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Especial Einstein

Sérgio de Carvalho: A duração do espetáculo

Tempo do teatro é relativo e tem representação diferente conforme a época

Carvalho: tempo no teatro suscita reflexão

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“A duração do espetáculo teatral se relaciona com o que os atores estão fazendo no palco uns em relação aos outros, o que os atores fazem em relação à luz, à música, ao cenário… Ou seja, essa organização dos elementos da cena define a passagem do tempo e a experiência no teatro, mas isso se dá sempre na forma de trânsito com o público.” Foi assim que Sérgio de Carvalho, diretor do grupo de teatro Companhia do Latão e professor da Universidade de São Paulo (USP), armou a cena no dia 8 de novembro para demonstrar como o tempo no teatro é relativo e multidimensional, na palestra “O tempo no teatro”.

Com uma presença de palco durante a palestra que não deixou dúvidas quanto à sua ocupação principal, Sérgio de Carvalho mostrou que no teatro há vários tempos – e que o tempo da peça pode ser desconexo com o da ficção. “Porque uma peça que dura duas horas ou três horas ou quatro horas no palco pode contar uma ficção que dura anos”, disse. Buscar maneiras de representar momentos desconexos, indicar a passagem do tempo e se reportar ao passado são desafios nada banais que o dramaturgo enfrenta. E que são diferentes em cada momento da história.

O teatrólogo contou que a discussão sobre o tempo foi proeminente no meio teatral no início do século XX, a mesma época em que Einstein publicava as teorias que mudavam a física. “O teatro estava procurando um tempo não empírico, um espaço-tempo diferente, o tempo do sonho, o tempo da história, tempos diversos do tempo dos indivíduos que se relacionam.”

A grande dúvida era como representar o passado no presente – uma discussão típica da era do drama, que dominou o século XIX, em que a ação se desenvolvia em um presente contínuo, sempre em busca do futuro. “A peça começa, você vê duas pessoas se relacionando e se pergunta o que vai acontecer no futuro imediato delas.” Mas por que o teatro não poderia saltar adiante, voltar para a infância… Ou seja, apresentar um tempo não-contínuo, como fazem os romances? Não é uma limitação do teatro em si, mas uma característica que define o drama, que ainda hoje domina os palcos. “O drama é a forma literária do teatro que concentrou o olhar sobre relações entre indivíduos”, disse Carvalho, contrastando a outros momentos e outras escolas teatrais, como o teatro grego, que cultivava focos mais diversos e chegava à escala atemporal dos deuses. Mas a forma dramática se instalou e é ao que estamos habituados ainda hoje.

Um dramaturgo que tentou subverter o tempo, mas ainda dentro dos moldes do drama, foi o norueguês Henrik Ibsen. Já perto do final da vida, em 1896, ele queria representar o passado e escreveu uma peça chamada John Gabriel Borkman, em que uma mulher chega à casa de uma amiga e percebe que ela praticamente não sai de casa e no sótão mora um homem que não sai dali há 8 anos. “Você começa a ver que é uma peça meio sombria, o homem fica lá marcando o tempo, como um bicho enjaulado.” Para Carvalho, essa peça em que as pessoas já não têm presente puro é soturna e estranha, porque algo não funciona em pôr o passado no tempo presente sem sair do drama. Porque as personagens sem vida no presente são de certa forma fantasmas.

Outros tempos
Mas nem sempre houve esse cárcere do presente. Duzentos anos antes, nas peças do inglês William Shakespeare o tempo e o espaço eram descontínuos. Nelas, cenas consecutivas em diferentes pontos do palco não necessariamente seguiam o tempo da narração. A interpretação funcionava de uma maneira hoje impensável, em que as personagens também atuavam como narradores, anunciando diretamente ao público o que fizeram fora da ação do palco e quanto tempo passou. “Um homem pode representar uma mulher, um gesto representar um exército; o que você vê é diferente do que você imagina.” O diretor da Companhia do Latão deixou bem claro como nos afastamos dessa forma de narrativa com um exemplo bem corriqueiro. “Imagine como você reagiria estranhamente se visse na novela das 8 uma personagem dizer assim, para a câmera: ‘Vou representar uma mulher’. Você acharia esquisito. Eu acharia esquisito uma personagem estar conversando com a namorada e de repente olhar para a câmera e falar ‘É uma louca, mas tem método'”.

“Antes do período dramático não havia problema nenhum em pôr no mesmo quadro duas coisas, dentro do teatro, dois tempos”, contou. Muito da liberdade – e da falta dela – vem do palco: como ele se organiza, como se divide, e da cenografia. Características que mudaram muito ao longo da história do teatro, desde as apresentações de rua até os palcos com cenários elaborados. Tempo e espaço dependem um do outro, relação que volta a esbarrar nos conceitos da física.

Dos anos 1960 para cá a discussão se tornou ainda mais drástica, com uma tentativa de desconstruir o tempo da ficção. Um exemplo foi uma peça do grupo Living Theater que, em 1960, mostrava alguns homens sentados no palco de um teatrinho em Nova York. Eles se injetavam uma droga e ouviam música, nada acontecia. “O problema do tempo e da ação foi todo deslocado para a platéia”, analisou Carvalho.

Nos anos 1970 o norte-americano Bob Wilson começou a fazer peças cada vez mais longas. Uma apresentação de seu grupo pode durar 24 horas, e um ator demorar duas horas para atravessar o palco. “Talvez fosse muito chato, mas quem viu percebeu que esse jogo do trabalho do ator com aquelas imagens que estavam sendo projetadas no palco criava um completo distúrbio perceptivo no espectador, quase uma sensação de perda de referência espaço-temporal radical.”

Para ele, pensar o tempo no teatro é extremamente complexo porque é uma conjugação do espetáculo com o que esse espetáculo projeta. Conjuga o ponto de vista da ficção, da imaginação, o tempo do público e o momento histórico no qual a ação e a narração se inserem. E cada época tentou reinventar o teatro renovando essas relações que se dão sempre no nível do espaço e do tempo conjugadamente.

O tempo no teatro
Sérgio Ricardo de Carvalho Santos, graduado em jornalismo e professor-doutor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

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