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Pesquisa na quarentena

“Temos que ser resilientes, é isso que a pandemia ensina”

Mal começou o doutorado, o farmacêutico Luís Feitosa precisou repensar os planos para se adequar às limitações impostas pela pandemia

Necessidade de trabalhar em casa permitiu aprofundar-se no estudo de ferramentas computacionais

Amanda Trabuco

Fui aprovado no doutorado em outubro de 2019, no campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, e minha bolsa foi concedida pela FAPESP em abril. Nesse momento eu já estava confinado em casa e precisei repensar as prioridades e o cronograma. O mundo parou e deixei de poder ir à faculdade, enquanto pessoas que não levavam a pandemia a sério continuaram a trabalhar normalmente por um tempo.

Eu trabalhava na indústria desde o mestrado, que terminei em 2014. Era uma empresa com atuação variada em química, inclusive na área de produtos naturais. Mantive a vontade de fazer algo para ampliar meu conhecimento, e afinal decidi. Apesar das dificuldades inesperadas, não me arrependo de ter voltado para a universidade logo antes da pandemia.

Temos um grupo de WhatsApp do laboratório para organização e cada um marca conversa com o orientador e com colegas conforme a necessidade, mas as reuniões presenciais fazem falta. Os professores aparecem muito em lives, são muito requisitados e nos informamos a partir desses canais.

A empresa na qual eu trabalhava já tinha uma parceria com o Departamento de Química Orgânica e eu conhecia os colegas mesmo antes de entrar, então tive tempo de estabelecer as conexões. Mas nem todos tiveram essa sorte. Uma estudante chegou do Recife uma semana antes da pandemia para fazer mestrado. Foi um baque completo, estava longe de casa e não conhecia ninguém. Acabou voltando para lá.

Mantive o isolamento desde o início porque minha esposa é imunossuprimida, eu não podia correr riscos. O laboratório continuou a funcionar por mais algumas semanas até os hospitais começarem a lotar, por volta de maio ou junho. A partir daí, foi recomendado que só se mantivessem as pesquisas relacionadas à Covid-19. Passei quase 100 dias sem ir à universidade e, no dia em que fui para organizar amostras, ao chegar lá recebi um e-mail do reitor instruindo a comunidade a não ir de maneira nenhuma ao campus.

Meu projeto envolve o uso de ferramentas computacionais para análises da química de produtos naturais. Essas plataformas eram um universo completamente novo para mim, então aproveitei o tempo em casa para estudar. Estudei farmácia e tinha mais conhecimento da parte da mão na massa com produtos naturais. Essa parte teórica foi um grande crescimento para mim, então não senti tanta defasagem profissional.

Este ano consegui até publicar um artigo a partir de atividades de bancada que tinha feito antes da pandemia. Meu projeto envolve a química de plantas de diferentes regiões da Mata Atlântica e utilizei a plataforma computacional para amostras que já estavam no laboratório. Isso vai ao encontro do que os orientadores têm recomendado: “Seja resiliente, continue estudando, readequando seus cronogramas e fazendo revisões bibliográficas”.

A parte prática ficou defasada. Eu esperava, até o final do ano passado, ter analisado entre 200 e 300 amostras das 600 espécies que pretendo estudar. Não analisei nenhuma. Meu estudo se concentra em um conjunto de espécies amostradas por um projeto do Programa Biota, o Ecofor, então as coletas são feitas por biólogos. Elas foram interrompidas até certo ponto, mas não sei em detalhes até que ponto e em que períodos.

A Faculdade de Ciências Farmacêuticas montou um protocolo de gerenciamento excelente para a retomada presencial das atividades com medidas de distanciamento social, utilização de EPIs [equipamentos de proteção individuais] e, principalmente, o revezamento de funcionários e pesquisadores nos laboratórios, que são pequenos. No nosso laboratório temos um técnico que é do grupo de risco e não voltou. Faz uma falta imensa: é quem comanda os equipamentos, que são bastante complexos.

Essa central analítica presta serviço a muitos pesquisadores, são equipamentos muito concorridos e a necessidade de distanciamento diminuiu o acesso. Terei menos tempo para cumprir as metas, que foram estabelecidas antes da pandemia. Em fevereiro deste ano, quando aumentei minha frequência no campus, os números de casos e internações começaram a subir demais. Além disso, uma doutoranda com quem faço uma parceria mais direta entrou no grupo de risco por ser gestante. Não podemos nos arriscar e continuo principalmente em casa.

A questão psicológica é a que mais pesa. Minha esposa é técnica, formada na mesma área que eu, então posso compartilhar as preocupações com ela. Mas outros pesquisadores, que vêm de outras cidades e vivem sozinhos, não têm ninguém para dar apoio se não conseguem resultados ou têm dificuldades no estudo autônomo ou no ensino a distância. Essas pessoas estão muito abaladas.

Por enquanto só tomei a primeira dose da vacina. Completando a vacinação e com números epidemiológicos favoráveis – será preciso ver se a variante delta vai causar problemas maiores e manter os cuidados de distanciamento e uso de máscara –, pretendo voltar mais ao laboratório. Temos que ser resilientes, é isso que a pandemia ensina. Sinto muita falta da vivência acadêmica, do café com troca de informações. As videoconferências tentam superar essa dificuldade, mas não conseguem. Tive febre nos últimos dias, mas é só sinusite: meu teste de Covid-19 deu negativo.

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