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Gasto público

SUS deve economizar com fim de extensão de prazos de patentes

Potencial de redução dos gastos com nove medicamentos pode chegar a R$ 3,9 bilhões, segundo estimativas da UFRJ

Rodrigo Cunha

O fim de uma regra que permitia a extensão dos prazos de exploração de patentes farmacêuticas no Brasil deverá resultar em uma economia bilionária para o Sistema Único de Saúde (SUS), segundo projeções de pesquisadores do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ). O grupo analisou os preços e volumes de compra de nove fármacos entre 2014 e 2018 em registros do Departamento de Logística em Saúde (DLOG) da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde. Com base nesses dados, estimou um gasto de pouco mais de R$ 6,8 bilhões nos próximos anos com esses compostos caso o período de vigência de suas patentes continuasse estendida. “A possibilidade de compra de genéricos disponíveis no mercado internacional reduziria esse valor em R$ 1,2 bilhão”, destaca a economista Julia Paranhos, professora do IE-UFRJ e uma das autoras do estudo, publicado na revista Cadernos de Saúde Pública. Segundo ela, levando em conta as maiores reduções – há casos de genéricos vendidos a valores 99% mais baratos no mercado externo –, o potencial de redução dos gastos do SUS poderia chegar a R$ 3,9 bilhões.

As patentes garantem a seus detentores o direito exclusivo de venda de um fármaco por 20 anos, contados a partir da data de depósito no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). No entanto, o parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial (LPI), de 1996, estabelecia que, se a autarquia levasse mais de 10 anos para conceder a patente, a demora teria de ser compensada com a extensão de sua vigência. Paranhos explica que o Inpi não possuía experiência no exame de patentes farmacêuticas até 1996. Com a promulgação antecipada da LPI, foi preciso estruturar uma área específica para essa finalidade, enquanto os pedidos já eram depositados no órgão. “Sabia-se que esse processo teria um impacto no tempo de análise dos pedidos, de modo que se decidiu inserir esse parágrafo único no artigo 40 da legislação para compensar a demora”, ela esclarece. Ocorre que esse privilégio adia a entrada de concorrentes, já que a produção de cópias de medicamentos de referência só é permitida após o fim do período de proteção. Isso dá poder de mercado aos titulares, que podem comercializar seus produtos a preços mais elevados, com impacto sobre os orçamentos público e privado da saúde.

O economista Eduardo Mercadante, doutorando na Escola de Economia e Ciência Política de Londres (LSE), no Reino Unido, informa que os depósitos de patentes farmacêuticas levam, em média, 13 anos para receber uma decisão final de concessão no Brasil, “o que tem consequência direta no tempo de vigência das patentes, visto que torna o parágrafo único do artigo 40 uma regra, e não uma exceção, como previsto inicialmente”, diz o pesquisador, um dos autores do estudo. “Isso é particularmente problemático em um país como o nosso, com forte dependência tecnológica e um grande sistema público de saúde”, complementa Paranhos.

Entre 2014 e 2018, o DLOG desembolsou R$ 10,6 bilhões na aquisição dos nove medicamentos analisados pelos economistas. “É impressionante como poucos fármacos podem gerar uma pressão fiscal significativa no orçamento do SUS”, comenta a economista. O anticorpo monoclonal adalimumabe, usado no tratamento de artrite reumatoide, psoríase e doenças inflamatórias intestinais, foi o que mais impactou os cofres públicos. Seu custo total de compra no período foi de aproximadamente R$ 3,8 bilhões. Outro medicamento caro foi o eculizumabe, usado no tratamento da hemoglobinúria paroxística noturna, tipo raro de anemia que pode causar doença renal crônica, hipertensão pulmonar, entre outros efeitos. Estima-se que o governo tenha gasto pouco mais de R$ 2,3 bilhões na sua aquisição.

Rodrigo Cunha

Pelo menos três outros estudos, baseados em metodologias distintas, haviam projetado os impactos da extensão de patentes no orçamento do SUS. Um deles, feito em 2016 pelo próprio grupo do IE-UFRJ, estimou em R$ 2,1 bilhões o custo adicional relacionado à compra de outros nove fármacos com patentes com prazo estendido – dois desses remédios coincidem com os da lista da pesquisa mais recente de Paranhos e Mercadante: o sofosbuvir, contra hepatite crônica, e o adalimumabe. Já um levantamento de 2017 publicado também em Cadernos de Saúde Pública por pesquisadores do Inpi e do Instituto Nacional de Tecnologia (INT), no Rio de Janeiro, chegou a um custo adicional potencial de R$ 288,4 milhões para três antirretrovirais, usados contra infecções causadas pelo HIV. Mais recentemente, uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) se debruçou sobre 11 compostos adquiridos entre 2010 e 2019. Segundo os auditores, o SUS poderia ter economizado cerca de R$ 1 bilhão se a vigência de suas patentes não tivesse sido estendida.

Esse impacto poderia ser menor, pois o Ministério da Saúde tem a prerrogativa de requerer ao Inpi o exame prioritário de patentes de medicamentos que fazem parte de políticas de assistência ou que sejam considerados estratégicos. Isso aceleraria a conclusão dos processos e evitaria a exploração exclusiva dos fármacos por prazo superior a 20 anos. Mas, segundo relatório do TCU, o ministério utilizou-se dessa prerrogativa apenas 16 vezes desde que a norma passou a valer, em 2008 – estima-se que pelo menos 74 medicamentos tenham sido beneficiados pela extensão.

Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) colocou um ponto final no problema. Por 9 votos a 2, julgou inconstitucional o parágrafo único do artigo 40 da LPI. “A decisão tem efeitos retroativos”, esclarece o advogado Pedro Marcos Nunes Barbosa, professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). “Todas as patentes com potencial aplicação na área da saúde com prazo estendido de vigência – inclusive aquelas ainda em análise e que poderiam se beneficiar desse dispositivo da LPI no futuro – perderam o privilégio.”

Algumas empresas farmacêuticas agora tentam contornar a decisão do STF por meio de ações na Justiça Federal de Brasília. “Elas admitem que não há previsão legal para ampliação da vigência de patentes no Brasil, mas, como isso existe em outros países e o Inpi tem um déficit estrutural para analisar os depósitos, tentam aplicar, por analogia, uma regra jurídica aprovada por Congressos do exterior para atrasar o domínio público de suas patentes aqui”, explica.

Orçamento do INPI para custeio e investimentos caiu de R$ 80,1 milhões para apenas R$ 34 milhões nos últimos cinco anos

Existem mais de 30 ações judiciais desse tipo em curso no país. Em pelo menos duas, destaca Barbosa, foi concedida uma tutela de urgência em favor dos detentores das patentes. “Nenhuma ainda conseguiu sentença favorável, mas basta uma delas ganhar para gerar insegurança no mercado, uma vez que outras empresas usarão a estratégia para atrasar o domínio público de suas patentes e inibir a entrada de concorrentes”, diz o advogado. Ele esclarece que as empresas levam muito tempo e gastam muito dinheiro se preparando para lançar seus genéricos e biossimilares tão logo a patente do fármaco de referência caia em domínio público. “Elas precisam apresentar dados de qualidade, segurança e eficácia à Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] para obter o registro sanitário, o que pode levar meses, às vezes, anos.” Segundo Barbosa, esse planejamento torna-se inviável em um cenário de incerteza sobre o tempo de duração do monopólio.

A despeito dos impactos positivos no orçamento do SUS, alguns especialistas argumentam que a decisão do STF não toca na causa do problema: a histórica demora do Inpi para examinar os pedidos de patentes. “Suas condições de funcionamento seguem aquém do nível dos grandes escritórios internacionais”, comenta o advogado Matheus Ferreira Bezerra, professor na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Em trabalho recente, o economista Eduardo Mercadante estudou os processos de patenteamento no Brasil, sobretudo no que diz respeito ao setor farmacêutico. Ele comparou a situação do Inpi com a dos cinco maiores escritórios do mundo – Estados Unidos, China, Japão, Coreia do Sul e Europa –, além de Índia e México. Verificou que o Brasil está entre os que menos recebem pedidos de patente por ano – à frente do México apenas –, mas é o que mais demora para dar um parecer sobre eles.

Na avaliação de Mercadante, esse gargalo resulta sobretudo do baixo número de examinadores. “Eram 318 em 2019, ao passo que a China tinha mais de 12 mil e os Estados Unidos mais de 8 mil”, afirma. Na mesma época, cada examinador no Inpi tinha 641 pedidos acumulados – a média internacional é de 112 por examinador. “Os pedidos de patente esperam, em média, sete anos para começar a ser avaliados, mas o exame em si dura em torno de três anos e meio.”

Essa situação piorou nos últimos anos. Desde 2019, o Inpi viu seu contingente de examinadores encolher para 312. “Eles simplesmente não dão conta da pilha de pedidos”, acrescenta o economista. Para Bezerra, “essa morosidade pode desestimular o registro de novos fármacos no Brasil”. Elize Massard da Fonseca, especialista em saúde pública e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, discorda de que o país perderá espaço. “O atraso na concessão de patentes pode gerar um desincentivo, mas o Brasil é o sexto maior mercado farmacêutico do mundo e continuará atraindo o interesse de grandes empresas.”

Rodrigo Cunha

Entre 2013 e 2021, o número de patentes depositadas anualmente no Inpi, nacionais e estrangeiras, caiu de 34 mil para 26,9 mil, de acordo com dados da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, divulgados recentemente pela Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI). No mundo, ao contrário, o total de pedidos cresceu de 2,57 milhões para 3,22 milhões.

Em agosto de 2019, o Inpi lançou um plano para diminuir o número de patentes pendentes de decisão. A estratégia consiste em analisar os pedidos submetidos até 2016 com base em pareceres anteriores emitidos por escritórios estrangeiros – a maioria dos depósitos feitos no Brasil possui correspondentes em outros países, pois 70,5% são oriundos de instituições do exterior. A ideia, segundo Alexandre Dantas, assistente da Diretoria de Patentes, Programas de Computador e Topografias de Circuitos Integrados do Inpi, é acelerar o processo de exame técnico e reduzir o tempo de espera para o parecer final. “Simplificamos as análises solicitando ao depositante que ajuste seu pedido de patente de acordo com a versão aprovada pelo escritório internacional”, diz. A autarquia tinha quase 149,9 mil pedidos acumulados. Estima-se que a estratégia tenha reduzido esse estoque em 76,8% até 2021 – segundo Mercadante, porém, esse percentual refere-se apenas aos pedidos que podiam ser incluídos no plano em agosto de 2019 e não considera que muitos outros se tornaram pendentes desde então. “Minha estimativa é de que essa redução foi de 28%”, ele pondera.

O Inpi informa que conseguiu reduzir o tempo médio do primeiro exame para 2,4 anos, contados a partir do depósito do pedido. Isso acelerou o prazo para o parecer final, que é de 5,8 anos em 2022 nas áreas de fármacos e biofármacos, contados a partir do requerimento do exame técnico. Segundo Dantas, em parte, essa redução foi possível porque os pedidos deixaram de ser enviados para análise da Anvisa. Até então, a agência tinha de emitir um parecer pela anuência prévia quanto à concessão de patentes dessa natureza. “Aceleramos os trâmites com a revogação dessa determinação.” Na avaliação de Mercadante, contudo, é importante que a Anvisa continue participando do processo, e ele completa: “A estratégia adotada pelo Inpi é menos eficiente do que parece, pois restringe a autonomia dos examinadores, concede mais pedidos do que deveria e permite que invenções de menor qualidade sejam protegidas”.

De todo modo, o Inpi deverá enfrentar dificuldades para sustentar um ritmo de análise mais rápido. Nos últimos cinco anos, o montante disponível em seu orçamento para custeio e investimentos diminuiu progressivamente, saindo de R$ 80,1 milhões em 2018 para apenas R$ 34 milhões em 2022. Ao mesmo tempo, a parcela bloqueada como reserva de contingência saltou de R$ 258,5 milhões para R$ 371,5 milhões. “A contratação e o treinamento de examinadores são essenciais para o funcionamento do órgão”, destaca Bezerra. Para Paranhos, não menos importante é a efetivação de sua autonomia financeira e administrativa, “prevista na lei de criação do Inpi e na LPI, mas ainda longe de ser uma realidade”.

Artigos científicos
MERCADANTE E. & Paranhos J. Pharmaceutical patent term extension and patent prosecution in Brazil (1997-2018). Cadernos de Saúde Pública. v. 38, n. 1, p. 1-13. 2022.
PARANHOS J., Mercadante E. & Hasenclever L. O custo da extensão da vigência de patentes de medicamentos para o Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública. v. 36, n. 11, p. 1-13. 2020.

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