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Neurologia

Termômetro da evolução

Diferença de temperatura nos ouvidos sugere a existência de um cérebro complexo em sagüi

EDUARDO CESARSagüi do Cerrado (Callithrix pencillata): respostas emocionais mais refinadas em situações de estresseEDUARDO CESAR

Um termômetro parecido com o usado pelas mães para medir a febre dos filhos forneceu um indício de que o cérebro de uma pequena espécie de primata encontrada no Brasil, o Callithrix penicillata, popularmente conhecida como sagüi do Cerrado, ou sagüi-dos-tufos-pretos, pode ser mais desenvolvido do que se pensava. Quando submetidos a uma situação de intensa pressão psicológica, como a captura efetuada por um ser humano com o auxílio de uma rede, alguns desses animais apresentam uma temperatura significativamente mais baixa – poucos décimos de grau Celsius a menos – no ouvido direito do que no esquerdo. “Esse dado sugere que o estresse provoca uma grande ativação de estruturas neurais no hemisfério direito do cérebro dos sagüis”, diz Carlos Tomaz, do Centro de Primatologia da Universidade de Brasília (UnB), principal autor do trabalho com os bichinhos, que pesam entre 250 gramas e 450 gramas e não passam de 25 centímetros de comprimento.

O registro de uma temperatura menor no tímpano direito indica que houve uma ativação maior de estruturas nervosas situadas nesse lado do cérebro. Como se deduz isso? É que as áreas ativas do cérebro são ligeiramente mais frias do que as não-ativas. Isso ocorre porque a atividade neuronal atrai um maior fluxo de sangue, o qual tem um efeito refrescante sobre as áreas ativadas. Portanto, se um evento estressante fez a temperatura do ouvido direito dos sagüis do Cerrado ser um pouco mais baixa do que a verificada no ouvido esquerdo, os pesquisadores podem deduzir que esse hemisfério cerebral, o direito, é o mais usado nesse tipo de situação. Essa conclusão leva a uma outra, ainda mais interessante.

“Nosso trabalho é uma evidência fisiológica de que existe especialização ou assimetria cerebral nos sagüis”, afirma Tomaz. Os resultados das medições feitas pela equipe da UnB, que registrou a temperatura de 24 sagüis do Cerrado (14 machos e 10 fêmeas) mantidos em cativeiro no centro de primatas da UnB, foram publicados na edição de julho do Brazilian Journal of Medical and Biological Research. O estudo também fornece indícios de que há uma relação inversamente proporcional entre a temperatura no ouvido direito dos sagüis e o número de vezes que os animais tinham sido capturados pelo homem ao longo de sua vida.

Os macacos que haviam sido pegos entre 5 e 9 vezes tinham uma temperatura média no ouvido direito em torno dos 38o Celsius – um grau a menos do que a média dos sagüis que tinham sido capturados no máximo 4 vezes. É como se a experiência de repetidas capturas tivesse ensinado os sagüis a ativar de forma mais intensa a porção de seu cérebro envolvida na resposta ao estresse, no caso o hemisfério direito. Como se eles tivessem aprendido a acionar esse lado do cérebro em eventos ameaçadores.

Estratégia de sobrevivência
Se um dos lados do cérebro de um animal é mais utilizado do que o outro durante o desempenho de uma tarefa ou em resposta a um estímulo, os cientistas dizem que esse bicho apresenta especialização hemisférica ou lateralização cerebral. Esse traço denota uma certa complexidade operacional do sistema nervoso central e costuma ser associado a primatas antropóides, com formas assemelhadas às do homem, como o chimpanzé – além, é claro, do próprio ser humano. “A lateralização cerebral torna mais refinadas as respostas emocionais”, comenta Tomaz. “Isso seria vantajoso para o comportamento defensivo dos animais.”

Segundo uma teoria conhecida como hierarquização das funções cerebrais, a especialização hemisférica é de muita valia numa situação de grande estresse, como o risco de captura por um possível agente agressor. Diante do perigo, o cérebro de animais dotados de tal capacidade ativa prioritariamente as estruturas implicadas na formulação de uma estratégia de sobrevivência. Os demais circuitos cerebrais, que não estão diretamente ligados à resposta ao estresse, mas, sim, a outros tipos de estímulos, somente serão acionados mais tarde, num momento mais oportuno. Dessa forma, evita-se a competição entre as diversas funções e estruturas cerebrais, o que geraria perda de tempo e indecisão num momento crítico.

Por ser um representante dos chamados macacos do Novo Mundo (um grupo de símios surgidos há 40 milhões de anos na América Central e do Sul que, evolutivamente, estão mais distantes do homem e dos primatas antropóides), os sagüis raramente são encarados como candidatos naturais a apresentarem especialização cerebral, uma característica típica de um sistema nervoso central mais sofisticado. De acordo com a visão ainda dominante sobres esses animais, o funcionamento de seu cérebro deveria ser mais primitivo do que o de primatas mais próximos do ser humano. Ou seja, embora divido anatomicamente em dois hemisférios, o cérebro dos sagüis deveria operar de forma mais primária, deveria funcionar como se um fosse uma entidade única, sem exibir especialização hemisférica.

Ao mostrar, com o auxílio de um termômetro, traços de complexidade na resposta neuronal ao estresse em exemplares de C. penicillata, o trabalho da UnB lança dúvidas sobre a percepção mais difundida a respeito do funcionamento do cérebro de macacos do Novo Mundo e esquenta o debate sobre os primórdios da especialização hemisférica nos animais. “Nossos dados com sagüis do Cerrado podem ser importantes para se entender melhor a origem da assimetria cerebral em primatas”, diz Tomaz.

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