Estiagem histórica expõe vulnerabilidades do sistema elétrico nacional, fortemente dependente da geração de usinas hidrelétricas
Torres de transmissão de energia elétrica no município de São Paulo
Léo Ramos Chaves
O Brasil enfrentou em 2021 a mais grave crise hidrológica das últimas nove décadas. Além de reflexos na produção agrícola e no abastecimento de água nas cidades, a falta de chuvas colocou em risco a capacidade de geração de energia elétrica. Sem a colaboração de São Pedro, os reservatórios das centrais hidrelétricas – a principal fonte geradora do país, responsável por mais de 60% de toda a eletricidade produzida – alcançaram índices históricos de baixa. Em abril deste ano, fim do período chuvoso, o nível das represas do subsistema Sudeste/Centro-Oeste, que abriga as principais hidrelétricas do país, atingiu 35%, apenas um pouco melhor do que o índice (32%) da mesma época em 2001, quando o Brasil viveu uma grave crise no abastecimento elétrico, que causou blecautes (ou apagões), deixando as cidades às escuras, e à época obrigou o governo federal a instituir um racionamento de energia.
Para prevenir o colapso do setor e evitar que a situação vivida há 20 anos se repetisse, algumas medidas foram adotadas pelo Ministério de Minas e Energia (MME). Ainda no primeiro semestre de 2021, o órgão decidiu ampliar a geração elétrica a partir de usinas termelétricas, mais caras e poluentes, que funcionam com combustíveis fósseis. O órgão também autorizou o aumento de importação de energia elétrica de países vizinhos, como Argentina e Uruguai.
Chuvas acima da média em outubro e novembro, início do período úmido, trouxeram alívio ao sistema, mas não afastaram de vez o problema. “As perspectivas para o fim de novembro [após o fechamento desta edição] são de que o volume acumulado nos reservatórios dos subsistemas Sul e Sudeste/Centro-Oeste alcance 53,4% e 21,3% da sua capacidade, respectivamente”, declarou a Pesquisa FAPESP Luiz Carlos Ciocchi, diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), órgão responsável pela operação, supervisão e controle da geração de energia elétrica no país.
O MME estima que o armazenamento das represas do Sudeste/Centro-Oeste chegará a 38% em abril de 2022, caso se repita o volume de chuvas do período úmido de 2020/2021 – índices próximos de 30% naquele mês acendem o sinal de alerta das autoridades. “Estamos atentos e permaneceremos olhando os indicadores para podermos adotar as medidas que forem necessárias para mantermos o atendimento ao SIN [Sistema Interligado Nacional].” O SIN é a rede de produção e transmissão de energia elétrica do país.
Segundo Christiano Vieira, secretário de Energia Elétrica do MME, desde outubro de 2020 vêm sendo adotadas medidas para garantir o suprimento elétrico neste ano e no próximo. “O despacho termelétrico foi maximizado no decorrer do período seco de 2021 [maio a outubro] para preservar os estoques de água nos principais reservatórios do sistema.”
Pesquisadores e especialistas do setor elétrico entrevistados por Pesquisa FAPESP reconhecem as dificuldades enfrentadas pelo setor elétrico, altamente dependente da fonte hídrica, mas divergem quanto às suas causas. “A crise de 2001 deixou ensinamentos muito consistentes para o setor. Naquele ano, 90% de nossa matriz era composta por usinas hidrelétricas, hoje é por volta de 62% e dentro de dez anos será de 58%”, diz o economista Nivalde de Castro, coordenador-geral do Grupo de Estudos do Setor Elétrico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Gesel-UFRJ).
Complexo Termelétrico Jorge Lacerda, em Capivari de Baixo (SC), uma das maiores centrais de geração térmica a carvão mineral da América do SulFabio Colombini
“Uma matriz elétrica que tem forte dependência de uma única fonte fica exposta; se essa fonte for renovável e sazonal, como a hídrica, a exposição é ainda maior”, sustenta o pesquisador, destacando que, entre as crises de 2001 e a de agora, o valor absoluto da capacidade elétrica instalada no país evoluiu substancialmente, passando de 75 gigawatts (GW) para cerca de 170 GW. “Nesse crescimento, foi dada prioridade a outras fontes renováveis, como eólica, biomassa e solar.”
Em valores absolutos, a capacidade instalada das hidrelétricas aumentou nas últimas duas décadas, passando de 61 mil GW em 2001 para pouco mais de 100 mil GW este ano – a participação na matriz caiu no período porque outras fontes energéticas elevaram sua presença. Nesse movimento de ampliação da fonte hídrica, várias novas usinas, como as de Jirau, Santo Antônio e Belo Monte, foram construídas na região amazônica, sob críticas por seus impactos sociais e ambientais.
A evolução da capacidade instalada, contudo, não foi acompanhada pelo crescimento do volume de armazenamento dos reservatórios, pois algumas hidrelétricas foram construídas a fio d’água, sem represas, como Belo Monte. Em períodos de seca, como agora, o volume de água dos rios diminui e a geração dessas centrais, que dependem deles – pois não têm reservatórios –, é fortemente afetada. “A construção de usinas hidrelétricas sem reservatórios é a causa fundamental dos problemas que o país enfrenta nessa área”, destaca o físico José Goldemberg, professor emérito da USP e pesquisador na área de energia e desenvolvimento sustentável.
Na visão de Castro, o problema atual é causado pelas mudanças climáticas, que afetaram drasticamente o regime de chuvas no país. “Em oito dos últimos 10 anos choveu abaixo da média histórica. Com isso, o volume de água acumulado nos reservatórios das hidrelétricas diminuiu, o que obriga a um acionamento maior das termelétricas”, afirma. Um fator agravante, segundo ele, é a falta de política ambiental do governo. “Não se dá prioridade para a manutenção da floresta amazônica, que tem uma dupla função ambiental: além de reciclar o CO2 [dióxido de carbono], dela emerge uma quantidade de umidade muito grande que se transforma em rios voadores, trazendo chuvas para o Sudeste.”
Coordenador do Centro de Análise, Planejamento e Desenvolvimento de Recursos Energéticos (CPLEN) do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP), Ildo Luís Sauer afirma que a crise pela qual o setor elétrico passa hoje era previsível e argumenta que, além de problemas conjunturais – como a falta de chuvas –, o setor sofre há anos de deficiências estruturais, que remontam às reformas empreendidas nos anos 1990 pela administração Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), responsável pelo início da privatização das empresas elétricas, e nos anos seguintes pelos governos Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), quando foram feitos ajustes na legislação do setor.
“Vivemos uma instabilidade no setor elétrico que já dura mais de duas décadas e meia. O grande erro que levou à atual crise elétrica brasileira está no planejamento do setor e em sua execução. Procurando garantir a segurança e a expansão do sistema, demos preferência nos últimos anos à contratação de usinas da tipologia errada, do ponto de vista técnico e econômico. Estou falando das termelétricas movidas a combustíveis fósseis, como carvão mineral, óleo diesel e gás natural. O certo teria sido contratarmos mais usinas eólicas e solares”, diz Sauer, que ocupou o cargo de diretor de Gás e Energia da Petrobras entre 2003 e 2007 e é autor de vários artigos sobre o setor energético, o mais recente deles sobre o potencial das energias solar e eólica no país, escrito com os pesquisadores Nilton Amado e Erick Pelegia, também do IEE.
Usina Hidrelétrica Três Irmãos, localizada na bacia do rio Tietê, em Pereira Barreto, no interior paulistaFabio Colombini
Pelos cálculos de Sauer, entre 2008 e 2015, ano da última crise elétrica, o Brasil gastou cerca de R$ 110 bilhões com combustíveis fósseis apenas para operação das centrais térmicas. “Com esse dinheiro, seria possível implantar 30 gigawatts de usinas eólicas [a capacidade instalada do parque eólico nacional é hoje de 20 GW]. O resultado é que o Brasil contratou mal e contratou usinas de menos. Assim, a crise ressurge mesmo em períodos de fraca atividade econômica, como agora.” Ele argumenta, ainda, que o modelo de planejamento e contratação de energia elétrica deveria levar em conta as alterações do regime hidrológico. “O problema não está na natureza, mas na estrutura de organização e gestão do sistema elétrico nacional.”
O parque térmico do Brasil é composto por cerca de 3,2 mil centrais, perfazendo 44 GW, sendo que 66% delas funcionam com combustíveis fósseis – os 34% restantes empregam biomassa ou são movidas a energia nuclear. “As termelétricas são uma fonte muito flexível, porque você pode acioná-las rapidamente. Funcionam bem como backup”, comenta Maurício Uriona Maldonado, do Departamento de Engenharia de Produção e Sistemas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A capacidade instalada da fonte térmica cresceu substancialmente desde o apagão de 2001 – naquele ano, era de 10,4 GW, o equivalente a 25% da atual.
O problema é que a queima de combustíveis fósseis nessas centrais, principalmente carvão e óleo diesel, lança na atmosfera gases de efeito estufa, que contribuem para o aquecimento global. E o custo delas é salgado: cerca de R$ 1,6 mil o megawatt-hora (MWh) diante de menos de R$ 200 das hidrelétricas. Para cobrir esse gasto, o governo precisou elevar a tarifa de energia elétrica, instituindo a bandeira de escassez hídrica. Prevista para vigorar até abril de 2022, ela adiciona R$ 14,20 para cada 100 quilowatts-hora (kWh) consumidos, valor 50% maior do que a bandeira mais cara até então.
O especialista em regulação e competição do setor elétrico André Luís da Silva Leite, do Departamento de Ciências da Administração da UFSC, argumenta que outro erro das autoridades foi a não atualização da garantia física das hidrelétricas, ou seja, a definição periódica do valor máximo de produção contínua considerando o risco de as usinas não conseguirem fazer essa entrega. O risco, no caso, está associado a reduções na vazão do rio em que ela se encontra.
“Sem a atualização da garantia física, a oferta de energia da fonte hídrica é, na prática, menor do que a divulgada, pois as usinas não conseguem produzir o que se espera delas”, declara. Segundo ele, na média nacional as hidrelétricas geram aproximadamente 70% de sua garantia física. “Se o apagão de 2001 resultou de um mercado mal formulado, com regras incompletas, que não atraiu investimentos que garantissem o aumento da capacidade instalada, a crise de 2021 relaciona-se à gestão do sistema”, ressalta Leite.
Em artigo publicado em julho de 2001 na revista Nova Economia, João Lizardo de Araújo, do Instituto de Economia da UFRJ, analisou a reforma iniciada anos antes e alertou para a crise energética que se avizinhava. “A falta de recursos financeiros levou a atrasar ou suspender projetos de expansão em geração e transmissão. O consumo, por seu lado, aumentava quando a economia crescia e continuava aumentando mesmo quando a economia estagnava, à medida que mais gente ganhava acesso à eletricidade”, destacou o pesquisador.
Angra 3: central nuclear, em construção há décadas, está projetada para ter 1,4 GW de potênciaDaniel Ramalho / AFP via Getty Images
Em outro estudo sobre a crise no setor elétrico do mesmo período, datado de 2003, José Goldemberg e Luiz Tadeu Siqueira Prado, da Escola Politécnica da USP, também direcionaram o foco à reforma. “O governo não conseguiu implantar um ambiente regulatório adequado nem um mercado livre confiável de energia no MAE [Mercado Atacadista de Energia Elétrica], mas conseguiu paralisar as atividades de coordenação da Eletrobrás, ficando o sistema acéfalo”, escreveram. Os autores concluem que o legado foi o endividamento da grande maioria das empresas do setor elétrico, dependentes do dinheiro público para não irem à falência.
Para superar a crise, há um entendimento de que é preciso acelerar a diversificação da matriz elétrica nacional, priorizando as fontes renováveis (ver reportagem). “As energias emergentes, com destaque para a solar fotovoltaica e a eólica, estão em ascensão e tudo indica que irão dominar o cenário energético no futuro”, afirma a química Ana Flávia Nogueira, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretora do Centro de Inovação em Novas Energias (Cine), um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) constituído pela FAPESP e pela Shell que reúne pesquisadores da Unicamp, USP e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). “Nesse sentido, o Brasil está numa posição confortável, pois tem abundância de radiação solar e ventos, notadamente na região Nordeste.”
Um problema dessas fontes, contudo, é que são intermitentes, ou seja, há uma variação na quantidade de energia gerada ao longo do dia, já que as centrais eólicas dependem da existência de ventos e as usinas fotovoltaicas da presença da radiação solar. A variabilidade da oferta do recurso pode afetar a rede de distribuição e transmissão de energia. Segundo Nogueira, o problema pode ser solucionado com a instalação de baterias estacionárias nos parques produtores para armazenar a energia produzida, equalizando a oferta de energia para o SIN.
Uma das linhas de pesquisa do Cine é o desenvolvimento de sistemas de armazenamento eficientes para centrais eólicas e solares. O grande esforço de pesquisa hoje é no sentido de diminuir o custo e aumentar a capacidade de armazenamento dessas baterias. “O uso de sistemas de grande porte para estocar a energia adicional gerada nos parques solares ou eólicos é crescente, mas eles ainda são caros”, destaca o engenheiro metalúrgico e de materiais Ricardo Rüther, coordenador do Laboratório Fotovoltaica da UFSC.
De acordo com o Plano Decenal de Expansão (PDE) de Energia 2030, elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que tem por finalidade prestar serviços ao MME, a participação das fontes renováveis na matriz elétrica brasileira foi de 84,8% no ano passado, índice pouco superior ao de 2019 (ver Pesquisa FAPESP n° 297). No subconjunto das renováveis, a liderança coube à hidrelétrica, seguida por eólica, biomassa e solar. As fontes fósseis responderam por cerca de 13% e a energia nuclear por pouco mais de 1% da matriz brasileira (ver infográfico). A matriz elétrica de um país é representada pelo conjunto de fontes usadas para gerar eletricidade e faz parte da matriz energética, que inclui também outras fontes, como combustíveis para movimentar carros, ônibus e caminhões (gasolina, óleo diesel e etanol, por exemplo) e preparar comida (lenha).
O documento projeta que a capacidade instalada do parque eólico nacional deverá ser ampliada dos 15,9 GW registrados em 2020 para 32,2 GW no final da década. As centrais fotovoltaicas deverão sofrer expansão de 3,1 GW para 8,3 GW, enquanto as usinas de biomassa, com forte predominância do setor sucroalcooleiro, poderão aumentar sua capacidade de 13,9 GW para 15,1 GW no período – projeção subestimada, segundo a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), que estima atingir quase 25 GW de potência instalada no final da década.
“A diversidade de oferta aumenta a resiliência de qualquer sistema. Além disso, há chance de que novas fontes venham a ser mais baratas, como ocorre hoje com a eólica e a solar”, diz o engenheiro eletricista Paulo César Fernandes da Cunha, consultor do Centro de Estudos de Energia da Fundação Getulio Vargas (FGV Energia) e ex-vice-presidente da Associação Brasileira de Comercializadores de Energia (Abraceel).
“As fontes eólica e solar têm se mostrado mais competitivas frente às demais tecnologias candidatas à expansão”, afirma Vieira, do MME. O preço da fonte solar nos leilões da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) sofreu uma redução de US$ 100 o MWh em 2013 para US$ 30 este ano, segundo a Associação Brasileira da Energia Solar Fotovoltaica (Absolar). Já o custo da energia eólica caiu, em reais (valores atualizados), 40% desde 2009. Analistas estimam que o preço dessas duas fontes pode continuar em queda nos próximos anos em função de ganhos de escala e eficiência.
O PDE 2030 também faz uma estimativa da expansão da energia nuclear no país. Segundo o documento, ela deve crescer dos atuais 2 GW para 3,4 GW em 2030. Para que isso se concretize, a construção da terceira usina nuclear brasileira, Angra 3, iniciada nos anos 1980 e interrompida algumas vezes, precisa ser finalizada. O consórcio responsável pelo projeto espera concluir até o fim do ano o relatório de avaliação técnica do que já foi construído e do que falta ser edificado.
Na avaliação de Goldemberg, a energia nuclear não é uma alternativa para o curto prazo. “Por mais ênfase que se dê a essa fonte, seria impossível aumentar a participação dela de maneira significativa na matriz nacional. As centrais nucleares são caras e levam muito tempo para serem construídas”, pondera.
Para Castro, do Gesel-UFRJ, o Brasil vem fazendo uma transição energética peculiar em relação ao resto do mundo. Dados da Agência Internacional de Energia (IEA) mostram que a geração global de energia elétrica é baseada principalmente em carvão mineral (38% do total) e gás natural (23%). A fonte hidráulica, predominante no Brasil, responde por apenas 16% da capacidade instalada global.
“Enquanto a maioria dos países tem uma matriz elétrica com forte predomínio da fonte térmica, que vem sendo substituída por alternativas renováveis, no Brasil estamos mudando de uma fonte renovável, a hídrica, para outras duas também renováveis, a solar e a eólica”, afirma. “Dessa forma, vamos continuar a ter uma das melhores matrizes do mundo.”
Projeto Divisão de pesquisa 1: portadores densos de energia (nº 17/11986-5); Modalidade Centros de Pesquisas em Engenharia (CPE); Convênio BG E&P Brasil (Grupo Shell); Pesquisadora responsável Ana Flávia Nogueira (Unicamp); Investimento R$ 7.997.384,81.
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