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Obituário

Roberto da Silva formou educadores para ensinar pessoas privadas de liberdade

Pedagogo foi presidiário antes de se tornar professor da USP e acreditava que a educação podia transformar o futuro de infratores

Marcos Santos/USP Imagens Silva, em 2014: pedagogo criou disciplina na USP sobre o Estatuto da Criança e do AdolescenteMarcos Santos/USP Imagens

A cada entrevista que concedia, o pedagogo paulista Roberto da Silva ouvia mais perguntas sobre seu passado de presidiário e de menino criado em abrigos do que sobre sua atuação acadêmica como professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Silva, que morreu aos 66 anos no dia 18 de dezembro, não se importava em contar e recontar sua trajetória. Costumava dizer que esse percurso lhe servia como metodologia de trabalho: sua história de vida e o olhar “de dentro” foram o subsídio para as pesquisas que realizou na área de pedagogia social. Nelas defendia, por exemplo, que a educação podia transformar o futuro de presos e adolescentes infratores.

Silva tinha 4 anos quando foi tirado da mãe pelas autoridades, no início da década de 1960. Ela havia saído do interior paulista rumo à capital com os quatro filhos pequenos. Depois de passar por dificuldades na nova cidade, procurara o Juizado de Menores em busca de auxílio financeiro. Os outros três irmãos, todos menores de 7 anos, também foram separados da família. Silva cresceu na Fundação Nacional para o Bem-Estar do Menor (Funabem), que mais adiante se transformaria em Febem. Aos 15 anos, teve acesso a documentos em que descobriu que não havia sido abandonado e que tinha irmãos. Perto da maioridade, foi liberado. Morou na rua por anos e reproduziu o “ciclo de formação da marginalidade” que depois discutiria em sua produção teórica.

Preso e condenado por furtos, esteve na Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, entre 1979 e 1984, onde encontrou meninos que haviam crescido com ele na Febem. Veio dali a convicção de que a perpetuação da pobreza e da violência era estrutural. Curioso e inquieto, começou a estudar, e em 1993 graduou-se em pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

No mestrado em educação, já pela USP, propôs-se a traçar o perfil de meninos abandonados e órfãos colocados em internatos entre 1958 e 1964, na cidade de São Paulo, e que tivessem saído da Febem perto da maioridade, como foi o caso dele. Silva quantificou quantos desses ex-internos cometeram crimes e foram posteriormente presos. O estudo, concluído em 1997, foi publicado no livro Os filhos do governo, lançado no ano seguinte, pela editora Ática. Já o doutorado, defendido em 2001 na USP, com apoio da FAPESP, analisou a eficácia sociopedagógica da pena de privação de liberdade. Em 2002 Silva se tornou professor da FE-USP, onde foi admitido por concurso público.

A pesquisa de mestrado incluiu a tentativa de encontrar os próprios familiares. “Somente em 25 de janeiro de 1996, quando localizei dois de meus irmãos, pude finalmente ter certeza de que meu pai e minha mãe são aqueles que figuram na minha certidão de nascimento”, relata em Os filhos do governo. Também descobriu que a mãe havia morrido no hospital psiquiátrico onde fora internada.

Na visão de Silva, as instituições de privação de liberdade no Brasil, tanto para adolescentes como para adultos, trabalham para administrar o problema, e não para resolvê-lo. Assim, as pessoas seriam devolvidas à sociedade em condições ainda mais precárias do que quando foram detidas.

Na intenção de romper esse ciclo, Silva dedicou grande parte da carreira acadêmica a formar recursos humanos para pensar e implementar a educação fora do ambiente escolar, em especial nas prisões e centros socioeducativos para jovens infratores. Defendia que questões sociais só seriam prioridade nas universidades brasileiras quando alunos provenientes das cotas, de baixa renda e negros, como ele, chegassem à pós-graduação e transformassem os problemas da vida real em objetos de pesquisa. “Ele teve um papel fundamental na formação de pesquisadores da área de educação que investigam a questão do encarceramento”, afirma a socióloga Liana de Paula, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), especializada em justiça juvenil e atendimento socioeducativo. “Seus orientandos fizeram trabalhos muito interessantes no sentido de refletir sobre um ciclo feito para perpetuar a institucionalização.”

Um dos principais projetos de Silva era o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação em Regimes de Privação de Liberdade (GEPÊ Privação). Desde 2017 a iniciativa oferece na FE-USP, em parceria com o Instituto Paulo Freire, cursos para capacitar educadores que atuem em presídios e na Fundação Casa, antiga Febem. A metodologia foi reunida nos livros Didática no cárcere I e II (Giostri, 2017), sob sua organização.

Em sua área de estudo, Silva coordenou a coleção de livros Pedagogia social (Expressão & Arte), que em 2022 chegou ao 13º volume. Também foi idealizador e professor, por mais de 15 anos, de uma disciplina sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), oferecida em todas as licenciaturas da USP. Além disso, ministrou cursos de extensão sobre o assunto para profissionais como conselheiros tutelares, defensores públicos, promotores, juízes, educadores de abrigos e da Fundação Casa.

“Existe uma carência muito grande nessa área de promoção e garantia dos direitos da criança e do adolescente. Segundo o ECA, crianças e adolescentes são sujeitos de direitos. E há uma dificuldade extraordinária dos adultos e das autoridades de entender isso”, disse ele em 2020, ao podcast Pesquisa Brasil, de Pesquisa FAPESP.

O ECA entrou em vigor em 1990. Mais tarde, o pedagogo contribuiu como consultor para a regulamentação da legislação, em 2009. As determinações estabelecem, por exemplo, que nenhuma criança passe mais de dois anos em abrigos e que as instituições tenham espaços com dimensões menores em vez dos enormes “depósitos de crianças”, como dizia, em que viveu a infância e a adolescência.

Na mesma época, outras regulamentações do ECA deram origem ao Cadastro Nacional de Adoção. A medida impôs normas para restringir adoções internacionais como a que levou no passado para a Europa Flávio, seu irmão mais velho, de quem Silva nunca mais teve notícia.

Tanto a sala na FE-USP como sua casa estavam sempre cheias de alunos e integrantes dos vários projetos de pesquisa de que participava, conta a pesquisadora Juliana Gama Izar, que foi orientada por Silva da iniciação científica ao doutorado. “O professor Roberto foi um homem coerente: viveu aquilo que defendia. Era obstinado pela justiça social por meio de uma educação humanizadora.”

Casado com a fisioterapeuta Doracy Costa Oliveira, o educador morreu em São Paulo por complicações cardíacas e renais. Deixa os filhos Ana Beatriz e Roberto.

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