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ENTREVISTA

Fernando Antonio Novais: Ter sido colônia é a diferença do Brasil

Cada país tem características que o tornam único

Para Fernando Novais, as descobertas não terminaram. Milhares de documentos, inclusive os originais de Os Lusíadas, como foram escritos por Camões antes de serem submetidos à censura, ainda esperam nos arquivos de Lisboa.

Na sua tese de doutorado, o senhor trabalhou com documentos de entre 1777 e 1808. Foi muito difícil achar esses documentos?
A posição da documentação em meu trabalho não se distingue em nada de outros trabalhos de história. É característica dos trabalhos de história estarem centrados na documentação. Todos os trabalhos são baseados em fontes de documentação diretas. Elas não têm, necessariamente, de ser inéditas. Mas há uma tradição, sobretudo quando se trata de teses de que se deve sempre trabalhar com fontes primárias.

A documentação, então, é central?
Sim, a documentação sempre ocupa uma posição central nas pesquisas de história, mais do que em outras áreas. Em todas as ciências sociais, a documentação equivale à pesquisa empírica nas ciências exatas, à experimentação na química. Na história, é ainda mais fundamental do que nas outras ciências sociais. Certamente, a história é menos ciência do que elas. Além de tentar explicar o acontecimento, ela procura reconstituir.

Por que a história é menos ciência do que as outras ciências sociais?
Porque seu objeto não é perfeitamente definível. Como dizem os manuais de metodologia científica, duas coisas caracterizam qualquer ciência: a delimitação de um objeto e a adequação de um método a esse objeto. Qual é o objeto da história? Tudo o que acontece ao ser humano, em qualquer época e em qualquer lugar. Logo, o que caracteriza esse objeto é ele não ter limites.

Como era na época o Arquivo Ultramarino?
Não fiz a pesquisa somente nesse arquivo. Trabalhei em outros arquivos portugueses, em Lisboa e em Évora, e em arquivos brasileiros. Mas, no conjunto, o mais usado foi o Arquivo Ultramarino. Hoje, ele está muito melhor organizado. Havia na época um índice de códices, preparado por uma historiadora alemã. Eram mais de 3 mil códices. Não era um catálogo, que descreve o que há em cada códice, era simplesmente um índice. Além desse material, havia a chamada documentação avulsa. Eram maços ou caixas, com indicações sumárias, o local e o período. Uma enorme parte da documentação não estava nem em maços. Provavelmente, estava totalmente inédita. Não existe mais isso. Todo o material está pelo menos dividido por área. Mas, na época, boa parte do que consegui foi fruto de um autêntico trabalho de garimpo. Um bom, catálogo é muito importante. Facilita muito a pesquisa. Chega-se já sabendo o que se vai pedir, não é mais preciso garimpar. Mas desaparece um certo prazer que o historiador tem, de ficar garimpando coisas num arquivo até achar algo interessante.

A catalogação, então, diminui o entusiasmo do pesquisador?
Não, de forma alguma. A catalogação transfere o prazer da descoberta do arquivo para o catálogo. Mas, por mais que a catalogação seja bem feita, e considero esta do Resgate muito ampla, ela não destrói de todo a descoberta no Arquivo, pois há coisas que ficam fora do lugar. O pesquisador, por exemplo, está mexendo na documentação do Ministério do Reino e acha uma coisa sobre o Brasil que deveria estar no Ministério do Ultramar. Se até hoje as coisas são postas no lugar errado, imagine naquela época.

Então sempre poderá haver uma descoberta?
Sim. Além disso, há arquivos que ainda não estão totalmente catalogados. Imagine que há entre 35 mil e 40 mil processos da Inquisição em Lisboa.Num desses processos deve estar o original de Os Lusíadas, escrito pela própria mão do poeta Luís de Camões. Ele o enviou para a censura, antes de ser publicado. Na época, a Inquisição arquivava os originais, inclusive para determinar se não fora feita alguma mudança quando o texto era publicado. Os historiadores de Literatura já indicaram vários versos de Os Lusíadas que devem ter sido modificados pela censura. Como? Porque se trata de um assunto perigoso e o verso está num patamar de qualidade muito inferior ao de Camões.

Até hoje, então, não se acharam os originais de Camões?
Não. E ele está lá, no Arquivo Nacional de Lisboa, na Torre do Tombo. Só os processos da Inquisição são dezenas de milhares, cada um com cerca de 2 mil páginas. Além dos processos, há outros textos relativos à Inquisição. Creio que só 10% dos processos estão catalogados. Imagine o que vai acontecer quando alguém, finalmente, descobrir os originais de Camões. Além do valor de um documento escrito e assinado pelo próprio Camões, saberemos, finalmente, como eram os versos realmente escritos por ele.

Dos vários documentos existentes no Arquivo Ultramarino, quais o senhor achou mais interessantes para sua pesquisa?
Há vários tipos de documento nesse arquivo. Existem, inclusive, documentos totalmente avulsos, que ninguém sabe como foram parar lá. Só com a garimpagem será possível avaliá-los. Muitos são cartas pessoais. Nesse sentido, a catalogação facilita muito o trabalho.

Quais são os documentos básicos?
Creio que são as atas das reuniões do Conselho Ultramarino. Esse conselho era o órgão da administração portuguesa equivalente a um Ministério das Colônias. Foi criado pouco depois de 1640, quando houve a restauração e Portugal se separou da Espanha. A restauração ocorreu sem maiores problemas nas colônias. Mesmo assim, o novo governo queria consolidar o poder sobre as colônias. Outros documentos importantes são as consultas dos benefícios, as consultas do Conselho Ultramarino.

O que são essas consultas?
É um documento de assessoria. No regime absolutista, a terminologia reflete o conceito do poder. Por exemplo, a carta régia é um alvará com força de lei. Os documentos legais assinados pelo rei tinham uma introdução informando o assunto sobre o qual tratavam. A passagem da descrição do assunto para a determinação é feita pela expressão “sou servido a’: Geralmente, “sou servido a ordenar e como rei o faço”. A introdução é uma justificativa porque o rei é generoso e acede em dar explicações. Mas ele não precisa explicar nada. O motivo pelo qual ele determina é a sua vontade, por isso é servido a dar uma ordem.

Essas justificativas são longas?
Às vezes, sim. A introdução é sempre muito importante, porque define o problema.

Como era o processo?
Toda a correspondência dos governadores de capitanias, governadores-gerais e vice-reis, no período final da colônia, vai para o Conselho. Só chega ao rei pelo do Conselho. Os conselheiros se reúnem, discutem e encaminham o problema para o rei. Muitas vezes, há reclamações que seguem diretamente para o soberano, pois a gente da alta nobreza podia se dirigir pessoalmente ao rei. Mas o rei encaminhava tudo ao Conselho. Como o rei, por definição, sabe tudo, ele é rei por direito divino, é representante de Deus na Terra, não pode ser instruído, nem pode ser assessorado.

Ele sabe tudo?
Sim. Mas, na prática, o rei precisa da assessoria do Conselho. Às vezes, ele é um menino, às vezes ele é um débil mental. Mas a terminologia tem de estar de acordo com o conceito. É o rei que é consultado, não o contrário. Digamos que chega ao conhecimento do rei que jesuítas e colonos estão brigando no Maranhão por causa do preço dos estábulos. O rei, então, envia o problema ao Conselho Ultramarino, com a ordem: “Consultem-me sobre esse assunto”. Os conselheiros, então, escrevem longos relatórios, onde diziam: “De fato constatamos e consultamos Sua Majestade sobre se talvez não se devesse tomar tais e tais providências”. O que acontece é o inverso. O rei é quem está consultando. Mas o rei não pode consultar nem pedir o conselho de ninguém. Esses documentos são chamados de consultas. Falamos, por exemplo, na “Consulta do Conselho Ultramarino de março de 1749 sobre tal assunto”.

A correspondência dos governadores não era dirigida ao rei?
Sim, mas ia para o Conselho. As únicas exceções ocorriam com parentes do rei ou com pessoas de quem o rei gostava muito. A correspondência também é muito importante porque registrava os problemas que ocorriam nas capitanias. É interessante comparar a correspondência com as leis que eram promulgadas. O Conselho Ultramarino também cuidava de leis. Nem toda a legislação do período colonial já foi publicada.

Há mais material?
O material das instruções é muito interessante. Todos os vice-reis que serviram no Brasil, de 1763 a 1811, receberam instruções e fizeram as residências. As residências são documentos nos quais o vice-rei presta contas à Coroa. Quando a residência não era aprovada, ele podia até ser preso.

Quem aprovava, o rei?
Era o Conselho Ultramarino, que “consultava” o rei. Localizei todas as instruções no Arquivo Ultramarino. Antes, só duas ou três tinham sido publicadas. Algumas estavam catalogas, outras não. Consegui localizar todas e as analisei, uma por uma. Não consegui todas as residências. Mas o que obtive foi suficiente para ter uma visão geral. Além das instruções e residências, há os relatórios. Um dos mais importantes é do vice-rei marquês de Lavradio. Ele foi publicado num dos primeiros números da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1841.

O senhor vê a investigação do período colonial brasileiro como  uma necessidade para compreender mais profundamente a construção do Brasil?
Todo país, toda nação, quando faz sua história, deve procurar aquilo que é específico. O específico, no caso do Brasil, é ter sido uma colônia. É isso que diferencia o Brasil de outros países e aproxima o Brasil dos países da América. É o que distingue o país, também, dos países da Europa. Se perguntarmos o que é específico de Portugal como nação, é o de ter sido um feudo que se transformou num reino e, mais tarde, num Estado moderno. A França, por outro lado, é formada por feudos que se juntaram. Portugal é um feudo que se destacou, a França é um conjunto de feudos que se agregaram. A Espanha não é uma junção de feudos, mas de reinos. Cada país tem seu processo de formação.

E o Brasil?
O específico do Brasil é ter sido uma colônia. Antes de ser Brasil, era uma colônia de Portugal. Se a colônia se chamava Brasil ou não, não importa. Não era o Brasil nação, era o Brasil colônia. Aliás, o nome Brasil só foi aplicado a toda a colônia depois de certo tempo. O norte foi chamado várias vezes de Estado do Grão-Pará e Maranhão e o nome Brasil só se aplicava ao sul. O Brasil, assim, é uma colônia que se transformou numa nação, algo diferente de um feudo que se transformou em reino. A vinculação de uma colônia com sua metrópole não é a mesma de um feudo com seu senhor. A relação do feudo com o senhor é uma relação de suserania, a de uma colônia com sua metrópole uma relação de soberania. Um feudo não se torna independente. Ele se torna autônomo. A colônia, sim, se torna independente. Por isso, o Brasil teve uma independência.

Isso aproxima o Brasil dos Estados Unidos e da América Espanhola.
Sim, essa é a formação dos países da América em geral. Mas precisamos ver também que tipo de colônia o Brasil era de Portugal. Isso nos aproxima mais da colonização espanhola e da encontrada nas Antilhas do que a da América do Norte. É por isso que o estudo da colônia é fundamental, porque esse estudo é o estudo da formação do Brasil. Nossa formação é uma formação escravista. É colonial e escravista. Quanto melhor compreendermos isso, melhor compreenderemos o que somos. É a base da nossa sociedade.

E daí?
Daí que as pesquisas relacionadas com o período colonial são absolutamente indispensáveis. Qualquer estudo sobre o Brasil contemporâneo, o Brasil nação, tem embutido uma visão da colônia. Não se pode estudar o Brasil atual sem uma visão da colônia, queira ou não queira, seja ela melhor ou pior. A visão do Brasil nos séculos 19 e 20 será melhor ou pior, conforme os estudos dos historiadores sobre a colônia. Sejam estudos de historiadores ou de cientistas sociais.

E o papel de Portugal?
O estudo da colonização portuguesa é fundamental. O Brasil é uma colônia que virou nação. Para estudar a colonização, é essencial ter uma documentação, a documentação do Arquivo Ultramarino, do qual se está fazendo o resgate. Mas também é preciso dizer algo que talvez disto e das comemorações. Toda documentação é importante. Ela precisa ser conhecida. Mas o conhecimento definitivo de uma realidade não se esgota com o estudo da sua documentação. Por quê? Porque estamos falando de história, não de peixes, pedras ou árvores. Se fosse assim, quando todos os documentos do Arquivo Ultramarino estiverem lidos, não haverá mais história da colonização portuguesa. Não é isso o que vai ocorrer. Os mesmos documentos podem ser lidos de maneira diferente, a qualquer momento.

Fernando Antonio Novais é um dos mais conhecidos historiadores brasileiros, N ovais é pesquisador do Núcleo de Estudos Econômicos do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi professor da Universidade de São Paulo (USP), instituição onde se formou em Geografia e História, em 1957, e obteve o doutorado em ciências, em 1973. É autor de diversas obras. É dele a obra Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial e a organização do trabalho História da Vida Privada no Brasil, editado em quatro volumes em 1997

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