Não se trata de biografia do arquiteto Lucio Costa (1902-1998) nem mesmo de obra completa de seus escritos. Registro de uma vivência é uma coleção pessoal dos mais significativos textos de sua autoria, na composição de uma trajetória de vida e trabalho intimamente entrelaçada. É o relato, ou melhor, “o roteiro”, como diz na apresentação sua filha Maria Elisa Costa, que, em movimento “cinematográfico” e “circular”, evidencia a dedicação admirável do intelectual nascido em Toulouse, cuja vida se confunde com o projeto brasileiro de modernidade.
É raro comemorar a reedição de um livro, mas esta merece ser celebrada. Lançada originalmente em 1995, e reeditada dois anos depois, com o acréscimo de um pequeno texto de Paulo Jobim, a obra rapidamente desapareceu das livrarias depois da morte do arquiteto. Com posfácio de Sophia da Silva Telles, a nova edição traz também um índice onomástico que ajuda o leitor a se orientar em suas mais de 600 páginas de depoimentos, projetos, croquis, fotografias, cartas e desenhos.
Lucio Costa deixou uma vastíssima obra que expressou melhor do que qualquer outra o diálogo entre as tendências internacionais do modernismo arquitetônico representado por Le Corbusier (1887-1965), Walter Gropius (1883-1969), Frank Lloyd Wright (1867-1959) e Mies van der Rohe (1886-1969) – todos amigos ou conhecidos pessoais de Costa – e colegas brasileiros como Oscar Niemeyer (1907-2012), Carlos Leão (1906-1983), Ernani Vasconcellos (1912-1989) e Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), com quem colaborou durante as décadas mais inventivas e revolucionárias do movimento. Mas, além de ocupar posição de contato horizontal com os movimentos internacionais, Costa também ofereceu uma visão vertical da história da arquitetura brasileira – desde o barroco colonial, passando pelo neoclassicismo e o período eclético – em função de sua atuação como consultor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) e de seus pareceres sobre obras, monumentos e edifícios históricos.
Convidado em 1930 para dirigir a Escola Nacional de Belas Artes (Enba), no espírito do novo Ministério de Educação e Saúde, Costa viu a reforma curricular fracassar, mas observou que “seu objetivo de reintegrar as artes e adequar a arquitetura à nova tecnologia construtiva concretizou-se na edificação da sede do ministério e na criação do Sphan”, abrindo as duas orientações principais de sua atividade posterior. Para ele, o trabalho com o patrimônio histórico foi equivalente à descoberta do barroco colonial pelos modernos da Semana de 22 e garantiu uma bússola de orientação histórica na linguagem plástica que viria a cunhar na liderança de uma grande geração de arquitetos, revelando o gênio Niemeyer.
Talvez, por isso, o momento mais impressionante dos muitos projetos relatados por Costa tenha sido seu papel na construção do Palácio Capanema, no Rio de Janeiro, entre 1936 e 1945. A mando do então ministro da Educação, Gustavo Capanema (1900-1985), o arquiteto ignorou o resultado do concurso para o projeto e convidou o já famoso Le Corbusier. Durante as quatro semanas em que esteve no Brasil, o arquiteto francês esboçou o projeto que serviria de inspiração para a construção do palácio. Por quase uma década, foi a teimosa liderança de Costa que garantiu a realização desse marco da arquitetura moderna.
No mesmo período em que levou Niemeyer para desenhar o Pavilhão do Brasil na New York World’s Fair de 1939, resultando em seu primeiro projeto com a característica curva ondulada, bastante elogiado pela crítica internacional, Lucio Costa recebeu recusa sumária de sua proposta para a construção da Cidade Universitária na Quinta da Boa Vista, elaborou o projeto visionário do Parque Guinle, no Rio, e o Park Hotel de Friburgo, na região serrana do estado. Inscreveu seu nome para sempre, na história da arquitetura mundial, com a nova capital federal, em Brasília, e a construção de um novo bairro, a Barra da Tijuca, pensado para dar à expansão urbana do Rio de Janeiro um outro equilíbrio. Lendo as propostas delicadas formuladas por Costa com precisão singela, sempre valorizando a escala humana, fica clara a injustiça das críticas feitas, ainda hoje, a ambos os projetos.
Karl Erik Schøllhammer é professor do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
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