizinho de Diadema, no Teatro Clara Nunes, com 460 lugares. As medições indicaram que os teatros que apresentam as melhores condições para uma boa escuta musical são o Municipal de São Paulo e o São Pedro, não coincidentemente os preferidos pelos músicos dentre esses seis. “O software compara o som tocado pelo computador com o captado pelos microfones. Nessa subtração de um sinal do outro, o que sobra é a sala. Nesse sentido, os mais estáveis são o Teatro Municipal e o São Pedro”, diz Iazzetta.
Mesmo com uma boa estabilidade de som, os pesquisadores detectaram pontos de perturbação sonora no Teatro Municipal, inaugurado em 1911. “Bem no meio da platéia, no corredor central, existe um ponto de desequilíbrio muito forte porque é o ponto focado pela cúpula no centro do teatro que, em vez de espalhar o som, se concentra num mesmo local prejudicando a boa audição.” O problema desaparece deslocando-se um pouco mais de 1 metro para o lado. Outra característica do Municipal é o comportamento do som nos nichos formados nos balcões das laterais do teatro. Nessas posições, ondas sonoras são refletidas pelas paredes e pelo teto formando ressonâncias que alteram o equilíbrio sonoro. “Mas o Municipal, como muitos teatros antigos, tem muitas superfícies com reentrâncias e acabamentos irregulares que servem como bons difusores do som.”
Graves freqüências
Nos outros teatros problemas estruturais e de materiais atrapalham um pouco o desempenho do som. No Sérgio Cardoso uma enorme câmara atrás do palco funciona como uma caixa de ressonância em que as freqüências graves ficam emboladas e os músicos têm dificuldade de se ouvir. No Memorial da América Latina o problema está nas paredes acarpetadas que absorvem freqüências mais agudas. A solução em teatros como o Sérgio Cardoso e outros com acústica problemática é a amplificação com microfones e mesa de som que compensa as deficiências sonoras da sala. Mas mesmo com amplificação alguns locais podem também apresentar problemas. Exemplo clássico foi a inauguração do Credicard Hall, em São Paulo, em 1999, quando o músico João Gilberto reclamou muito do som durante a sua apresentação, causando vaias na platéia. “O problema é que o som batia no fundo e voltava com um atraso perceptível. Era possível ouvir o eco nas primeiras filas da platéia”, lembra Iazzetta. “Isso aconteceu porque não existia na época um revestimento absorvedor ou um material difusor no fundo do palco.”
Os pesquisadores envolvidos com o desenvolvimento do AcMus querem que ele tenha uma grande propagação. Para isso, além da distribuição gratuita, o software é multiplataforma. Pode ser usado em ambientes Windows, Linux e Macintosh. Sua estrutura também permite a adição de funções por meio de plug-ins (programas menores) e o código fonte é aberto, possibilitando amplo uso e colaborações dos usuários na evolução do sistema.
O Projeto
Projeto e simulação acústica de ambientes para escuta musical (nº 02/02678-0); Modalidade Projeto Temático; Coordenador
Fernando Henrique de Oliveira Iazzetta – USP; Investimento R$ 135.425,25 e US$ 3.527,00 (FAPESP)