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Neurociência

Sonhando acordado

Durante o surto de psicose, cérebro apresenta padrão de atividade elétrica semelhante ao observado nos sonhos

Imagem feita por microscópio eletrônico do hipocampo do cérebro humano

Imagem feita por microscópio eletrônico do hipocampo do cérebro humanoMethoxyRoxy / Wikimedia

Pesquisadores brasileiros começam a identificar alterações no funcionamento do cérebro que podem estar na origem dos delírios e das alucinações que caracterizam os surtos de psicose, comuns em transtornos mentais como a esquizofrenia. Em experimentos realizados com ratos, o grupo coordenado pelo neurocientista Adriano Tort da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) verificou que a atividade elétrica cerebral durante os surtos psicóticos é semelhante à observada no chamado sono REM, a fase em que ocorrem os sonhos. “Esse resultado nos leva a suspeitar de que os surtos psicóticos tenham alguma relação com os eventos oníricos”, conta o biólogo Fábio Viegas Caixeta, integrante da equipe de Tort no Instituto do Cérebro da UFRN e primeiro autor desse trabalho, publicado na edição de 2 de agosto da revista Scientific Reports.

Quando se está acordado, o cérebro é tomado por correntes elétricas que oscilam rapidamente, entre 10 e 100 vezes por segundo. Durante o sono REM, esses pulsos elétricos de alta frequência dão lugar a outros mais lentos – são as chamadas ondas teta –, que se repetem entre 5 e 10 vezes por segundo e intensificam pulsos ultrarrápidos, com frequência de 110 a 160 vezes por segundo. Os pesquisadores da UFRN registraram essa mesma combinação de pulsos lentos e ultrarrápidos no hipocampo de um grupo de ratos tratados com cetamina, um anestésico que em doses baixas causam nos seres humanos delírios e alucinações idênticos aos da psicose.

A observação de padrão elétrico incomum no estado de vigília pode indicar o funcionamento inadequado do hipocampo, região profunda do cérebro associada ao aprendizado, à memória, à tomada de decisão e à integração da informação captada por diferentes órgãos do sentido. Se for confirmado por outros estudos, esse achado corrobora uma antiga suspeita da medicina: a de que há algo de errado com o hipocampo na esquizofrenia. “Falhas na integração das informações sensoriais são uma origem provável dos delírios e das alucinações”, diz Caixeta.

Caso os registros da atividade elétrica do cérebro forneçam, de fato, uma boa representação do funcionamento desse órgão complexo e pouco conhecido, os resultados da Scientific Reports podem reforçar também uma ideia proposta há algumas décadas pela psicanálise e pela psicologia: haveria uma causa comum à falta de coerência lógica entre as ideias apresentadas nos sonhos e à confusão mental característica dos delírios e à convicção nos eventos irreais típica da alucinação. Dito de forma simples: passar por um surto psicótico seria semelhante a sonhar acordado.

“Os resultados desse trabalho nos aproximam de compreender os mecanismos biológicos associados aos episódios de psicose, característicos de transtornos mentais como a esquizofrenia”, explica Tort. “Esse conhecimento é fundamental para que se possam desenvolver tratamentos capazes de atuar sobre a origem do problema e não apenas sobre seus sintomas”, afirma o pesquisador. Anos atrás, quando ainda era pesquisador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond & Lily Safra, Tort já havia demonstrado a influência das ondas teta sobre a intensidade dos pulsos mais rápidos (ondas gama) em duas atividades fundamentais do hipocampo: a recordação de uma memória e a tomada de decisão.

Artigo científico
CAIXETA, F.V. et al. Ketamine alters oscillatory coupling in the hippocampus. Scientific Reports. 2 ago. 2013.

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