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Pediatria

Trocando as defesas do organismo

Transplante de medula óssea é a melhor alternativa de longo prazo para a Ipex, doença autoimune infantil rara

Equipe do Instituto da Criança de São Paulo retira sangue da medula de um doador para depois transplantar em uma criança

Léo Ramos Chaves

O estudo de doenças raras depende, às vezes, de grandes colaborações internacionais para obter um quadro mais completo ou a melhor abordagem terapêutica de uma condição clínica que acomete um número reduzido de pacientes. Esse foi o espírito que norteou o trabalho de uma equipe de 83 pesquisadores de 38 centros médicos de 18 países, incluindo o Brasil. O time de especialistas confrontou os resultados de duas abordagens utilizadas no tratamento de uma enfermidade autoimune incomum e grave que se manifesta em recém-nascidos apenas do sexo masculino e é conhecida pela sigla Ipex. Em razão de um defeito genético, as células de defesa dessas crianças atacam descontroladamente vários órgãos de seu próprio organismo.

A primeira abordagem, o chamado transplante de células-tronco hematopoiéticas (de medula óssea ou de cordão umbilical), procura dotar a criança de novo sistema imunológico, com células sadias que não manifestem a doença ou a apresentem em menor grau. A segunda, baseada no emprego de medicamentos imunossupressores, tenta diminuir a ação das células de defesa, que, no caso da Ipex, em vez de protegerem o organismo contra ameaças externas, se voltam contra ele. Com base em 96 casos tratados de 2000 a 2016 nos países participantes do estudo, a equipe constatou que o índice de sucesso das duas terapias foi semelhante, embora ligeiramente maior no caso dos transplantes. Em cerca de dois terços dos pacientes, os tratamentos melhoraram a qualidade de vida dos doentes, segundo artigo publicado em março de 2018 na revista científica Journal of Allergy and Clinical Immunology.

No entanto, o perfil dos pacientes que mais se beneficiaram com a adoção de cada estratégia foi diferente. A análise retrospectiva dos casos – 58 tratados com células-tronco e 34 com drogas imunossupressoras – indicou que o transplante se mostrou a melhor estratégia de longo prazo para recém-nascidos ou crianças ainda sem danos em seus órgãos causados pela Ipex. “O transplante é muito mais caro do que a terapia com imunossupressores. Pode custar de R$ 200 mil a R$ 500 mil e requer dois a quatro meses de internação”, comenta a pediatra Juliana Fernandes, do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), que participou do estudo. “Mas, quando ele dá certo, os pacientes, depois de dois anos, não precisam mais tomar remédios nem ser internados. Já quem faz apenas o tratamento imunossupressor provavelmente terá de ser hospitalizado novamente.”

Por isso, o emprego da estratégia medicamentosa, que deixa o paciente mais exposto a pegar infecções, é aconselhado apenas em pacientes que já apresentam comprometimento de algum órgão (nesses casos, a adoção do transplante produziu resultados ruins, segundo o estudo) ou como alternativa para deter a progressão da doença antes do transplante. A universidade paulista participou do estudo com cinco casos de crianças com Ipex tratadas desde 2008. Três das cinco crianças passaram por transplante de células-tronco extraídas da medula dos pais ou, como alternativa, de cordão umbilical. Os transplantes foram pagos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Às vezes, é necessário repetir o tratamento para dar certo. “Em 2009, um menino de 2 anos e 6 quilos tinha diabetes, hepatite, anemia e danos nos rins em razão da Ipex”, relata Juliana. O primeiro transplante não trouxe os resultados desejados, mas o segundo, seis meses depois, foi eficaz. Dos problemas iniciais, restou apenas o diabetes no garoto, hoje com 13 anos. Seu irmão gêmeo, que nasceu com a mesma doença, apresentava um estado menos grave, mas morreu por causa de uma infecção severa antes de se submeter ao procedimento. O menino que sobreviveu tem um segundo irmão, de 6 anos, que também nasceu com a Ipex e igualmente passou por dois transplantes de células da medula, o segundo foi bem-sucedido. Eles estão bem e são acompanhados pelas equipes da USP em consultas anuais.

Uma síntese da Ipex

Nome completo
Síndrome da imunodesregulação, poliendocrinopatia e enteropatia ligada ao cromossomo X

Causa
Mutações no gene forkhead box P3 (FOXP3), do cromossomo X, impedem o desenvolvimento normal de um grupo específico de células do sangue, os linfócitos T reguladores. Em consequência, as células de defesa começam a atacar outras células e órgãos

Incidência na população 
Desconhecida. Atinge apenas recém-nascidos do sexo masculino

Manifestações
Diabetes tipo 1, diarreias de longa duração, redução da quantidade de células vermelhas do sangue, de anticorpos e de plaquetas; inflamação e danos no fígado, nos rins, nas articulações e na glândula tireoide

Tratamentos
Medicamentos imunossupressores ou transplante de células-tronco hematopoiéticas (de medula óssea ou de cordão umbilical), com uma eficácia de 70%

Por ser rara, complexa e fatal, a Ipex – sigla de síndrome da imunodesregulação, poliendocrinopatia e enteropatia ligada ao cromossomo X – sempre gerou incertezas entre os médicos. “Não existem diretrizes gerais e o tratamento depende da experiência de cada centro médico”, diz a pediatra italiana Federica Barzaghi, do Hospital São Rafael, de Milão, que coordenou o estudo internacional. “Uma avaliação dos resultados e uma comparação entre os dois tipos de tratamento, com uma amostra ampla de casos, nunca haviam sido feitas.” A doença resulta de mutações em um gene do cromossomo X, o forkhead box P3 (FOXP3), que impede o funcionamento normal de um grupo específico de células do sangue, os linfócitos T reguladores.

Quando essas células não funcionam direito, instaura-se um desequilíbrio no sistema de defesa do organismo e os linfócitos de outros tipos começam a atacar as células do próprio corpo, traço típico das doenças autoimunes. “O estudo intensivo da Ipex enriquece nosso conhecimento sobre o sistema de defesa do organismo e sobre outras doenças autoimunes, porque permite ver como as células T reguladoras são essenciais para manter a tolerância celular e não atacar as outras células do próprio corpo”, explica a pediatra Magda Carneiro Sampaio, professora da FM-USP e diretora do Instituto da Criança. De acordo com um artigo de 2016 publicado na Nature Reviews Cardiology, a disfunção das células T reguladoras pode favorecer o desenvolvimento de doenças cardiovasculares, como aterosclerose, hipertensão, aneurisma abdominal da aorta, hipertensão arterial pulmonar e infarto do miocárdio.

Na Ipex, que reúne sintomas de várias doenças autoimunes, as falhas das células T reguladoras podem causar, por ordem de frequência, nos casos examinados no estudo: diabetes tipo 1, por causa de danos ao pâncreas; diarreias de longa duração; redução da quantidade de células vermelhas do sangue (causando anemia), de anticorpos (o que leva a reações alérgicas e manchas vermelhas na pele) e de plaquetas (dificultando a coagulação do sangue); inflamação e danos no fígado, nos rins, nas articulações e na glândula tireoide; e queda de cabelo. Outra conclusão da análise dos 96 casos foi que os sintomas predominantes da síndrome independem do tipo de mutação no gene que controla o amadurecimento dos linfócitos T reguladores.

“Os dois tratamentos hoje usados para Ipex ainda precisam melhorar, porque a eficiência de cada um deles chega a no máximo 70%”, afirma Magda. O trabalho coletivo de análise da síndrome também evidenciou que a cura definitiva, segundo Federica, somente poderia ser atingida pela correção da falha genética que causa a doença: “Esperamos que a terapia gênica seja possível em breve para as crianças com os casos mais graves”.

Artigos científicos
BARZAGHI, F. et al. Long-term follow-up of Ipex syndrome patients after different therapeutic strategies: An international multicenter retrospective study. Journal of Allergy and Clinical Immunology. v. 141, n. 3, p. 1036-49. mar. 2018.
MENG, X. et al. Regulatory T cells in cardiovascular diseases. Nature Reviews Cardiology. v. 13, n. 3, p. 167-79. mar. 2016.

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