Duas boas notícias chegaram ao Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), de Campinas. Uma delas é a de que o Laboratório passou, com elogios, pela sua primeira avaliação científica e tecnológica, realizada em fevereiro, depois de um ano e meio de funcionamento. A outra é a conclusão dos estudos e liberação das verbas para a construção do seu novo Centro de Biologia Molecular Estrutural. O Centro, que vai abrir novas perspectivas de estudo para os pesquisadores de biologia que usam a luz síncrotron, será construído com recursos do LNLS e da FAPESP, que contribuirá com R$ 830 mil.
A inspeção foi realizada por uma comissão mista de sete cientistas, sendo quatro de fora do Brasil. O relatório final do grupo foi muito positivo com relação às contribuições que o Laboratório, atendendo pesquisadores brasileiros e estrangeiros, fez nos seus primeiros meses de funcionamento. Esse tipo de inspeção faz parte do contrato de gestão entre a Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron, que administra o LNLS, e o Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Ministério da Ciência e Tecnologia, órgão provedor do laboratório.
Quanto ao novo centro de biologia, a contribuição da FAPESP destina-se à sua infra-estrutura, como suporte elétrico e hidráulico, ar-condicionado e câmaras frias. Sua importância é inegável. “O novo laboratório vai proporcionar, por exemplo, maior capacidade de elucidação de estruturas protéicas, que podem ser úteis tanto para a compreensão de processos biológicos como para a fabricação de medicamentos”, afirmou Rogério Meneghini, diretor associado da área de biologia do LNLS.
Limpeza
A comissão científica encarregada da avaliação do LNLS teve como presidente Volker Saile, do Instituto Mikrostrukturtechnik, de Karlsruhe, na Alemanha, e tinha a presença do professor Yves Petroff, diretor-geral do Laboratório Europeu de Radiação Síncrotron, localizado em Grenoble, na França, um dos órgãos mais importantes do mundo na área. Os membros do comitê fizeram entrevistas com diretores, funcionários – técnicos, administradores e pesquisadores – e usuários, além de analisar documentos financeiros, técnicos e científicos.
A organização e o programa científico do LNLS foram considerados excelentes e o Laboratório recebeu até um elogio pouco comum, o de ser impecavelmente limpo, especialmente quando comparado a compa-nhias privadas japonesas que operam com laboratórios de luz síncrotron. O relatório ressaltou também o suporte financeiro do governo federal, através do CNPq, e as oportunidades permitidas pela FAPESP, como a compra do mais potente microscópio eletrônico da América do Sul, para o recém-inaugurado Laboratório de Microscopia Eletrônica.
A comissão assinalou que a área de biologia tem participação de 25% nos trabalhos realizados no LNLS – 326 projetos, até o final de 1998 – e continua a crescer. Por isso, a construção do novo Laboratório de Biologia Molecular também foi citado como um complemento para a capacitação do LNLS no campo da biologia. Nesse campo, destaca-se, atualmente, a estação experimental de Cristalografia de Proteínas, uma das nove existentes no laboratório. Essas estações se situam em tangências do grande anel com circunferência de 93 metros, por onde corre, no vácuo de um tubo metálico, um feixe de elétrons a uma velocidade próxima à da luz.
Altíssima intensidade
Essas partículas são produzidas por um acelerador linear que produz 1,37 GeV (gigaeletronvolts), o que equivale a 10 milhões de vezes a energia de uma tomada caseira de 110 volts. Quando esse feixe de partículas sofre a ação, em sua rota, do campo magnético de uma estação, ocorre uma perda de energia dos elétrons. Essa perda escapa em direção à estação e se transforma na fonte da luz de altíssima intensidade chamada síncrotron, que agrupa desde radiações ultravioletas até infravermelhas e raios X. As estações experimentais captam e filtram essa energia com o comprimento de onda apropriado ao material a ser analisado.
Na estação de cristalografia, o objetivo é descobrir e descrever a posição dos átomos que compõem uma molécula de proteína, sempre em forma de estruturas tridimensionais. Fundamentais para o funcionamento metabólico de qualquer organismo vivo, as proteínas fazem parte das células e cumprem papéis como catalisar reações químicas e reconhecer e neutralizar antígenos, formas estranhas ao corpo. As proteínas, quando desvendadas, fornecem importantes informações para a elaboração de produtos farmacêuticos.
“Conhecendo a estrutura da proteína, podemos compreender como ela age e como interage com outras moléculas”, explica Igor Polikarpov, coordenador da Linha de Cristalografia de Proteínas. “Hoje, o interesse maior desse tipo de estudo está nas proteínas envolvidas em processos patológicos”, complementa Meneghini.
Enrijamento dos dedos
Os estudos realizados na estação já levaram às descrições das estruturas de dez proteínas, desde setembro de 1997. Duas foram extraídas de dois tipos de veneno, o do escorpião Tityus serrulatus e o da cobra Bothrops pirajai. Essas proteínas são responsáveis pelos danos causados por esses venenos ao corpo humano. “Conhecendo-se a estrutura da proteína, é possível combater os venenos mais facilmente”, afirma Polikarpov. Há mais estudos em andamento, entre os quais um sobre uma proteína envolvida no funcionamento do protozoário Plasmodium falciparum, agente infeccioso da malária.
Também está em estudo, sob a coordenação de Jorg Kobarg, uma proteína do vírus da hepatite B, doença que afeta 7% da população brasileira. Chamada de HX, ela confere o caráter infeccioso do vírus. Se ela for anulada, a virulência da doença será menor e, conhecendo sua estrutura, será possível desenhar uma outra molécula – um fármaco, por exemplo – que impedirá sua ação. Entre os outros trabalhos da estação de Cristalografia, também está a descoberta de como age uma proteína de um auto-anticorpo, agente de uma doença hereditária que provoca a aglutinação dos glóbulos vermelhos do sangue, levando ao enrijamento dos dedos e outras extremidades do corpo.
Outra aplicação em estudo na estação de Cristalografia é o delineamento da proteína álcool-desidrogenase, responsável pelo amadurecimento das frutas. Estudada pela equipe do professor Raghuvir Arni, do Departamento de Biofísica da Universidade Estadual Paulista, (UNESP), de São José do Rio Preto, essa proteína poderá fornecer a chave para acelerar ou desacelerar o amadurecimento, evitando grandes perdas que ocorrem na colheita e na armazenagem. “Depois do conhecimento completo dessa proteína, será possível modificá-la geneticamente ou acionar um inibidor, colocando as frutas numa câmara com um tipo de gás, ainda não definido, capaz de impedir que essa proteína exerça suas funções.
Uma área onde a demanda desse tipo de pesquisa deve crescer é a do seqüenciamento de genomas, trabalho hoje realizado em todo o mundo, inclusive em São Paulo, em diversos projetos apoiados pela FAPESP. Em entre 30% e 60% dos casos de novas descrições de seqüências de DNA, não são conhecidas as funções bioquímica e biológica das proteínas envolvidas.
A importância da cristalografia e da luz síncrotron no estudo de proteínas é demonstrada pelo fato de 12 empresas farmacêuticas de grande porte se terem unido para formar a Associação de Cristalografia Macromolecular Industrial. Elas usam, em conjunto, duas estações de luz síncrotron nos Estados Unidos. Entre essas empresas estão Glaxo Wellcome, Merck, Bristol-Myers, Squibb e Procter e Gamble. A demanda pela utilização da luz síncrotron é tão grande que cerca de US$ 1 bilhão está sendo investido, hoje, em novos aceleradores, nos Estados Unidos e no Japão. O LNLS brasileiro custou, até aqui, US$ 70 milhões.
Cristais de proteína
Quando o problema é determinar a estrutura da molécula de uma proteína, ganha-se precisão com a técnica da cristalografia e rapidez com o uso da luz síncrotron, na qual o cristal da proteína é exposto à difração de raios X. Nesse processo, as ondas dos raios X interagem com os átomos da molécula e se espalham, formando imagens difragmentadas. Analisando em computadores o padrão de distribuição dos raios e os espaços resultantes, obtêm-se informações capazes de compor, em três dimensões, a estrutura do átomo da proteína.
Para esse tipo de estudo, porém, é essencial que a proteína seja cristalizada. “Ao natural, em solução, é impossível analisar corretamente a estrutura da proteína”, diz Igor Polikarpov. Isso porque a cristalização leva a um arranjo estrutural altamente regular. Não à toa, uma das fases mais complexas do processo é a da preparação das amostras. O LNLS tem instalações especiais para isso, que também existirão no futuro Centro de Biologia Molecular Estrutural.
O primeiro passo é clonar o gene que contém a proteína que se deseja estudar. A proteína é então colocada numa bactéria específica, que entra em reprodução acelerada. Com isso, conseguem-se grandes quantidades da proteína, seja ela de origem vegetal ou animal. A proteína é purificada e submetida a um processo físico de agregação. Um aumento da concentração, obtida por agentes químicos, finalmente leva à cristalização.
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