A pandemia da Covid-19 tornou o contato físico um risco. Atos corriqueiros como digitar uma senha bancária, manipular um termômetro para medir a temperatura de um paciente ou simplesmente liberar uma catraca são ações que agora demandam precauções. A busca por segurança nessas atividades do dia a dia está impulsionando a difusão de uma série de dispositivos tecnológicos. Pagamentos por aproximação, web check-in, vendas automatizadas, identificação, controle e acesso por biometria facial são algumas das facilidades que vêm ganhando espaço.
“A epidemia está provocando uma mudança comportamental que irá aumentar a velocidade da transformação digital do mundo”, analisa Fernando Osório, professor de computação e robótica do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos. Para Osório, o mundo conta com tecnologias prontas para atender ao anseio por segurança e comodidade da sociedade. “Vamos presenciar uma popularização dessas tecnologias, o que levará a um barateamento delas e sua incorporação em novas aplicações”, prevê.
A biometria facial (ver Pesquisa FAPESP no 274) é uma das tecnologias em ascensão. A startup paulista Hoobox, ligada à incubadora Eretz.bio, do Hospital Israelita Albert Einstein, recebeu apoio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP, para desenvolver dois dispositivos: o Sadiax, que faz o monitoramento com visão computacional de pacientes em leitos hospitalares, e o Neonx, para redução de fraudes no check-in com o uso de reconhecimento facial.
Paulo Pinheiro, CEO da Hoobox, diz que a necessidade de fazer o monitoramento de pacientes intubados na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) ou com máscaras levou a Hoobox a elaborar técnicas apuradas com o auxílio de inteligência artificial. “Passamos a incorporar aspectos fisiológicos como posicionamento dos olhos, altura da sobrancelha e flacidez do queixo para detectar o comportamento humano”, detalha. Ao monitorar as expressões faciais dos pacientes, o sistema pode flagrar reações de expressão de dor ou agitação, enviando alertas para a equipe da enfermaria.
O domínio dessas técnicas ajudou no desenvolvimento de um sistema que mede a temperatura a distância, capaz de detectar pessoas com febre, um dos sintomas da Covid-19. O sistema batizado de Fevver foi elaborado em parceria com outra startup, a Radsquare, que faz análise térmica por meio de radiação de energia infravermelha. Totens com o Fevver já estão em todas as entradas do Albert Einstein e geram uma notificação em tempo real aos recepcionistas, indicando a entrada de uma pessoa febril. A nova tecnologia já está sendo negociada com empresas, fábricas, escolas, bancos e redes de varejo interessadas em evitar o acesso de possíveis portadores de Covid-19 aos seus estabelecimentos.
Conheça o sistema Fevver, instalado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, que mede a febre das pessoas a distância
Crédito: Hospital Israelita Albert Einstein
Controle de acesso
Outra aplicação em que as tecnologias de baixo contato ganham relevância é no acesso a prédios residenciais, locais de trabalho, estabelecimentos comerciais, hospitais, escolas, estacionamentos, entre outros ambientes. Juliano Torres, especialista de produto da ZKTeco, fabricante chinesa de equipamentos de biometria com unidade em Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, relata que o receio de contaminação por contato físico está motivando seus clientes a migrarem seus sistemas de controle de acesso por impressão digital em portarias e garagens para soluções com biometria facial ou leitura de palma de mão a distância.
A Covid-19 também estimulou a ZKTeco a desenvolver uma nova linha de produtos que integra reconhecimento facial, verificação de temperatura corporal por infravermelho e um sistema de imagem para a confirmação do uso de máscaras de proteção. “O recurso pode ser configurado para impedir o acesso da pessoa febril ou sem máscara ou disparar um alerta aos gestores do sistema”, detalha Torres.
Para Leonardo Fonseca Netto, diretor de Tecnologia da japonesa NEC no Brasil, o reconhecimento facial leva vantagem diante de outros tipos de biometria, como íris, voz e impressão digital. “É um sistema eficiente e mais barato do que os demais, uma vez que capta imagens por meio de câmeras comuns no mercado. Os outros sistemas demandam hardwares específicos”, afirma. O controle da entrada de atletas, jornalistas e autoridades nos locais de competição da Olimpíada de Tóquio, adiada para 2021, será realizada por biometria facial fornecida pela empresa.
A NEC também fechou uma parceria com as 26 companhias aéreas que formam a Star Alliance para o uso da biometria facial nos processos de check-in, despacho de bagagens e embarque. A imagem do cliente é captada por meio dos aplicativos que vendem passagens e a verificação de sua identidade é realizada em totens dispostos em cada etapa do embarque nos aeroportos, com um ganho calculado de nove minutos em toda a operação. “A implementação começou em 2019 na Europa e vai ser estendida para todo o mundo”, informa Netto.
No Brasil, a companhia aérea Gol iniciou em maio um processo experimental de uso da biometria facial nos procedimentos de embarque com um sistema desenvolvido pela startup brasileira FullFace Biometric Solutions. Danny Kabiljo, sócio-fundador da empresa, diz que o sistema está em teste no aeroporto do Galeão, no Rio, e a expectativa é que seja estendido para outros aeroportos quando normalizada a demanda por viagens aéreas.
Inspirada no web check-in das empresas de aviação, a locadora de veículos Movida implementou um sistema para o aluguel de carros com reduzido contato físico. Em maio, a empresa passou a usar um aplicativo no qual a pessoa faz antecipadamente a reserva do veículo e todo o processo contratual gerando um QR code, um código de barras bidimensional escaneado por câmeras como as dos smartphones. O cliente se dirige diretamente à área de retirada do veículo, onde um funcionário, munido de um tablet e caneta touch, faz a leitura do QR code, o reconhecimento facial do cliente e colhe uma assinatura.
“A assinatura é o único contato físico, mas temos o cuidado de encapar o tablet com uma película. E a caneta é higienizada a cada uso”, diz o gerente de tecnologia Luiz Peixoto. O processo de contratação foi reduzido de 12 para 5 minutos. “Acreditamos que 80% das reservas vão migrar para o sistema até o fim do ano”, estima Peixoto.
Operações que se iniciam em um smartphone e são concluídas de forma tradicional também são tendência no mercado financeiro. No Japão, a NEC fechou uma parceria em 2019 com o Seven Eleven Bank para implementação de um sistema que dispensa os clientes do uso de cartões e qualquer contato físico nos caixas eletrônicos. A operação bancária é previamente realizada no celular, gerando um QR code. O cliente aproxima seu celular de um terminal de autoatendimento, ATM no jargão bancário. A validação da operação é confirmada por reconhecimento facial.
Pagamentos por aproximação
Tecnologias que permitem o pagamento por aproximação como o QR code e o Near Field Communication (NFC), no qual o usuário aproxima seu celular, cartão ou relógio inteligente da maquininha de cartão de crédito das lojas, são cada vez mais comuns no mundo e em alguns países já representam 90% das transações. No Brasil, essa modalidade de pagamentos cresceu 565% em 2019, alcançando R$ 6 bilhões. Um volume ainda pequeno perto de R$ 1,84 trilhão movimentado por cartões no país no último ano. Geralmente não é preciso digitar a senha na maquininha, a não ser no caso de compras de alto valor.
Ricardo Vieira, diretor-executivo da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs), avalia que o receio de contato físico gerado pela pandemia deve impulsionar a popularização do sistema de pagamentos por aproximação. “Muitos usuários passaram a experimentar esses tipos de transações durante o período de isolamento, e isso tende a acelerar o processo de uso do sistema”, declara o executivo.
A fintech catarinense Code Money soma 60 mil usuários ativos em seu aplicativo para pagamentos por dispositivos móveis e 5 mil estabelecimentos credenciados em Santa Catarina, Paraná e no interior de São Paulo e de Minas Gerais. Júnior Beltrão, CEO e fundador da startup, registra um aumento significativo de interessados em transações financeiras sem contato físico. Uma modalidade em ascensão é o link de pagamento, sistema no qual a transação gera um link compartilhado por meio de rede social e que pode ser concluído da forma eletrônica mais conveniente ao cliente. “Entre os novos interessados estão escritórios de advocacia e contabilidade, academias e até igrejas evangélicas que cadastram fiéis para receber o dízimo”, constata Beltrão.
O pagamento instantâneo, conhecido como PIX, é outra modalidade que gera expectativa de rápida expansão no mercado financeiro. O sistema permite a transferência eletrônica de recursos financeiros entre celulares utilizando o QR code. Ao finalizar uma compra, o cliente abre um aplicativo no seu celular para ler o código disponibilizado pelo estabelecimento. Após uma confirmação de identidade do usuário, que poderá ser feita por biometria facial ou leitura digital, a transferência é concluída e o recurso disponibilizado imediatamente ao comerciante. O sistema também permitirá transações entre pessoas e poderá substituir as tradicionais transferências bancárias conhecidas como DOC e TED. O Banco Central iniciou a fase experimental do PIX em janeiro e a previsão é de que esteja disponível em todo o país em novembro.
Supermercados autônomos
Compras em supermercados autônomos sem operadores de caixa e atendentes, como as realizadas nas lojas Amazon Go nos Estados Unidos, já são realidade no Brasil. A pioneira no país foi a Zaitt, que tem uma loja em São Paulo e outra em Vitória, no Espírito Santo, onde o consumidor baixa um aplicativo no celular e, por meio de um QR code, tem sua entrada e saída da loja liberada. Etiquetas dos produtos comprados são escaneados e o pagamento concluído no aplicativo.
Em Curitiba, a startup Market4u lançou um supermercado de autoatendimento instalado em condomínios em fevereiro, antes que as preocupações com a pandemia fossem relevantes no Brasil. As lojas contam com uma linha de produtos que varia de 200 a 700 itens. A definição do mix é feita segundo o perfil de consumo dos condôminos, previamente cadastrados em um aplicativo de celular.
É pelo aplicativo que toda a transação é realizada e o condômino vai à loja apenas para pegar o produto escolhido. A operação é registrada por câmeras de vídeo e áudio bidirecional e monitoradas remotamente. Em maio, a Market4u já somava 40 unidades instaladas em Curitiba e dois contratos de licenciamento para Fortaleza, no Ceará, e São Paulo. “A Covid-19 acelerou nossa expansão. Em um ano vamos estar com 700 unidades em funcionamento”, projeta Sandro Wuicik, CEO do Market4u.
Projetos
1. Sadiax –Tecnologia inovadora de visão computacional para monitoramento de pacientes em UTI (nº 18/22605-5); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Cláudio Gurgel Pinheiro (Hoobox); Investimento R$ 395.343,32.
2. Neonx – Tecnologia inovadora para check-in expresso de pacientes e diminuição de fraudes por reconhecimento facial (nº 19/09111-6); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Paulo Gurgel Pinheiro (Hoobox); Investimento R$ 77.311,35.