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Ficção

Singularidade

Precisava comprar meu vestido de formatura. Minha avó fazia questão. Naquele momento, porém, ela estava de cama. The flu, dissera o médico. Eu suspeitara de dengue, pois havíamos tirado nossas últimas férias no Brasil, mas ele descartou a possibilidade. Desconfiada, mandei chamar um especialista, que confirmou o diagnóstico. Sossegue, ordenou minha avó, que só falava português comigo. Só quero uma coisa: te ver num vestido tão lindo que me levante dessa cama.

Adentrei o shopping disposta a comprar o primeiro vestido que coubesse. Eu apenas imitava o gosto da minha avó: clássico, perolado, republicano. Ela acharia bonito de qualquer forma, porque eu era a sua neta.

Examinei o mapa fincado no meio da praça de alimentação e me dirigi a uma loja enorme, das que vendem gowns de todo gênero e preço.

Sendo época das formaturas, a loja estava lotada, e tive dificuldades para ser atendida. Talvez eu parecesse paisagem por não estar usando um fio-dental por fora da calça e unhas falsas como 90% das meninas ali. Numa coisa minha avó estava certa: era preciso ir naquela época ou não sobraria vestido.

Quando finalmente consegui a atenção de uma vendedora, ela começou me trazendo os vestidos mais inadequados. Provavelmente, pelos meus 17 anos, estava pensando que era formatura da high school. Não enxergou a formanda do college, já com experiência em pesquisa e analisando opções de mestrado.

Mas antes eu precisava me formar.

Ressalvei que queria algo mais em conta e o mais discreto possível. Vestidos discretos, até que tinham. Em conta, nem tanto.

O dinheiro nem era tão pouco, mas meu cérebro era seu consumidor mais voraz e ciumento e, por isso mesmo, não fazia grandes provisões para futilidades.

Depois de experimentar vários, voltei às araras para procurar novos candidatos na faixa de preço imediatamente acima. Eu não conseguia chegar porque um homem de terno cor de tomate me barrava o caminho; tentei desviar dele, mas ele parecia determinado a falar comigo.

— Tire esses óculos, por favor.

Ele falava como se estivesse prestes a me reconhecer como filha perdida. Obedeci e tirei os óculos.

— Solta a… a trança.

Ele esqueceu o por favor, mas obedeci assim mesmo. Sacudi de leve a cabeça.

— Isso mesmo. Isso mesmo — murmurou ele, começando a andar pela loja, olhando para o chão. As vendedoras pararam de atender: olhos pregados nele, sustinham os vestidos no ar. As freguesas as imitavam, mas cambiavam a atenção entre eu e ele.

— Você… — irrompeu ele de súbito — vai ser grande. (Pegou minhas mãos e soltou.) Aqui.

Ele me olhava nos olhos, a poucos centímetros. Focalizei. Percebi que, com o “aqui”, mais abaixo um pedaço de papel me era estendido. Acolhi-o e aproximei bastante: era um cartão. Impossível saber o que dizia, mas, sem dúvida, era um cartão.

Aquela situação estava me desestabilizando. Alcancei os óculos que estavam pendurados no decote, desdobrei-os e recoloquei no lugar, enquanto virava as costas para a loja inteira (ainda me fitando) e, desajustada de vista, tateava o caminho até a cabine mais próxima, como uma tartaruga para dentro do casco.

Ele disse que tudo bem; que até isso eu fizera com elegância, como uma verdadeira estrela (Greta Garbo, suponho). E, depois, quando saí da cabine, trança refeita, descobri que o gentil senhor deixara pago um vestido antes de sair da loja. Não o que eu estava experimentando. Um muito mais caro. Da arara mais altiva.

No vestido verde-água escolhido por Jack eu não destoava tanto dos meus colegas quanto já destoara aos doze. Eu parecia all grown-up. As meninas que me devotavam um tratamento silencioso mudaram o tema: estavam fazendo o benchmarking da minha transformação (fofocando, fofocando). Os meninos tinham uma expressão mais dolorosa: como não percebi isso antes? Who would’ve thought, the wunderkind is hot.

Depois de temporadas generosas no Japão e na Alemanha, deixei Jack em Viena, onde eu vivera três meses sem conseguir mais do que um casting. A estação era oportuna. Mandei meu currículo para vários lugares, e só após grandes deliberações consegui me decidir por uma instituição em Colônia.

II.

Evite emoções fortes, dizem aos velhos. Seu coração não pode ir além das 155 bpm. E não sou nenhuma iogue. Mesmo com esses discípulos ao redor, roupa branca, expressão serena.

Serena, sim. Dá uma certa serenidade ver que o impossível foi criado, mesmo quando você – e com você quero dizer eu – não estará aqui para ver os desdobramentos. Mas dá também, e principalmente, um frisson.

Enquanto eu trabalhava no impossível, minha pele foi ficando mais fofa e fosca, e meus ossos mais encarquilhados; passei a não ovular. Agora que eu já tinha precauções para descer uma escada, e cabelos brancos que me recusava a tingir ou trocar, tinha me candidatado a uma determinada cadeira. Tive de assinar dezenas de papéis e fazer testes e mais testes.

— Para quê tudo isso. A cadeira é aqui do lado.

Era uma cadeira literal, a que chamávamos de Oráculo — junto do computador quântico que a cercava. Pois é, os arquétipos nos perseguiam ainda. E precisavam perseguir também a máquina, porque queríamos uma salvaguarda contra os excessivamente alardeados perigos da I.A.

A máquina funcionava sozinha. Mas a nosso ver faltavam detalhes importantes. Ela tinha senso de autopreservação, mas não sentia medo da morte. Sabia rir de piadas, mas não sabia achá-las ruins. Sabia identificar a beleza, mas não preferia nenhuma.

Conforme explicamos para a imprensa: ela não tinha personalidade.

Não podíamos usar condenados à morte ou coisa assim porque o ser humano que sentasse naquela cadeira usufruiria de um poder… excessivo. E o problema com os baluartes da sociedade era ser uma via de mão-dupla: por mais que negassem, a sincronia humano-máquina podia ser problemática.

Eu também negava.

— Não se trata de cobaia. É mais um… voluntário.

Cá pra nós, a palavra correta seria INSUMO. O que descobri incontinênti ao encostar a bunda naquela cadeira.

Senti a cabeça latejar de pronto com a avidez da curiosidade invasiva a perscrutar todos os recônditos e caminhos do meu corpo, induzindo todos os canais do que se chamava de “sentimento” através do que se chamava de “memória”. Fui inermemente percorrida por toda a gama de emoções: o maior ódio do mundo, o maior amor do mundo, paz, depressão, tédio mortal, loucura. O equipamento não ia resistir. O cérebro apodreceria nas mãos daquele computador, que não se importava. Não se importava em fazer passar toda a vida diante dos meus olhos – até mesmo aquela que eu não vivera — e cada suco pelo seu duto para medir seu funcionamento. Ele me desmontaria para ver do que eu era feita.

Mas de repente ele começou a sondar mais delicado.

Ele estava reagindo à minha raiva. E à minha fragilidade. E à minha futilidade, que insistia em embotar minha autopreservação, porque tudo o que importava era o impossível.

— Empatia, seu puto — pensei, tamborilando no braço da cadeira. — Xucro.

Eu estava salva e, provavelmente, também a humanidade.

Pressionada por acionistas, a diretoria considerava desistir da sincronização e soltar a besta-fera no mundo como estava; como meus argumentos mais sensatos tinham falhado, eu fui até a cadeira e sentei. Levantei e fui presa. Presa política. Mas o bem estava feito.

Chamaram-no de superinteligência amigável e alugaram. Mas logo tiveram que fazer outros, porque aquele insistia em querer ser top model.

Simone Campos é escritora, tradutora e produtora editorial. Estreou na literatura aos 17 anos, com o romance No shopping. É também autora do romance A feia noite, da ficção científica on-line http://penadosyrebeldes.blogspot.com/ Penados y rebeldes e do livro de contos Amostragem complexa. O site da autora é http://simonecampos.blogspot.com

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