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Traços ocultos de Portinari

Análises mostram como o artista produzia suas obras e podem ser úteis para confirmar a autoria de uma pintura encontrada em sua antiga casa

Pedro CamposA obtenção de imagens em diferentes comprimentos de onda, como o infravermelho, o ultravioleta e os raios X, está trazendo à tona nuances do processo criativo de Candido Portinari (1903-1962). Em parceria com restauradores e museólogos, a equipe da física nuclear Márcia Rizzutto, da Universidade de São Paulo (USP), empregou diferentes técnicas de análise físico-química para estudar obras do pintor e, em certos casos, conseguiu apontar traços ocultos que haviam sido esboçados e posteriormente encobertos com camadas de tinta por decisão do próprio artista. Os achados emergem de estudos feitos com pinturas de duas coleções de obras de Portinari mantidas no interior paulista: os murais do Museu Casa de Portinari, em Brodowski, cidade natal do pintor, e as telas do acervo sacro do Santuário Senhor Bom Jesus da Cana Verde, a igreja matriz de Batatais. Os estudos também aprimoraram o conhecimento científico sobre a composição química das cores preferidas pelo pintor, a chamada paleta de pigmentos.

As descobertas mais interessantes derivam de análises feitas em murais de uma pequena câmara, apelidada de Capela da Nonna, situada na antiga casa da família Portinari, hoje sede do museu, pertencente à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. A capela exibe imagens sacras e de santos com fisionomias inspiradas em membros da família do artista e em amigos. Foi criada no início dos anos 1940 para que a avó de Portinari, Pelegrina, então doente, pudesse rezar sem ter de ir à igreja. À esquerda de sua entrada, há um mural vistoso, de 1,80 por 1,60 metro, que retrata o encontro de Santa Isabel e Nossa Senhora, cujos rostos foram, respectivamente, desenhados a partir das feições da mulher de Portinari, Maria Martinelli (1912-2006), e da irmã do pintor, Olga.

Entrevista: Márcia Rizzutto
00:00 / 15:25

Rizzutto produziu imagens no espectro do infravermelho da figura de Santa Isabel e constatou que, por meio do acréscimo de traços de grafite, o pintor fez correções em três pontos do desenho: no contorno da sobrancelha, na forma de sua cintura (que foi reduzida em relação a um esboço inicial) e nos dedos da mão. “As marcas de grafite mostram o arrependimento do artista, o chamado pentimento, que mudou de ideia durante a execução da obra e alterou as formas da pintura”, comenta a pesquisadora, coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Física Aplicada ao Estudo do Patrimônio Artístico e Histórico (NAP-Faepah) da USP. Imagens em infravermelho são comumente usadas para investigar o processo criativo de pintores, pois podem detectar esboços feitos em grafite que foram encobertos pela tinta.

Detalhes escondidos em um mural
Imagens em diferentes comprimentos de onda revelam rachaduras e como o pintor criou a figura de Santa Isabel

Esses detalhes da forma de trabalho de Portinari são invisíveis quando o mural é observado ou fotografado de forma convencional no espectro da luz visível. As imagens em infravermelho e no ultravioleta também evidenciaram que, embaixo das camadas de cores que dão forma ao rosto da santa, há duas grandes rachaduras na parede, imperceptíveis a olho nu, que podem ter surgido devido a instabilidades da estrutura, hoje sanadas. Até mesmo fotos no comprimento de onda da luz visível podem ser úteis para destacar nuances insuspeitas de pinturas, desde que obtidas com iluminação fornecida por luz rasante. Nessa situação, a luz que ilumina a pintura deve se situar em um ângulo muito pequeno, denominado rasante ou tangencial, em relação à posição da obra de arte. Dessa forma, esse tipo de fotografia acentua eventuais desníveis na superfície e delineia o volume e as marcas de pinceladas.

Na medida em que foi tomando conhecimento da paleta do pintor e das marcas ocultas que seu método de trabalho costumava deixar, Rizzutto construiu uma base de dados sobre os elementos químicos presentes nas tintas das obras de Portinari. Com o emprego da técnica de fluorescência de raios X, na qual cada elemento químico emite um padrão particular desse tipo de radiação, mapeou os pigmentos que conferem cor às pinturas do artista. Segundo a física, o verde de Portinari era obtido com cromo ou uma mistura de cobalto e cádmio. No branco, o zinco predominava. A composição dos vermelhos variava de acordo com o tom: tinha em geral ferro, manganês com ferro, cádmio com selênio e até mercúrio. Os amarelos combinavam cádmio e, em alguns casos, até chumbo. “Portinari era um artista moderno, que já usava muita tinta comprada de bisnaga. Mas trabalhava muitas gradações de cores por combinação e tinha preferência por algumas misturas”, comenta Rizzutto.

Estudo do ano passado descobriu que Pablo Picasso escondeu um texto de jornal em uma de suas pinturas

Amparada por esse tipo de conhecimento, a física participou de uma tarefa ainda mais desafiadora em outro cômodo do Museu Casa de Portinari: determinar se o pintor é o autor de um mural, parcialmente coberto por argamassa, redescoberto há poucos anos. A pintura é um fragmento de Nossa Senhora com uma criança que originalmente adornava a parede de uma varanda da casa. Em uma das muitas alterações que Portinari promoveu no imóvel, o mural acabou soterrado por um reboco. “Ele prolongou a varanda para virar a sala principal da casa e, no processo de reforma, essa pintura acabou sendo encoberta”, conta Angélica Fabbri, diretora do museu. “Há alguns anos, nosso restaurador Julio Moraes encontrou um pontinho azul e foi descascando a parede até chegar na pintura.”

Como não há registro formal da obra, e sabe-se que, às vezes, Portinari convidava amigos para pintar em sua residência, ainda não foi possível atribuí-la ao artista de Brodowski. “A pintura tem alguns elementos que lembram uma obra de Portinari”, afirma Rizzutto. Entre eles,  a existência de um tipo de contorno nas figuras semelhante ao identificado em outros murais do museu. Por ora, no entanto, ainda não há uma conclusão sobre a autoria da pintura.

Pedro Campos Tela com 25 cores sobrepostas, usada para estudar efeitos da superposição de tintasPedro Campos

Jornal sob tela de Picasso
A análise química dos pigmentos e das imagens multiespectrais de obras de arte é um procedimento corriqueiro em grandes museus da Europa e dos Estados Unidos. Na Pinacoteca do Estado de São Paulo, por exemplo, várias obras passam por esse tipo de procedimento, realizado pela equipe do Instituto de Física sob a supervisão de especialistas em arte. Os estudos frequentemente revelam que os grandes mestres da pintura não hesitavam em reaproveitar telas anteriormente usadas em trabalhos menores ou esboços para dar vida a um novo quadro.

No ano passado John Delaney, cientista da imagem da Galeria Nacional de Arte de Washington (EUA), mostrou que as tintas da tela Mulher com criança perto do mar, pintada em 1902 por Pablo Picasso (1881-1973) e hoje em posse de um museu do Japão, escondiam dois segredos: um relativamente comum, a existência de um desenho anterior sobreposto pelos novos pigmentos; e um inusitado, um fragmento de texto da edição de 18 de janeiro daquele ano do diário parisiense Le Journal. “Para verificar se nosso foco era bom, apontei a câmera primeiramente na face da mulher e, para minha surpresa, imediatamente vi o texto de jornal em sua face”, disse, em um comunicado de imprensa, Delaney, que empregou imagens de raios X e de infravermelho em sua análise.

No Brasil, os trabalhos feitos na casa de Brodowski não foram os primeiros que colocaram Rizzutto diante do desafio de estudar a produção de Portinari. Em 2014, a equipe da física, que já analisara obras de Alfredo Volpi (1896-1988), Di Cavalcanti (1897-1976) e Anita Malfatti (1889-1964), foi procurada para examinar os trabalhos do pintor que estão na Igreja Matriz de Batatais. Além de sua experiência com esse tipo de estudo, o convite foi motivado por outro fator: a pesquisadora tem um laboratório móvel e pode transportar seus equipamentos de análise para os lugares onde estão as obras de arte. A igreja matriz tem 27 pinturas sacras feitas por Portinari. “Quando doou as obras, Portinari impôs a condição de que elas não poderiam sair da igreja em hipótese alguma”, lembra a restauradora Florence White de Vera, que então trabalhava no projeto de conservação dessa coleção do santuário.

Pedro Campos Mural descoberto no Museu Casa de Portinari em Brodowski cuja autoria está sendo estudadaPedro Campos

Uma das primeiras missões da física foi entender por que o azul de Portinari estava se deteriorando de forma estranha. “Quando aplicávamos o material para fazer sua limpeza superficial, a pintura ficava opaca”, explica White de Vera. O azul de Portinari é composto de cobalto ou de cobalto com estanho, misturados em meio a um aglutinante, substância que dá liga à tinta. Rizzutto recolheu uma lasca de pigmento azul que havia se soltado de uma tela e a levou para análises, algumas feitas no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas. “Em novembro do ano passado, finalmente concluímos que o esbranquiçamento é causado pela degradação do aglutinante, e não do pigmento em si”, conta Rizzutto.

Estudar pigmentos sobrepostos em uma tela é um dos maiores desafios enfrentados pelos pesquisadores. Algumas técnicas de imageamento por raios X e infravermelho são capazes de identificar obras superpostas, mas a análise das cores em si é problemática. Discriminar se o resultado do estudo diz respeito à cor que está por cima ou por baixo da sobreposição nem sempre é possível. Para minorar essa limitação, pesquisadores do NAP-Faepah decidiram produzir pinturas com pigmentos sobrepostos para que sirvam de base de referência.

A geóloga e restauradora Eva Kaiser Mori, que fez mestrado sob coorientação de Rizzutto, pintou uma tela padrão em que um conjunto de 25 pigmentos foram sobrepostos, resultando em 625 combinações diferentes. “Esse tipo de análise pode ser usado para determinar a espessura da camada de tinta sobreposta numa tela e, assim, descobrir se ela foi modificada ou falsificada”, explica Mori. As características dos pigmentos do quadro de referência foram descritas em artigo publicado em 20 de novembro de 2018 na revista X-Ray Spectrometry, cujo primeiro autor foi a física Daniela Balbino, da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Artigo científico
BALBINO, D. P. et al. Characterization of pigments used on a reference canvas by multiple techniques. X-Ray Spectrometry. 20 nov. 2018.

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