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HISTÓRIA

Trama ultramarina

Projeto evidencia a importância da ideia profética de “esperança” nas relações entre Portugal, Holanda e Inglaterra no século XVII

Alegorias e símbolos da esperança deixaram seu registro na iconografia. A gravura em papel Esperança (c. 1559-1562), de Philips Galle, a partir de um desenho de Brueghel, é uma das primeiras nas quais a âncora e o mar estão relacionados com a virtude da esperança em tempos turbulentos (225 mm × 293 mm, Rijksmuseum, Amsterdã)

ReproduçãoAlegorias e símbolos da esperança deixaram seu registro na iconografia. A gravura em papel Esperança (c. 1559-1562), de Philips Galle, a partir de um desenho de Brueghel, é uma das primeiras nas quais a âncora e o mar estão relacionados com a virtude da esperança em tempos turbulentos (225 mm × 293 mm, Rijksmuseum, Amsterdã)Reprodução

Era o despertar de um sonho. Um sonho impulsionado pelo padre português Antônio Vieira no século XVII: a esperança profética de um “Quinto Império”, inspirada no livro bíblico de Daniel, considerado apocalíptico por tratar dos acontecimentos relacionados ao fim do mundo. Vieira acreditava que, após os domínios dos assírios, dos persas, dos gregos e dos romanos, era o momento do último reino na Terra, o Império Português. A essa trama ultramarina se dedicou o historiador Luís Filipe Silvério Lima, professor de História Moderna desde 2007 na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Guarulhos. “No século XVII ocidental, principalmente europeu, o sonho era uma ideia muito poderosa para explicar o próprio mundo. Era uma metáfora do que é a vida. Diversos autores, entre dramaturgos, filósofos, políticos, padres, pintores e poetas, usavam o sonho para dar sentido à realidade”, diz Lima.

Durante suas investigações, o pesquisador observou conexões entre a ideia de Quinto Império proposta por Portugal e a Quinta Monarquia idealizada na Inglaterra e partiu para um novo projeto de estudo sobre interpretações e leituras das profecias no século XVII. “Na época da elaboração do projeto, discutiam-se muito os limites metodológicos da história comparada. Eram propostas outras abordagens que permitissem pensar para além das fronteiras nacionais, como as histórias conectadas, as histórias cruzadas, emaranhadas. Assim, a partir dessas perspectivas, pretendi identificar possibilidades de conexões entre Portugal e Inglaterra nesse período, em torno das expectativas proféticas e os projetos de Quinta Monarquia que, quase simultaneamente, apareceram durante a Restauração Portuguesa e a Revolução Inglesa”, explica o historiador, autor de Padre Vieira: Sonhos proféticos, profecias oníricas. O tempo do Quinto Império nos sermões de Xavier Dormindo (Humanitas, 2004) e O império dos sonhos: Narrativas proféticas, sebastianismo e messianismo brigantino (Alameda, 2010), desdobramentos, respectivamente, de sua dissertação de mestrado e sua tese de doutorado, orientadas por José Carlos Sebe Bom Meihy e defendidas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

fac-símile de Esperança de Israel

ReproduçãoFac-símile de Esperança de IsraelReprodução

O rabino e o padre
Nesse contexto, Lima identificou a Holanda como espaço privilegiado para vincular Portugal e Inglaterra. “O que é marcante, por exemplo, com o papel desempenhado pelo rabino Menasseh Ben Israel, um judeu de origem portuguesa que viveu na primeira metade do século XVII”, ilustra. Menasseh era de família cristã-nova portuguesa, cristãos de origem judaica convertidos compulsoriamente ao catolicismo. Assim como muitos judeus radicados em países católicos, como Portugal e Espanha, Menasseh migrou para França e depois para a Holanda para se reconverter ao judaísmo. Ali ajudou a fundar a Talmud Torá, também conhecida como Sinagoga Portuguesa. Nos tempos dominados pelo catolicismo, Amsterdã era uma das cidades onde se podia viver “publicamente” como judeu. “Era um porto relativamente seguro para quem quisesse professar a fé judaica. Muitos cristãos-novos portugueses foram para lá, fugidos ou não da Inquisição.”

O rabino Menasseh Ben Israel tornou-se uma referência para católicos e protestantes, reconhecido por seus conhecimentos bíblicos. Dialogou com outros expoentes da época, como o jesuíta Antônio Vieira, com quem certa vez teve um encontro e uma longa conversa sobre o fim do mundo, um tópico dominante nas discussões vigentes. Menasseh ainda despertou interesse de importantes círculos políticos, como os de Vasco Luís da Gama, conde de Vidigueira, depois marquês de Nisa, descendente direto do almirante português que descobriu o caminho marítimo para as Índias no século XV. Esses círculos estavam preocupados, entre outras coisas, com o papel possível dos judeus para a restauração da independência de Portugal de 1640, com a nova dinastia de dom João IV de Bragança, destacando o impacto negativo dos tribunais do Santo Ofício contra os cristãos-novos, alguns deles importantes mercadores. “A questão tinha uma dimensão religiosa e teológica, mas também política”, pondera.

A partir de suas pesquisas nos arquivos de Amsterdã, Lisboa, Londres e Washington, o historiador traçou conexões que permitem compreender as inquietações religiosas e políticas no século XVII, dominadas por uma ideia principal: a esperança. Entre 1649 e 1650, Menasseh Ben Israel escreveu o pequeno tratado Miqveh Israel ou esperança de Israel, por conta do interesse de milenaristas ingleses na suposta “descoberta”, relatada pelo cristão-novo Antonio de Montesinos, de uma das 10 tribos perdidas de Israel na América espanhola, mais especificamente na Amazônia. Na interpretação das páginas bíblicas, indicaria a vinda do Messias, a instauração do Quinto Império e, assim, a iminência do fim do mundo. A “notícia” parece não ter comovido particularmente a comunidade dos judeus-portugueses na Holanda, mas mobilizou os protestantes na Inglaterra. O livro do rabino foi traduzido para o latim (Spes Israelis) e para o inglês (Hope of Israel). “A América era o novo mundo, uma terra ainda desconhecida que se ‘encaixava’ perfeitamente na profecia. Quem eram esses americanos? Eram ou não descendentes de judeus? Se a Bíblia tinha todas as respostas, mas não tinha menções à América, quem eram então esses povos?”, diz o pesquisador, reverberando as questões que intrigavam os personagens daquele período. “Isso atraiu as atenções do mundo protestante, pois alguns milenaristas ingleses pensavam que também seria possível que os índios do norte da América fossem descendentes das tribos judaicas, além dos supostamente encontrados na Amazônia. Em parte devido a essas discussões, passou-se a reconsiderar a readmissão dos judeus na Inglaterra.”

L’Espérance, gravura sobre papel de Abraham Bosse (1636), publicada por Hernan Weyen (7,3 x 4,6 cm, Metropolitan)

ReproduçãoL’Espérance, gravura sobre papel de Abraham Bosse (1636), publicada por Hernan Weyen (7,3 x 4,6 cm, Metropolitan)Reprodução

Esperança
Além do tratado Esperança de Israel impresso na Holanda, outros escritos da época se pautaram pela esperança profética, que se traduziram em projetos políticos diferentes. Em Portugal, a carta Esperanças de Portugal, escrita pelo padre Antônio Vieira em 1659, consolando a rainha por conta da morte do rei dom João IV, anunciava sua ressurreição e o início do reino de Cristo na terra com o Quinto Império português. Na Inglaterra, o panfleto Door of hope, documento de autoria desconhecida divulgado em 1661, anunciava o reino dos santos para derrubar o rei Carlos II, recém-restaurado no trono inglês, conclamando um levante da Quinta Monarquia liderado pelo tanoeiro Thomas Venner.

Um ponto comum desses escritos era a fonte bíblica: as visões e os sonhos do livro de Daniel sobre os cinco reinos. Segundo Lima, porém, eram diferentes interpretações, que serviram para diferentes propostas e justificativas teórico-ideológicas para intervenções políticas. “A discussão teológica tinha um rebatimento político muito forte. No fundo, a questão era: qual é o espaço da ação humana para um projeto de Deus? Qual é o cálculo político possível? Parafraseando uma narrativa de Vieira: o capitão perdeu a hora e não chegou a tempo no porto, assim o navio demorou e a frota se atrasou, assim a esquadra não chegou a tempo na Índia e não conseguiu socorrer um forte, assim se perdeu o domínio do campo, se perdeu o dinheiro e, por fim, se perdeu o império. Isto é, o império seria um projeto divino, mas a ação humana era importante para realizá-lo”, exemplifica.

Nos três casos – Portugal, Inglaterra e Holanda –, a esperança era a palavra-chave. Na pesquisa iconográfica, o historiador descobriu ainda alegorias, emblemas e símbolos para a esperança, intrinsecamente relacionados ao mar desbravado pelas navegações. Ao longo dos séculos XVI e XVII, a esperança era retratada com uma mulher e uma âncora, que simbolizariam um porto seguro e, ao mesmo tempo, uma bússola para atravessar os mares tempestuosos. “A esperança, afinal, era uma virtude que implicava a ‘espera’ de algo. Para os cristãos católicos e protestantes, era a espera pela segunda volta de Cristo, pela salvação ou pelo Juízo Final. Para os judeus, a vinda do Messias”, diz Lima. “Na bibliografia, muitas vezes os termos ‘messianismo’ e ‘milenarismo’ são usados indistintamente. Mas há diferenças”, diz o pesquisador. Por “messianismo” compreende-se a volta do Messias. “Milenarismo” refere-se à volta de Jesus Cristo para um reino de mil anos na Terra, o millenium. No século XVII, os movimentos do Quinto Império português e da Quinta Monarquia inglesa se fundamentavam nesses pensamentos proféticos. Essas diferenças entre messianismo e milenarismo, no entanto, alerta o pesquisador, não são tão importantes ou operacionais para a pesquisa.

A partir desse projeto de estudo, encerrado em 2014, Luís Filipe Silvério Lima desdobrou outras iniciativas. Por um lado, pretende escrever um novo livro sobre as considerações já desenvolvidas. Por outro, na Unifesp, consolidou o Grupo de Pesquisa CNPq Poder e Política na Época Moderna. O objetivo é estimular mais estudos e consolidar a área de História Moderna no campus da universidade federal. Também desse projeto saiu um colóquio em 2012 sobre messianismo no mundo ibérico, que deve resultar em um livro publicado no exterior, organizado com a professora Ana Paula Megiani, da Universidade de São Paulo (USP).

Projeto
As interpretações e leituras das profecias dos cinco reinos no século XVII (nº 09/53257-3); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Luís Filipe Silvério Lima (EFLCH-Unifesp); Investimento R$ 93.023,00 (FAPESP).

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