Como conduzir uma pesquisa arquivística e etnográfica quando as fontes primárias, a exemplo de documentos, fotografias e cartas, estão sob escombros? Como registrar relatos e narrativas quando grande parte das pessoas migraram para outras cidades ou, pior, se foram para sempre? Em 2022, quando iniciei meu doutorado no Departamento de História da Universidade de Koç, em Istambul, na Turquia, meu objetivo era analisar os processos emigratórios de árabes cristãos para o Brasil entre o final do século XIX e meados do século XX. Em específico queria entender as conexões sociais, históricas e culturais entre a região da Antióquia e São Paulo. No entanto, os terremotos de fevereiro de 2023 que atingiram a Síria e a Turquia e devastaram a Antióquia influenciaram profundamente o curso do meu projeto.
Antes de prosseguir, uma explicação. A Antióquia (ou Antakya, em turco) foi fundada no final do século IV a.C. e se tornou uma das principais cidades do Império Romano, sendo considerada um dos berços do cristianismo. Hoje é a capital da província de Hatay, criada pelo Estado turco como parte de um esforço de integrar a região à República da Turquia, proclamada em 1923. Entretanto, até hoje as comunidades autóctones costumam utilizar o nome “Antióquia” como sinônimo de toda a província de Hatay. O recorte temporal que abordo na pesquisa foi marcado pela instabilidade política e por conflitos nessa região, que forçaram muitas famílias a emigrar para várias partes do mundo, incluindo o Brasil.
Minha vida é também marcada por mudanças geográficas. No início dos anos 1990, quando eu ainda era bebê, meus pais deixaram o Ceará em busca de uma vida melhor em São Paulo. Cresci no ABC paulista, próximo de tios e tias, todos migrantes nordestinos, que trabalhavam juntos em um pequeno restaurante da família. Sempre estudei em escola pública, mas no ensino médio, devido ao esforço da minha mãe, frequentei um colégio particular e optei pelo curso técnico de química.
Nessa época, comecei a estudar inglês e espanhol, por conta própria, pela internet, porque queria viajar para fora do Brasil. Entre as ferramentas que usava estava uma plataforma onde os usuários podiam interagir com pessoas de vários países. Foi lá que conheci Yalçın Kaya, um engenheiro de computação turco apaixonado pela língua portuguesa e pela cultura brasileira. Ficamos amigos e minha família o hospedou em uma das viagens dele ao Brasil.
Em 2009, ingressei no curso de graduação de química na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), em Uberaba. Eu me mudei para Minas Gerais, morava em uma pensão, mas não estava feliz. Nesse mesmo ano, a convite da família do Yalçın, viajei para a Turquia. Ele conseguiu um estágio de meio período para mim em um call center, onde eu poderia exercitar o inglês, e me matriculou em um curso de turco. A ideia era passar dois meses naquele país, mas a empresa quis me efetivar. Como tinha dúvidas sobre minha vocação para a química e a família do Yalçın se dispôs a me acolher por um tempo maior, resolvi ficar em Istambul.

O pesquisador em trabalho de campo na Turquia, no ano passado
A língua turca não é fácil de aprender, mas tenho muita facilidade com idiomas. Em 2012 ingressei no curso de sociologia e no ano seguinte também fui aceito no curso de antropologia, ambos na Universidade de Istambul. Concluí as duas formações em 2017 e, no mesmo ano, iniciei o mestrado em estudos críticos e culturais na Universidade do Bósforo. Foi quando me aproximei da Antióquia. No trabalho, investiguei a noção de pertencimento de comunidades de cristãos árabes dessa região. Vivi por mais de um ano na Antióquia durante a pesquisa e fiz laços de amizade.
Como disse, iniciei meu doutorado em 2022, na Turquia. No ano seguinte veio o terremoto. A Antióquia foi duramente atingida. Vários dos meus amigos ficaram presos entre os escombros de suas casas e quase todos perderam parentes. Mais de 80% de tudo o que eu conhecia ficou em ruínas. Não havia outra coisa a fazer a não ser ajudar. Com a Nehna (Nós, em português), uma organização antioquina que reúne acadêmicos, jornalistas e pessoas interessadas na cultura e na história da comunidade cristã árabe do país, me envolvi intensamente em campanhas de apoio às pessoas afetadas pela catástrofe.
Em dezembro daquele ano fui aceito como pesquisador no Departamento de Estudos do Oriente Médio da Universidade de Groningen, nos Países Baixos. Foi assim que retomei minha pesquisa de doutorado, agora intitulada “Migrações árabes otomanas para a América Latina (Antióquia-São Paulo): Mapeando centros transnacionais, redes e patrimônio cultural”. A previsão é concluí-la em 2027.
Devido à destruição do centro histórico da cidade, de arquivos públicos e privados, bem como de extensas áreas residenciais, minha pesquisa se expandiu. Agora, além de investigar a ida de moradores da Antióquia para o Brasil entre os séculos XIX e XX, pretendo documentar também o patrimônio cultural daquela comunidade, que está ameaçado. Estamos falando de um risco duplo: à devastação provocada pelo terremoto se somam processos de reconstrução promovidos pelo governo turco que, a meu ver, são equivocados por não levar em conta a história local. Até hoje, por exemplo, a fundação que administra a Igreja Ortodoxa Grega da Antióquia, mesmo já dispondo dos recursos, não foi autorizada a iniciar a reconstrução de seu templo, um dos principais patrimônios religiosos da comunidade cristã árabe de forma geral.
No trabalho de campo na Turquia tenho me conectado às famílias árabes cristãs deslocadas após os terremotos, realizando entrevistas e coletando documentos pessoais, como as fotografias salvas dos escombros. Entre os resultados parciais da minha pesquisa estão dois artigos que escrevi para o livro, inédito no Brasil, cujo título em português é Antióquia pós-terremoto: Testemunhos, herança e futuro. A publicação foi lançada em fevereiro, na Turquia, para marcar os dois anos da tragédia, e é fruto de uma parceria da Nehna com a Istos, uma editora independente ligada à comunidade grega de Istambul. Sou um dos editores, juntamente com a pesquisadora da Universidade de Koç Anna Maria Beylunioğlu.
Em abril vou para São Paulo para mais uma etapa do trabalho de campo. Pretendo visitar famílias oriundas da Antióquia, além de instituições como o Arquivo Público do Estado de São Paulo e a Sociedade Antioquina do Brasil. Nunca perdi o vínculo com meu país e com minha família. A partir do conhecimento da língua turca, comecei a trabalhar com traduções de autores turcos para o português. No momento, em parceria com Nadia Duarte Marini, psicóloga brasileira da organização Médicos sem Fronteiras, estou vertendo Alvorada, romance da escritora turca Sevgi Soysal [1936-1976], cuja obra denunciou os horrores da ditadura militar na Turquia nos anos 1970. O livro deve sair em breve pela editora Tabla, do Rio de Janeiro. Mal posso esperar!
A reportagem acima foi publicada com o título “Escombros, memórias e imigrações” na edição impressa nº 349 de março de 2025.
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