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Entrevista

Silvio Meira: Um realista esperançoso

Criador de um dos mais importantes ecossistemas de inovação do país, cientista da computação discute a emergência da era digital no Brasil

Léo Ramos Chaves

É recorrendo ao escritor paraibano Ariano Suassuna (1927-2014) que o conterrâneo Silvio Romero de Lemos Meira, de 65 anos, encontra as palavras certas para falar de si mesmo. “Sou um realista esperançoso”, diz o cientista da computação e um dos responsáveis pela criação do Porto Digital, um dos principais polos de tecnologia do país, que completou 20 anos em 2020. Instalado no centro histórico do Recife (PE), o Porto Digital abriga 344 empresas de base tecnológica.

O realista esperançoso, como descreveu Suassuna, é aquele que entende o problema e luta para resolvê-lo quando possível. Tal filosofia de vida acompanha Meira desde a adolescência, quando desmontava eletrodomésticos quebrados para descobrir os defeitos. Mais do que obstáculos, os desafios tecnológicos tornaram-se insumos de seu trabalho.

Professor emérito do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o paraibano de Taperoá sempre fez questão de ficar a par dos problemas reais que desafiam empresas. No início da carreira, recusou ofertas de trabalho em multinacionais para se dedicar a um projeto ambicioso: consolidar o setor de computação da UFPE e um ecossistema de inovação no Recife.

Membro do conselho de várias empresas, Meira, casado e pai de três filhos, dedica boa parte do seu tempo a pensar como tecnologias digitais e a inteligência artificial podem não apenas ajudar a elevar a produtividade desses negócios, mas também beneficiar a sociedade. Nesta entrevista, ele fala dos desafios para a consolidação do Porto Digital, traça um panorama das oportunidades da era digital no país e diz como a pandemia do novo coronavírus impactou sua rotina.

Idade 65 anos
Especialidades
Programação computacional, transformação digital, inovação, política tecnológica
Instituição
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Formação
Graduação em engenharia eletrônica no ITA (1977), mestrado em ciência da computação na UFPE (1981) e doutorado em ciência da computação na Universidade de Kent, na Inglaterra (1985)
Produção
54 artigos científicos. É autor, coautor ou organizador de cinco livros

No currículo Lattes, você se descreve como “um percussionista que se diverte muito como pesquisador”. Qual o impacto da cultura pernambucana na sua carreira?
O Carnaval foi determinante para eu me fixar no Recife. Em meados dos anos 1980, ao voltar da Inglaterra, onde fiz doutorado, acabei me envolvendo com o ambiente cultural da cidade, principalmente o Carnaval. Ajudei a fundar o Cabra Alada, um maracatu que completou 25 anos em 2020. Depois que isso entra no sangue, não sai mais. Meu envolvimento com o Carnaval é forte.

Como você foi parar no Recife?
Meu pai, paraibano de Taperoá, era fiscal da Sanbra, uma divisão brasileira da multinacional holandesa Bunge. O trabalho dele exigia que a família mudasse de cidade a cada três anos. Cada um dos meus três irmãos nasceu num lugar diferente do Nordeste. Cheguei no Recife para fazer o segundo ano do ensino médio. Antes da escola, quem cuidou da minha alfabetização foi minha mãe, nascida em Areia [PB], que era professora. Aprendi a ler um ano e meio antes de entrar no colégio, com menos de 4 anos, graças a ela. Tornei-me um leitor contumaz e ajudei a ensinar meus irmãos. Todos os filhos se tornaram professores.

Sua relação com a capital pernambucana é profunda.
Minha relação é profunda com o Brasil. Sou um cara do interior e, para o povo do interior, o mundo é o país. Eu não tinha planos de ir para São José dos Campos, no interior de São Paulo, estudar no ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica], mas acabei prestando o vestibular influenciado por amigos. Fiz o curso tendo em mente que voltaria para Pernambuco. Comecei o mestrado na UFPE e prestei concurso para professor auxiliar na mesma instituição.

Quando despertou seu interesse pela computação?
Pouco tempo depois de entrar no ITA, em 1973, descobri que havia esse negócio chamado computador. Durante a graduação tive contato pela primeira vez com um IBM 1130. Em pouco tempo, já estava aprendendo a programar. Foi a programação que me fez optar por não seguir carreira como engenheiro. Quando descobri que era possível programar uma máquina para ela executar o que eu desejasse, foi paixão à primeira vista.

Naquela época a programação era incipiente no Brasil.
Sim, eram os primórdios da programação. O IBM 1130 do ITA tinha apenas 16 kB [kilobytes] de memória e era preciso fazer uma ginástica algorítmica para conseguir programar algo. Basicamente se programava para resolver problemas de engenharia. Naquela época, minha fascinação era pensar como resolver problemas matemáticos do ponto de vista computacional. Em 1978, durante o mestrado na UFPE, descobri que era possível pensar a programação como área científica em si. Minha dissertação, sob orientação do professor Clylton Fernandes, foi sobre simulação de protocolos de redes. No mestrado, portanto, eu já trabalhava com simulação de softwares e tráfego de informações em protocolos de comunicação em redes digitais.

Ao descobrir que dava para programar uma máquina para ela executar o que eu desejasse, foi paixão à primeira vista

Você chegou a ajudar a instalar o primeiro computador de grande porte na UFPE, não?
Sim. No fim dos anos 1970, um conjunto de universidades brasileiras, entre elas a UFPE, adquiriu equipamentos da norte-americana DEC [Digital Equipment Corporation], que na época tinha um megacomputador para uso universitário. O professor Clylton me convidou para cuidar dos sistemas computacionais da universidade. O objetivo era que a nova máquina atendesse o campus e todas as disciplinas, incluindo a execução de tarefas burocráticas, como organização da folha de pagamentos e matrículas. Fiquei responsável por montar esse sistema. Foi um grande aprendizado, mas que custou o atraso da minha dissertação de mestrado em dois anos.

Só no doutorado é que você resolveu sair do Brasil?
Assim que terminei o mestrado, consegui uma bolsa do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e optei por fazer o doutorado na Inglaterra, porque queria um lugar diferente. Foi muito bom ter ido para a Universidade de Kent. Tive um orientador fantástico, o cientista da computação britânico David Turner, um dos líderes na pesquisa em programação funcional na época. Fiquei lá entre 1981 e 1985. No retorno ao Brasil, decidi fixar-me novamente no Recife.

Foi nesse período que você contribuiu com a consolidação da computação na UFPE?
Quando voltei do doutorado, recebi uma carta do CNPq me dando as boas-vindas e informando que eu era o 49º doutor em computação no país. Até meados da década de 1990, a computação brasileira era muito rudimentar e não existia como departamento autônomo nas universidades brasileiras, salvo exceções – a Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] criou em 1969 o primeiro bacharelado do país em ciência da computação e um departamento próprio, e a USP [Universidade de São Paulo] de São Carlos inaugurou o mesmo curso no fim dos anos 1970. No geral, costumava ser uma área vinculada a departamentos de estatística e informática, como ocorria na UFPE. Havia dúvida, nas universidades, se valeria a pena ter cursos de graduação em computação, porque ainda não se compreendia exatamente esse campo do conhecimento. Quando ingressei na UFPE como professor, em 1985, Clylton, Paulo Cunha, também docente da UFPE, e eu resolvemos desenvolver um plano de longo prazo, para colocar o Recife no mapa da computação em 15 anos. Na época, todos já recebíamos ofertas para trabalhar em grandes empresas, mas optamos, junto com muitos outros, por esse plano na universidade.

Era uma meta ambiciosa.
Sim. Fiquei encarregado de datilografar o projeto, lembro como se fosse ontem. Redigi tudo na máquina de escrever Olivetti Lettera 22 de meu pai. Encarei o plano como missão de vida. Naquela época, a UFPE tinha quatro doutores em computação. A meta era chegar a 20 até o ano 2000. Muita gente encarou o desafio e começamos a enviar dezenas de estudantes para fora do Brasil, para fazer doutorado em computação e retornar para o Recife. Levou anos para formar uma massa crítica. Hoje, o Centro de Informática da UFPE tem perto de 100 professores doutores e 250 pesquisadores que desenvolvem projetos em parceria com empresas. Já formou mais de 2,1 mil mestres e mais de 500 doutores, e tornou-se uma referência, porque também abriga incubadora e aceleradora de empresas. Participar disso me deu a sensação real de construção de futuro. Como deu certo, continuamos investindo em metas ambiciosas e, em 1996, fundamos o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife, o Cesar.

Arquivo pessoal Meira no escritório de sua casa, no RecifeArquivo pessoal

Qual era a ideia por trás do Cesar?
Os especialistas em computação formados na UFPE não encontravam espaço para atuar na economia local. Cerca de 60% deles iam embora de Pernambuco. Tínhamos de fazer alguma coisa para que esse capital humano tivesse impacto na economia do estado. Foi daí que surgiu a ideia de criar um centro de inovação a fim de atrair problemas complexos que pudessem ser resolvidos no Recife. Nossa ideia, portanto, foi incentivar a criação de empresas de computação. O Cesar começou a gerar spin-offs de empresas de computação pura.

E quando foi criado o Porto Digital?
A combinação de esforços da UFPE, do Cesar e do programa Softex de apoio ao software brasileiro, lançado em 1992, em conjunto com ações de associações empresariais e dos governos do Recife e de Pernambuco, levou à criação do Porto Digital em 2000. Tipicamente, polos tecnológicos são criados colados na universidade. No caso do Recife, a escassez de recursos nos levou a tomar a decisão de criar um cluster fora da universidade, porque era inviável fazer tudo na UFPE. Então a universidade juntou-se ao programa Softex, à prefeitura e a outras instituições da região para criar um polo que não fosse exclusivo de uma entidade.

Foi assim que vocês “invadiram” o centro da capital pernambucana?
O objetivo foi ocupar e transformar o local onde estava instalada a cracolândia do Recife. Esse esforço, iniciado em 2000, resultou no espaço que hoje abriga o Porto Digital, o terceiro maior recolhimento de ISS [Imposto sobre Serviços] da cidade. Em 2019, o faturamento foi de R$ 2,5 bilhões, 24% superior ao do ano anterior.

Como foi o começo do projeto?
O primeiro passo foi atrair as empresas. O Cesar se dispôs a levar todo o seu pessoal para lá. Com o tempo, a economia local começou a dar sinais de vida. Restaurantes, bares e cafés foram abertos. Isso não havia sido planejado. Recife, porém, ainda é uma cidade com carências, uma desigualdade imensa, com enormes desafios educacionais e de infraestrutura. Mas ao mesmo tempo tem uma cultura muito forte. Temos programas de formação no Porto Digital em parceria com várias universidades. Recife é a cidade brasileira com o maior número de pessoas estudando computação por 100 mil habitantes. Esse é um dos impactos do Porto Digital.

Houve resistência no ambiente acadêmico em relação ao empreendimento?
Levou tempo para as universidades estatais entenderem que era preciso formar mais gente para o mercado. O ambiente acadêmico tem peculiaridades. Ouvi de professores que seria equivocado formar pessoas para o mercado. E olha que estamos falando de áreas tecnológicas. O Centro de Informática da UFPE tem 270 vagas para estudantes. Isso significa que todos devem se formar para atuar como professores ou pesquisadores? Grande parte opta por trabalhar com problemas práticos em empresas.

É preciso abordar criticamente o desenvolvimento tecnológico, com todas as suas dimensões filosóficas e regulatórias

Como dimensionar a importância do Porto Digital para a economia?
Temos lá desenvolvedoras de algoritmos para logística, saúde, finanças, localização. Há gente que cria tecnologias digitais para mobilidade urbana, segurança da informação, big data. Ou seja, não é um cluster de propósito específico. O centro de inovação da Fiat Chrysler no Porto Digital, por exemplo, faz softwares de controle automotivo, que são programas que operam partes do motor do carro. Não é à toa que existem cursos no Recife se especializando nesse tipo de tecnologia. Também surgiram, nos últimos anos, graduações e especializações em jogos e marketing digital. Novas demandas surgem no mercado e isso incentiva a criação de cursos específicos. O primeiro mestrado profissional em computação no Brasil foi montado no Porto Digital, em 2006. O primeiro doutorado profissional em engenharia de software do país também está lá. Essas especializações são oferecidas pelo Cesar, que criou, dentro do Porto Digital, a Cesar School, com cursos de graduação e pós, em ciência da computação, engenharia de softwares e design.

A classe política entende a importância do projeto?
Em Pernambuco, políticos de todos os partidos entendem o papel do Porto Digital para a economia do estado. É impossível falar sobre política econômica em Pernambuco sem mencioná-lo. Ele é responsável pela geração de empregos, renda e impostos. São cerca de 11,5 mil postos de trabalho, com uma média salarial quatro vezes maior do que a da Grande Recife. Além disso, é uma economia limpa e recupera uma região histórica que estava degradada. Nos últimos oito anos, motivada pela demanda do Porto Digital por capital humano qualificado, a prefeitura colocou laboratórios de informática e robótica em todas as escolas da rede municipal.

A pandemia impactou o Porto Digital?
A vasta maioria das empresas ligadas ao projeto desenvolve softwares. Assim, os funcionários seguiram trabalhando normalmente, só que de casa. Desenvolvedores de software estão acostumados a trabalhar remotamente, porque os processos de construção de sistemas de informação – principalmente aqueles associados a plataformas globais – são distribuídos e descentralizados. Infelizmente, os efeitos da pandemia são mais sentidos por prestadores de serviço que dependem da circulação de pessoas no Porto Digital, como bares e restaurantes. A estimativa é que 50% dos restaurantes do entorno do Porto Digital fecharam e não vão reabrir após a pandemia.

Você optou por dar aulas logo no início da carreira. O que o atrai na docência?
Para mim, o grande barato de ser professor não é ensinar, mas aprender. Descobri que o que me encantava, como professor, era pegar um problema que eu não sabia resolver e tentar aprender sobre isso. A melhor forma de aprender é ensinando. Só sei algo quando consigo explicar para alguém. Isso foi uma descoberta fundadora, porque de certa forma fez com que eu me interessasse por problemas fora da minha área e da universidade. Deixei de ser um especialista em engenharia de software, campo em que atuei como professor desde 1995. No fundo, admito, eu sou disperso.

Em que sentido?
Tenho vários interesses simultâneos. Para dar conta de tudo, preciso trabalhar com muita gente. Gosto de participar de diferentes grupos, e isso definiu minha vida. Sou professor extraordinário na Cesar School e atuo como consultor. Participo de conselhos de várias companhias e instituições, como Porto Digital, MRV, Magazine Luíza e CI&T. São lugares que têm problemas interessantes. Descobri que posso contribuir para a solução desses desafios sem ser, necessariamente, a pessoa que vai resolvê-los na prática. O único lugar para o qual dedico meu tempo na solução de problemas concretos é a The Digital Strategy Company, um pequeno negócio que ajudei a fundar no Cesar focado em adaptação, evolução e transformação digital de negócios de todos os tamanhos. Temos como clientes de startups a entidades gigantes, como a CNI [Confederação Nacional da Indústria].

Como você ajuda empresas fazendo parte de seus conselhos?
Meu interesse é enfrentar desafios complexos ou antever problemas que ainda não foram pensados pela empresa. No processo de criação do Porto Digital, acabei me envolvendo com centenas de negócios. Isso me levou a interagir com uma rede ampla de empreendedores e a entrar em contato com desafios reais do mercado. Orientando alunos ou aconselhando empresas, minha preocupação é com o impacto da inovação e a melhoria de performances.

Trata-se de ajudar empresas a digitalizarem processos, na esteira da chamada indústria 4.0?
Não exatamente. Há uma diferença radical entre digitalizar e transformar. Digitalizar é pegar o processo como existe e botar uma capa digital, que automatiza a indústria. Já transformar é olhar para o processo industrial ou de negócios, ver se ele está compatível com a competição digital e se a forma de execução é digital. Se não for, você transforma aquele processo para o mundo digital. Quando se olha para o mundo digital, é preciso observar com olhos novos. Se você já tiver estruturas competitivas para o mundo digital, mas que vêm do mundo analógico –
isso é raro e exige adaptações –, aí sim é possível aproveitar essas estruturas no processo de transformação. Normalmente é preciso criar muita coisa do zero.

Como avalia a implantação da indústria 4.0 no país?
Muitos empresários estão falando em digitalizar suas fábricas, mas não percebem que isso não é indústria 4.0, mas sim digitalização da indústria 3.0. Uma indústria 4.0 é, por exemplo, desenvolver um motor que continua em comunicação com o fabricante, e o processo de manutenção é feito a partir da fábrica. Na essência do termo, a indústria 4.0 não é um processo de dentro para fora da fábrica, em que os produtos se transformam em serviços. É algo que vai muito além da mera robotização da linha de produção. A robotização em si dos processos fabris não define a indústria 4.0, mas sim a capacidade de conectar objetos e fazer análises em tempo real. No Brasil, o problema é que, nos últimos 50 anos, o ponteiro da produtividade em serviços não se mexeu, o que manteve a indústria isolada, como indústria “pura”, sem agregar serviços. Ao menos a performance no espaço agrícola melhorou muito. Saímos de uma agricultura familiar com algodão sendo catado à mão para uma prática baseada no uso de colheitadeiras modernas que já processam o algodão no campo.

O que falta ao país?
Estratégia. Passamos mais uma década sem nenhuma. O país está perdido, do ponto de vista das políticas industrial, de ciência, tecnologia, inovação e empreendedorismo. Não vejo rumo. Não há sinais de que teremos estratégias para inovação nos próximos dois, cinco, 10 anos. É um absurdo ver o Brasil entrar numa guerra comercial que não diz respeito ao país. Refiro-me às disputas entre Estados Unidos e China em torno da tecnologia 5G. De repente, passamos a ter problemas que não tínhamos, problemas de diferenças científicas e tecnológicas com a China.

Como assim?
Não há nenhuma expectativa de que venhamos a ter uma plataforma de 5G que seja nossa. Não investimos nisso. Nos últimos anos, enquanto países nórdicos e a China trabalhavam no desenvolvimento de padrões e sistemas de softwares e plataformas para aplicações de 5G, os Estados Unidos não investiram em nada disso. Optaram por criar aplicativos como Facebook, Snapchat e WhatsApp, deixando em segundo plano investimentos em infraestrutura das próximas gerações de conectividade digital. O governo brasileiro deveria fomentar o casamento de políticas públicas, científicas e tecnológicas.

A iniciativa privada deveria se mobilizar para pensar o país no longo prazo?
Nenhuma empresa pensa o país a longo prazo. Quem faz isso são seus foros mais altos, o poder constituído. Toda a revolução de eletrônica nos Estados Unidos é um esforço da Darpa [a Agência de Pesquisa Avançada de Defesa]. Na Inglaterra, o substrato para a pesquisa farmacológica e de química fina são projetos de Estado. E como isso aconteceu? Entre as estratégias está fomentar a interação entre universidades e empresas, para impactar diretamente o PIB [Produto Interno Bruto]. Mas leva tempo e por isso precisa ser uma política de Estado. A iniciativa privada não pensa o Estado. Nenhuma empresa definiu os rumos de uma nação.

Encomendas tecnológicas feitas pelo Estado são importantes nesse sentido.
Exatamente. Esse é um instrumento pouco usado no Brasil. Nos Estados Unidos, a encomenda de produtos e soluções tecnológicas ocorre há décadas. A SpaceX, empresa aeroespacial do bilionário Elon Musk, deu certo não apenas por mérito próprio. Musk conseguiu um contrato de US$ 480 milhões com a agência espacial, Nasa. Quando vemos países que fizeram coisas admiráveis, como criar capacidade tecnológica competitiva, percebemos que eles estabeleceram desafios às vezes perseguidos por décadas.

Quais os riscos de encarar a tecnologia com muito entusiasmo?
É preciso abordar criticamente o desenvolvimento tecnológico, com todas as suas dimensões filosóficas e regulatórias. Deveríamos permitir qualquer propaganda no Facebook, inclusive as que incentivam, às vezes de maneira subliminar, comportamentos nazifascistas? Ou permitir mentiras explícitas em propagandas políticas? Deveríamos responsabilizar o intermediário? A tese que levou à explosão das mídias sociais é a seguinte: os intermediários, como o Facebook, não têm responsabilidade. É como se a mídia social fosse apenas um fio telefônico que transmite informações. Mas o Facebook não é apenas um transmissor, ele é praticamente uma estação de informação global e faz intervenção editorial. Deveria ser regulado.

Há quem trace paralelos entre genes e códigos de programas de computador. Você concorda?
Sim. O grande problema da genética é que quem detém esse conhecimento nem sempre está pensando sobre as consequências dele. Trata-se de um espaço regulatório que merece atenção. Para minimizar os riscos é preciso trazer o fator social para a discussão. Por exemplo, permitir que só façam manipulação genética pessoas habilitadas e que tenham passado por determinados testes. Ao mesmo tempo, não penso que se deva impedir a inovação. Como, então, regular? É um dilema: dar liberdade para que a pesquisa gere resultados potencialmente benéficos para a sociedade e, ao mesmo tempo, evitar que a inovação crie condições para atividades deliberadamente criminosas ou sem princípios éticos e morais. Posso escrever um código para sequestrar dados pessoais e pedir bitcoins de resgate ou criar um algoritmo para analisar imagens de pulmão e identificar câncer por meio de inteligência artificial. O princípio tecnológico de programação é o mesmo; o que muda são a educação ética e os valores por trás de quem usa a tecnologia.

Pensar questões como bioética exige muita pesquisa nas ciências humanas.
Sem dúvida. O físico inglês Charles Percy Snow [1905-1980] argumentava que estávamos perdendo a capacidade de interpretar o mundo e entender o contexto no qual ciência e tecnologia estavam sendo usadas. Penso que tecnologia é sempre uma possibilidade: se dá para fazer, as pessoas fazem, mesmo que não haja uma ciência por trás. Mas é necessário pensar como uma tecnologia funciona e quais são suas consequências na sociedade. O mesmo deve ser feito em relação à ciência básica. Se amanhã descobre-se um planeta que tem vida, preciso imediatamente começar a refletir sobre o nosso mundo, inclusive sobre o ponto de vista da religião. Essa reflexão sobre a natureza humana é fundamental. Não se pode relegar para as ciências humanas um papel secundário, como se elas devessem ficar com as sobras do investimento total em ciência. É preciso financiar grandes estudos nas ciências humanas.

Faltam estudos capazes de refletir o Brasil atual de maneira interdisciplinar?
Sim. No passado, essa capacidade de pensar o país surgiu, por exemplo, em figuras como Celso Furtado [1920-2004], Sérgio Buarque de Holanda [1902-1982] e Gilberto Freyre [1900-1987]. No entanto, a necessidade hoje é de articular abordagens verdadeiramente interdisciplinares. Isso não significa que o ser humano individual deva ser interdisciplinar. O que deve ser interdisciplinar e multidisciplinar são os times formados por várias pessoas que dominam conhecimentos específicos.

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