É paulistano, autor de cinco romances, entre eles O prédio, o tédio e o menino cego, Mastigando humanos e Feriado de mim mesmo. Também é tradutor e colabora com diversos periódicos.
LUANA GEIGERO professor caminhou até o palco sem olhar para os lados. Sem olhar para trás, sentou-se e ajeitou o microfone, pronto para começar. Pegou o copo d’água. Bebeu. E só então olhou para a plateia de estudantes que se encontrava à sua frente.
“Meu Deus…”
Há algumas semanas despertara nele um medo terrível de algo que nunca acontecera e que, provavelmente, nunca aconteceria. Era por isso mesmo. Por ele saber que jamais aconteceria, despertou nele o medo e ele sabia: suas palestras nunca mais seriam as mesmas. Não se lembrava de como começara, talvez num dia em que se olhara mais demoradamente no espelho. Talvez num dia em que olhara mais demoradamente para os estudantes, uma ruga a mais cresceu em seu rosto e foi o suficiente. Foi o suficiente para o medo se instaurar e ele tremer diante da possibilidade de qualquer contato com aqueles garotos…
“Ah, aqueles garotos…”
Dezenas contra ele. Nem precisaria contar. Aquele cheiro de chiclete, de mochilas, de um novo ruído sendo mastigado preenchia a sala até dentro de seu terno e para dentro do ser. Aquilo já era o suficiente para ele se sentir derrotado. Mas era pago para isso; era pago para perder.
Melhor começar a falar. Assim, se concentraria em sua própria genialidade e não deixaria que os olhos passeando pela plateia se fixassem num ponto específico, num garoto específico. Seriam todos genéricos, como ele gostaria de vê-los. Mas ele sabia ” agora ele sabia ” que o genérico era ele. Mais um professor, com suas teses e seus discursos. Suas mentiras e suas desculpas. Talvez até estivesse certo, talvez até tivesse razão, mas não faria a menor diferença, se ele não pudesse tocar seus corações com a beleza que entalava em sua garganta. Ele só podia pigarrear.
Beleza. Começou. A nova geração literária. O que ele poderia dizer sobre a nova geração literária se ela estava ali, diante de seus olhos, a beleza, a nova geração, a verdade literária que escapava dos dedos de poetas como suas palavras escapariam da atenção desses todos” “Esses garotos querem acabar comigo.”
Fixou-se então na primeira fila e sentiu-se aliviado. Uma menina de óculos parecia pronta para anotar que a nova geração literária encontra nos blogs um veículo dinâmico e democrático para a circulação de ideias, apostando numa prosa espontânea, em detrimento de uma literatura elaborada. Ele começava. Sim, ela lhe salvaria.
O professor seguiu em frente. Vindo de diversas regiões do Brasil, os escritores se estabelecem no sudoeste. Mas recusava-se a subir o olhar. Recusava-se a olhar para as fileiras mais elevadas e mais distantes do auditório. Sabia que lá encontraria a morte. A sua própria. A morte de suas teses. Para que a literatura, que ele tentava dissecar, sobrevivesse no dia a dia, vigorosa, musculosa, espada em mãos, penas como flechas, cortando sua cabeça.
Ele se perdeu ligeiramente. Recorreu a um jovem de óculos da primeira fileira. Sim, a literatura perde espaço para outras formas e busca nelas próprias, no cinema, na música e na televisão, formas fragmentárias de sobreviver. E ele a agarrava firmemente, a literatura, tentava afogá-la, para que ele próprio pudesse triunfar. Trazia consigo um Machado, Proust, Kafka, Baudelaire! Mas, oh, triunfaria realmente se lhes entregasse Rimbaud. Esse, sim, matara a juventude pela vida eterna. Mostraria a todos os garotos que já não era possível, que não seriam capazes. Eles chegaram tarde.
Incapaz de acreditar, continuava falando, com medo de ser entregue à verdade. Uma nova geração literária que tem no marketing seu manifesto. Agora uma garota ria. E alto! Não bastava toda aquela felicidade implícita que o fazia cada vez mais triste” Não bastavam triunfais dentes brancos para lhe morder o pescoço” Uma garota ria alto e ele não a procurava. Não, ele não a procuraria. Pois sabia que ela estaria acompanhada de um garoto ainda mais alto, ainda mais branco, que destruiria de vez o grande romance brasileiro.
Foi quando ouviu um estalo. E sabia que estalo era aquele. Aquele estalo veio acompanhado do cheiro dos hormônios, da saliva, da boca no gargalo e da barba por fazer. Algum garoto abrira uma lata de cerveja. Ave! Ele não se atreveria a olhar. Sentia-se cada vez mais seco, sugado, sozinho num julgamento em que ele era o réu. Assassinara a literatura. Sequestro seguido de morte. Onde estavam seus mestres para lhe ajudar” Onde estavam seus cabelos” Seus hormônios” Ah, como ele queria ter sido loiro…
Num descuido, captou um sorriso de um jovem da quarta fileira. “Ao menos não é loiro”, pensou. Mas como sorria… Que lábios malvados, que dentes afiados. “Deus me proteja, se ele cravá-los em mim…” Era uma serpente hipnotizando um rato. Ele, entregue num serpentário. O sorriso do garoto colocava os pés na cadeira da frente. Mostrava-lhe a sola, para que o professor tivesse certeza de que estava sendo pisoteado. Ah, era pisoteado. Por mais que tentasse ver os garotos como serpentes, por mais que quisesse ser apenas um rato para alimentá-los, por mais que desejasse ser textura entre os dentes, tecido constituinte, proteína animal, ele sabia, eles sempre teriam pernas para lhe pisar. E por mais que desejasse fazê-los crescer, se derramar, com o que tinha a oferecer, ele sabia, só poderia fazer crescer vegetais. Só poderia adubar.
Deveria ter esquecido essa batalha, histórias, História, e ter se concentrado desde o começo em metáforas mais exatas. Deveria ter sido herpetólogo, estudado o comportamento dos répteis. Das cobras. Animais que trocam de pele, mas que nunca, jamais envelhecem. Rejuvenescem, para reafirmar. Animais exatos, para jamais discordar. Veneno denso, para jamais diluir. Ciências humanas” Como os humanos podem ter alguma ciência” Ele não tinha certeza.
Mas os répteis, as serpentes, animais exatos diante das ciências humanas têm braços para levantar ” e que braços! “Meu Deus…” que braços, que apontam “para mim”, que “me fazem calar”. “Eu queria insistir. Queria prosseguir, queria chegar até o final da estrada, e continuar, me jogar no mar, afogar. Mas esses garotos me levantam o braço, me desaceleram.”
O professor é obrigado a levantar os olhos até a última fileira. E lá está o rapaz de braço erguido ” “e que braço!”. O professor poderia se calar para sempre se tivesse um braço como aquele, ereto, levantado, erguendo-o para além das dúvidas e das possibilidades. Da utopia pessoal de cada escritor, enquanto que, em conjunto, são céticos.
Pediu a Deus que o garoto não perguntasse nada de complicado. Porque assim estaria se colocando no mesmo barco que o professor, mas com braços mais fortes para remar. Estaria se enganando que também pensava sobre literatura, quando na verdade a literatura era ele próprio, de braço levantado. “Não fale nada, meu jovem, fique quieto. Não sorria em voz alta, porque rirá para me rebaixar. Essa literatura que tomo como minha está em seus braços e eu não posso carregar. Não posso carregar o peso de meus anos, com a agilidade dos seus. Você dança, enquanto tento caminhar.”
O professor teve de dar espaço às dúvidas dos alunos. Pausar seu próprio discurso. Teve de focalizar seus olhos no braço levantando, naquele tríceps exposto, embaçando seus óculos de leitura. Foram tantas metáforas. Tantas frases gastas. Tantas palavras para justificar sua existência. E agora ele era obrigado apenas a deixar de ser. Deixar de exercer para que um garoto perguntasse. Não haveria comparações suficientes para sua derrota. Não haveria. Nem alegoria. Por favor, faça sua pergunta.
E a saliva umedecendo expectativas. O pomo de adão projetando-se a ele. A juventude disparando suas flechas… perguntou: O senhor pode falar mais perto do microfone? Não dá para ouvir aqui de trás.
Republicar