Todo poeta que se torna um clássico foi inicialmente considerado fonte de estranheza e singularidade, argumenta o crítico norte-americano Harold Bloom, no célebre livro A angústia da influência – Uma teoria da poesia, de 1973. Machado de Assis (1839-1908), que também foi poeta, parece se enquadrar bem nessa definição. Hoje considerado central na literatura brasileira, o autor carioca teve seu talento imediatamente reconhecido por seus contemporâneos que, no entanto, o classificaram como caso único, deslocado do meio literário local. Em pesquisa que analisou o processo de recepção da obra do escritor, Hélio de Seixas Guimarães, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), identificou como somente a partir da década de 1950 ele foi incorporado por escritores e críticos à tradição moderna.
Guimarães explica que, entre meados do século XIX e o começo do XX, eram valorizados escritores brasileiros que traziam a chamada “cor local” em seus trabalhos, bem como autores realistas e naturalistas, empenhados em tratar de maneira direta a situação social, econômica e política do país. Nesse sentido, Machado não se alinhava com seus contemporâneos, avalia Guimarães, “já que tratava de tudo isso, mas de outro modo, quase sempre mais profundo e sutil”. “Críticos da época afirmavam que ele era um escritor preocupado em analisar o que se passa no interior dos personagens, deixando de lado, por exemplo, descrições da natureza e dos costumes, como faziam outros escritores do período”, justifica. Críticos pioneiros como Silvio Romero (1851-1914), José Veríssimo (1857-1916) e Araripe Júnior (1848-1911) defendiam que Machado deveria ser analisado como caso isolado na literatura local e, por causa do humorismo presente em seus romances, aproximava-se mais da tradição britânica. “Em suas histórias da literatura brasileira, Romero citou Machado em notas de rodapé, enquanto Veríssimo tratou de sua obra em um capítulo isolado, apartado dos estudos sobre outros autores do mesmo período”, conta o pesquisador.
O reconhecimento do talento de Machado, aliado à dificuldade de aproximá-lo das características que marcaram a literatura brasileira nos primeiros anos do século XX, foi acompanhado da ideia de que era um escritor acadêmico, sintonizado com valores tradicionais e pouco preocupado em refletir sobre a identidade nacional. Também por esse motivo, autores modernistas, como Mário de Andrade (1893-1945), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Monteiro Lobato (1882-1948), desenvolveram análises ambivalentes sobre sua obra. “Para eles, Machado era uma figura difícil de engolir. Mário de Andrade, por exemplo, registrou que o admirava, porém não o amava”, relata o pesquisador. Como lembra a crítica literária Ieda Lebensztayn, escritores modernistas procuravam abrir novos caminhos à literatura nacional, posicionando-se contra tendências precedentes. Nesse contexto, Machado, criador da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1897, era considerado uma influência negativa, na medida em que não combatia movimentos anteriores, “tendo vivido como um funcionário burguês acomodado”, nas palavras de Mário de Andrade. “Mário demonstrou ressalvas ao fato de Machado não assumir sua origem mestiça e preferir fazer-se inglês. Ao mesmo tempo, admirava sua dedicação à arte e o potencial crítico”, destaca Lebensztayn.
Já Monteiro Lobato, segundo a crítica e pesquisadora de literatura brasileira, ao analisar as decorrências artísticas da trajetória social de Machado, afirmava que a origem humilde e o processo de ascensão lhe possibilitaram ter a intuição perfeita de como escrever sobre a estratificação social do país. Porém, ao mesmo tempo, na vida prática também o motivaram a cultivar seu próprio gregarismo, tendo-o levado, por exemplo, a fundar a ABL, espaço restrito a uma elite intelectual. Lebensztayn é coorganizadora, com Guimarães, de livro que mostra as reações de 34 escritores à obra e à figura de Machado, entre 1908 e 1939. “Cada ficcionista tem nele um modelo com elementos dos quais se aproximar ou se distanciar, na construção de suas próprias identidades”, explica a pesquisadora.
Ainda sobre os escritores modernistas, Guimarães relata que Drummond é exemplar para evidenciar o desenvolvimento da relação desses autores com Machado. “Reuni os textos em que o poeta, no decorrer de seis décadas, lida com a figura um tanto incômoda de Machado, que ele repudiava na juventude, mas passou a amar plenamente na maturidade”, conta o pesquisador, que estuda especificamente o caso do poeta mineiro no livro Amor nenhum dispensa uma gota de ácido – Escritos de Carlos Drummond de Andrade sobre Machado de Assis (Três estrelas, 2019). Nesse sentido, ele lembra que em 1958 Drummond dedica ao antecessor o poema “A um bruxo, com amor”, considerado uma das homenagens mais significativas de um escritor a outro na literatura brasileira. “Ao escrever esse poema, Drummond parece incorporar Machado plenamente em sua própria poesia”, observa.
Também no final dos anos 1950, o poeta liderou uma campanha contra o projeto da ABL de construir um mausoléu, para onde seriam transferidos os restos mortais de Machado, então enterrados em cemitério no Rio de Janeiro. “Drummond defendia que isso representaria uma espécie de retorno àquele lugar antigo que Machado ocupou nas décadas seguintes depois de sua morte, quando o associavam a um escritor acadêmico e estranho ao ambiente literário local”, destaca.
Atuação em periódicos
Como parte desse processo de revisitação de seu percurso literário, novas facetas de Machado também têm sido reveladas a partir da análise de textos que foram considerados de menor importância, até meados dos anos 2000. Nesse caminho, em duas obras publicadas em setembro resultantes da pesquisa A colaboração de Machado de Assis na Semana Ilustrada, Silvia Maria Azevedo, da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (FCL-Unesp), campus de Assis, reuniu e identificou a autoria de crônicas que ele publicou na revista entre 1869 e 1876, com o pseudônimo de “Dr. Semana”. “Até então, se pensava que o Dr. Semana era um pseudônimo coletivo e apenas alguns textos haviam sido atribuídos a Machado. Diferentemente dessa interpretação, constatei que todo o conjunto é de sua autoria”, informa.
Em atestado de óbito, romancista é classificado como branco
De acordo com Azevedo, a identificação foi possível a partir da análise de recursos estilísticos utilizados por Machado, também presentes nas crônicas do Dr. Semana. Um deles, a “crítica às avessas”, segundo a qual o autor elogiava determinadas referências literárias consideradas de baixa qualidade. “Essa prática de dizer ao contrário, valendo-se de tom irônico, é própria de Machado”, relata, mencionando as frequentes citações dos dramaturgos William Shakespeare (1564-1616) e Jean-Baptiste Poquelin, o Molière (1622-1673), como alguns dos outros elementos que permitem comprovar a autoria das crônicas. Em sintonia com as análises propostas por Guimarães, Azevedo indica que as crônicas revelam o envolvimento de Machado com questões de seu tempo. “Elas comprovam que as críticas dos seus contemporâneos sobre sua suposta indiferença à realidade política e social do Brasil eram infundadas”, defende.
Lúcia Granja, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) da Unesp, campus de São José do Rio Preto, afirma que assuntos abordados pelo escritor nas crônicas publicadas em periódicos foram mais tarde recriados em sua obra ficcional. Como resultado de sua tese de livre-docência, Granja editou, no ano passado, Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: Suporte, mídia e ficção, obra em que analisa o diálogo entre os textos publicados em periódicos e a ficção machadiana. “A revalorização de gêneros que ficaram abafados pelos romances revela aspectos desconhecidos de sua trajetória como escritor. Cinco de seus nove romances foram publicados de forma seriada em periódicos, antes de sair em livros, mesmo caso de quase todos os seus cerca de 200 contos”, diz.
Consagração oficial
A mudança de escritor deslocado do meio literário nacional para autor central na tradição moderna encontrou seu ponto de virada em 1939, quando o então presidente da República Getúlio Vargas (1882-1954) decretou a realização de celebrações para marcar o centenário do nascimento de Machado de Assis, em ações desenvolvidas no âmbito da Biblioteca Nacional, do Instituto Nacional do Livro e do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. As iniciativas envolveram a publicação de edições comemorativas, a organização de uma exposição e até a emissão de moedas e selos. “Foi o primeiro grande caso de consagração literária no Brasil a mobilizar grande aparato oficial e editorial. Machado foi tomado pelo Estado Novo [1937-1945] como escritor e homem exemplar, que fomentou o desenvolvimento de uma narrativa centrada na trajetória do menino pobre que nasceu no Morro do Livramento e ascendeu até a Academia Brasileira de Letras”, conta Hélio Guimarães. Na mesma época, críticos como Augusto Meyer (1902-1970) e Lúcia Miguel Pereira (1901-1959) começaram a encaixá-lo na tradição literária internacional e nacional, movimento que se consolida na década de 1950, quando Antonio Candido (1918-2017) publica Formação da literatura brasileira (Livraria Martins Editora, 1959).
O pesquisador da USP lembra, ainda, que nos 30 anos que se seguiram à morte do romancista, houve um silenciamento em relação ao fato de ele ser negro. “Em carta a José Veríssimo, Joaquim Nabuco [1849-1910] diz ver nele somente o grego”, conta, lembrando que no atestado de óbito o romancista é classificado como “branco”. Essa situação começou a mudar com uma biografia escrita por Lúcia Miguel Pereira na década de 1930, que considera a negritude de Machado como ponto positivo e fundador de sua capacidade de enxergar a sociedade brasileira de ângulos diversos. “Hoje, Machado é reivindicado e apresentado como autor negro, evidenciando como discussões atuais do país continuam a se projetar sobre ele também a partir da perspectiva biográfica.”
Ainda como parte dos resultados da pesquisa, em livro a ser publicado este ano, Guimarães abordará o processo de consagração de Machado depois de 1939, período em que a internacionalização de sua obra ganha impulso, com as primeiras versões dos romances para o inglês. Na esteira desse processo, em 1953 Helen Caldwell (1904-1987), professora da Universidade da Califórnia, traduziu Dom Casmurro e produziu um estudo crítico sobre o romance de 1899. “Caldwell desafiou a autoridade do narrador e questionou sua versão sobre o casamento de Capitu, uma das personagens, mudando o rumo da leitura que era feita sobre o livro”, explica Guimarães. Segundo ele, essa visão teve impacto nas interpretações de críticos brasileiros, que a partir da década de 1970 mostraram que os romances de Machado contêm críticas à formação social brasileira. Guimarães afirma que, hoje, no marco dos 180 anos de seu nascimento, essas leituras são centrais para compreender o autor.
Projeto
Tradutores, traduções e edições da obra de Machado de Assis em inglês – Helen Caldwell e a University of California Press (nº 19/00643-5); Modalidade Bolsa de Pesquisa no Exterior; Pesquisador responsável Hélio de Seixas Guimarães (USP); Local de pesquisa Universidade da Califórnia em Santa Bárbara; Investimento R$ 18.924,42.
Livros
GUIMARÃES, H. S. e LEBENSZTAYN, I. (orgs.). Escritor por escritor, Machado de Assis segundo seus pares 1908-1939. São Paulo: Imprensa Oficial, 2019.
AZEVEDO, S. M. Machado de Assis – Badaladas Dr. Semana. São Paulo: Nankin Editorial, 2019.
GUIMARÃES, H. S (org.). Amor nenhum dispensa uma gota de ácido – escritos de Carlos Drummond de Andrade sobre Machado de Assis. São Paulo: Três estrelas, 2019.
GRANJA, L. Machado de Assis – Antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2018.