Imprimir PDF Republicar

Resenha

Sobre a identidade musical brasileira

Os quartetos de cordas de Villa-Lobos: Forma e função Paulo de Tarso Salles | Edusp | 376 páginas | R$ 46,40

A Editora da Universidade de São Paulo publicou recentemente um estudo de grande fôlego sobre os quartetos de cordas de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Com este trabalho, o autor Paulo de Tarso Salles se afirma como um dos maiores estudiosos villalobianos da atualidade. Em estilo fluente, o texto foi burilado por quase uma década. Revisa em detalhes a literatura existente para, em seguida, nos trazer reflexões reveladoras de cada um dos quartetos.

Durante o romantismo, o gênero quarteto de cordas experimentou um certo esgotamento estético devido, em parte, à excelência da prolífica produção da Primeira Escola de Viena, integrada por Haydn (1732-1809), Mozart (1756-1791) e Beethoven (1770-1827). No século XX, concomitantemente ao surgimento do neoclassicismo, ocorreu uma reavaliação importante da obra de Haydn, que favoreceu a aproximação de Villa-Lobos com o grande mestre dos quartetos de cordas. Compositores como Milhaud (1892-1974), Bartók (1881-1945), Schönberg (1874-1951), Chostakovitch (1906-1975) e especialmente Villa-Lobos se voltaram ao tradicional agrupamento. Assim, a constituição clássica de dois violinos, viola e violoncelo se confirmou como uma das formações mais importantes e duradouras da música de câmara.

Os 17 quartetos de cordas de Villa-Lobos formam o maior grupo da produção do compositor. A maior parte dos quartetos permanece fiel à forma desenvolvida por Haydn: dois movimentos rápidos que emolduram um movimento lento e um scherzo. As analogias dos métodos composicionais dos dois músicos continuam; na adaptação da forma sonata, na intertextualidade do discurso, no monotematismo, nas reprises alteradas e nas técnicas de desenvolvimento.

Os quartetos de cordas de Villa-Lobos foram compostos em dois períodos distintos e distantes 14 anos entre si. Os quatro primeiros foram escritos entre 1915 e 1917 e os 13 seguintes após 1931. Os primeiros quatro apresentam uma textura musical densa e virtuosística. O primeiro em forma de suíte, o segundo e o terceiro com os princípios da forma cíclica francesa de Franck (1822-1890) e d’Indy (1851-1931) e o quarto já se aproximando do modelo classicista. Após um breve flerte com o estilo rapsódico no quinto quarteto, o modelo formal haydniano é definitivamente adotado do sexto ao oitavo quarteto. O nono e décimo dialogam com o expressionismo de Berg (1885-1935) e Bartók. No estilo tardio dos sete últimos Quarteto, o equilíbrio dos movimentos é mantido e os elementos da música popular brasileira são magistralmente amalgamados aos modelos da tradição europeia.

O terceiro capítulo, “Simetria, harmonia e forma”, é o mais técnico de todos. Analisa o caráter, a harmonia, forma, contraponto e as influências estéticas presentes em cada movimento. Propõe um mergulho nos recentes conceitos analítico-musicais, como a teoria dos conjuntos e os diagramas matemáticos. Salles nos surpreende ao revelar uma nova face do compositor, capaz de congregar uma intuição fenomenal a um pensamento formalista consciente e muito bem estruturado.

O fascinante universo matemático dos palíndromos, espelhamentos, rotações e translações de estruturas se funde aos estilos cariocas, ao choro, ao samba, à modinha, ao estilo infantil, ao canto de Xangô, à capoeira, ao estilo ameríndio, ao estilo nordestino, ao estilo caipira. Assim, o último e interessantíssimo capítulo arremata de forma convincente e minuciosa a análise dos elementos que constituem a sintaxe do compositor. Salles expõe o mundo emocional de Villa-Lobos que se espraia generoso na escritura dos quartetos. A combinação dessa palheta afetiva ao mais puro pensamento estruturalista constituiu a essência da genialidade do compositor.

Villa-Lobos criou parte significativa da identidade musical brasileira. Sua música possui uma força tão incomensurável que não podemos sequer imaginar um Brasil sem a ascendência de sua obra. Sua arte moldou consideravelmente nossa percepção da realidade sonora. A Alma brasileira de Villa-Lobos é livre, plural, complexa e vigorosa. Nos intolerantes dias que vivemos, sua música veemente exorta o retorno das pautas inclusivas, o respeito pelo meio ambiente, bem como a dignificação das raças e crenças formadoras da cultura brasileira.

Nahim Marun é professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Republicar