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Cardiologia

Ultrassom contra o infarto

Em teste inicial, terapia restabeleceu o fluxo sanguíneo no músculo cardíaco em 60% dos casos

Podcast: Wilson Mathias Junior

 
     
Uma nova estratégia para restaurar o fluxo de sangue nas paredes do coração e reduzir a morte do músculo cardíaco decorrente do infarto está em teste no Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo (USP). Quem sofre o primeiro infarto e chega ao instituto até seis horas após o início da dor no peito pode ser convidado a passar por um procedimento extra e inovador que promete diminuir os danos cardíacos.

O tratamento se chama sonotrombólise e é uma adaptação do ultrassom cardíaco, um exame de imagem que permite observar os movimentos e a integridade do coração. Indolor, exceto pela picada de uma agulha no braço, a terapia consiste em injetar na corrente sanguínea de 3 a 5 mililitros de um líquido opaco, contendo bilhões de microbolhas de gás, e, segundos depois, aplicar sobre o coração uma sequência de pulsos de ultrassom muito breves e de alta intensidade – a diferença entre o ultrassom usado no exame e o usado na sonotrombólise está na intensidade dos pulsos, mais elevada no último caso.

Inaudíveis para os seres humanos, as ondas acústicas do ultrassom fazem as microbolhas vibrarem até explodir. Quando se rompem, elas produzem uma pressão que, sem danificar as artérias, desfaz o coágulo em pedaços menores do que uma hemácia, a célula que distribui oxigênio pelo organismo e circula até pelos mais estreitos vasos sanguíneos, os capilares (ver infográfico). Sem o coágulo, o sangue volta a fluir e restabelece a chegada de oxigênio e nutrientes ao músculo cardíaco.

“É como usar dinamite para esmigalhar uma parede de concreto em escala microscópica”, resume o cardiologista Wilson Mathias Júnior, diretor do Serviço de Ecocardiografia do InCor e coordenador do ensaio clínico que avaliou a segurança e a eficácia da sonotrombólise. “Esta é a primeira vez que o tratamento é testado em seres humanos.”

Microbolhas_246No InCor, a equipe de Mathias selecionou 30 pessoas que haviam sofrido o primeiro infarto e as convidou para participar da avaliação da técnica. Assim que chegaram ao hospital, todos receberam a medicação tradicionalmente usada para reduzir a formação de coágulos: heparina, ácido acetilsalicílico e clopidogrel. Na sequência, enquanto aguardavam o cateterismo, os participantes passaram por uma de duas possíveis intervenções. Vinte receberam a injeção de microbolhas seguida de pulsos de alta intensidade de ultrassom. Os outros 10 também receberam as bolhas, mas acompanhadas de pulsos de baixa intensidade, usados para produzir imagens do coração. Os pesquisadores mediram o desempenho da sonotrobólise ao confrontar os dados dessas 30 pessoas com os de outras 70, que só receberam medicação anticoagulante e passaram por cateterismo para o implante de um stent, cilindro de tela metálica que mantém a artéria desimpedida.

Metade das pessoas do primeiro grupo apresentou melhora na circulação cardíaca antes mesmo do implante do stent. Um mês mais tarde a circulação no músculo cardíaco permanecia boa em 12 das 20 pessoas (60%) tratadas com as microbolhas e o ultrassom. O mesmo resultado foi alcançado por apenas uma das 10 pessoas que haviam recebido os pulsos menos intensos e por 16 das 70 (23%) do grupo de controle, segundo artigo publicado em maio no Journal of the American College of Cardiology.

Após essa primeira fase, outras 15 pessoas já passaram pelo procedimento no InCor, e a equipe de Mathias espera chegar logo a 100. O pesquisador sabe que, só com a avaliação de mais casos, poderá ter uma ideia mais precisa da eficácia da técnica. “O mais importante no momento é mostrar que o procedimento é seguro e pode gerar benefício”, afirma. “Mais adiante será preciso realizar um ensaio clínico maior, com outros centros.”

“Já tínhamos visto nos testes pré-clínicos que o ultrassom de alta intensidade era capaz de recanalizar as artérias coronárias e os vasos menores, que compõem a microcirculação”, conta o cardiologista Thomas Porter, do Centro Médico da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, coautor do estudo. Porter coordena a equipe norte-americana que colabora com o grupo do InCor. Foi durante uma temporada em Nebraska em 2006 que a médica brasileira Jeane Mike Tsutsui, do grupo de Mathias, demonstrou que o ultrassom de alta intensidade desfazia os coágulos no coração de cães submetidos a um modelo experimental de infarto. “Ficamos satisfeitos em ver um resultado semelhante nesse estudo inicial com seres humanos”, diz Porter. “Até o momento, não observamos complicações”, completa Jeane Tsutsui.

A sonotrombólise animou os pesquisadores por resolver um problema que nem o cateterismo com o implante de stent solucionou: restabelecer a microcirculação do coração, o fluxo pelos vasos de menor calibre, que estão em contato íntimo com as células e permitem a chegada de oxigênio e nutrientes. Estudos anteriores já mostraram que metade das pessoas que passam por cateterismo e recebem stents continua com a microcirculação obstruída por coágulos. “Essa questão ainda não foi resolvida pelas terapêuticas que compõem o estado da arte do tratamento do infarto”, informa Porter. “Já o ultrassom com as microbolhas diminuiu o problema.”

Mathias e Porter já iniciaram negociações com um fabricante de equipamentos de ultrassom para tentar tornar os aparelhos portáteis. A redução de tamanho permitiria usar a sonotrombólise em ambulâncias e unidades básicas de saúde e inicar o tratamento do infarto mais cedo. Para Mathias, essa disseminação pode ajudar a reduzir os danos do infarto em países como o Brasil, onde há cerca de 250 mil casos por ano. “Aqui”, diz Mathias, “apenas 30% das pessoas que sofrem infarto têm acesso aos medicamentos para evitar a formação de coágulos e 5%, ao cateterismo”.

Projeto
Uso terapêutico do ultrassom na doença arterial coronária aguda e crônica (nº 2010/52114-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático; Pesquisador responsável Wilson Mathias Júnior (InCor-USP); Investimento R$ 1.295.020,45.

Artigo científico
MATHIAS JR., W. et al. Diagnostic ultrasound impulses improve microvascular flow in patients with STEMI receiving intravenous microbubbles. Journal of the American College of Cardiology. 67;21. 2016.

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