Camundongos machos expostos ao odor de diferentes animais, incluindo alguns de seus predadores, acionam grupos distintos de neurônios do núcleo ventromedial do hipotálamo, estrutura cerebral associada a sensações de fome, estímulo sexual e medo. “Cada cheiro de natureza diversa gera um padrão de atividade neuronal organizada nessa região do cérebro”, comenta o biólogo Fabio Papes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador da equipe que fez o experimento, cujos resultados aparecem em artigo publicado em 28 de agosto na revista científica Cell Reports. O cheiro de gato, por exemplo, ativa um conjunto de células diferente daquele acionado pelo odor de fêmeas de camundongo (ver imagens).
Não é inédita a constatação de que muitas áreas do cérebro são acionadas quando um animal ou o ser humano é exposto a odores, incluindo a região do córtex cerebral envolvida com o olfato e mesmo o hipotálamo. Mas, de acordo com outros estudos, a atividade elétrica observada na maioria dessas regiões era aparentemente desorganizada, sem um padrão espacial discernível. Os neurônios pareciam ser ativados de modo aleatório. Trabalhos anteriores também já haviam observado atividade no hipotálamo quando roedores entram em contato com odores. No entanto, tais estudos trabalharam apenas com dois tipos de cheiro — o de gatos e o de camundongos. No experimento feito pela equipe de Papes, os roedores tiveram contato com o odor de gatos, leopardos, ratos, falcões, cobras, corujas e aranhas, além de fêmeas e machos de camundongo.
Localizado na base do cérebro, o hipotálamo é uma estrutura essencial e uma das regiões evolutivamente mais ancestrais do sistema nervoso. Entre outras funções, controla a produção de hormônios — como dopamina, ocitocina e gonadotrofinas — e está ligado a comportamentos instintivos em mamíferos, ou seja, a ações desencadeadas sem nenhum aprendizado prévio. No caso do olfato, essas condutas podem ser estimuladas por feromônios, moléculas orgânicas que deflagram comportamentos instintivos de defesa, acasalamento, agressividade e alarme.
Além de detalhar os diferentes padrões de acionamento do hipotálamo, Papes e seus coautores, que inclui Lisa Stowers, do Instituto de Pesquisa Scripps, nos Estados Unidos, mapearam o caminho percorrido pela informação nervosa entre o momento da captação do cheiro e a atividade no cérebro. Mamíferos possuem vários sistemas voltados para a detecção de odores, como o epitélio olfatório principal, localizado na parte posterior da cavidade nasal, e o órgão vomeronasal, situado entre o nariz e a boca. “Verificamos que tal atividade no hipotálamo, formando esse mapa nunca antes descrito de informações olfativas no cérebro, depende da detecção de odores pelo órgão vomeronasal”, diz o biólogo. Essa conclusão foi oriunda de experimentos realizados com camundongos geneticamente modificados em que uma mutação introduzida em seu DNA elimina a detecção de odores pelo órgão vomeronasal. Nesses animais geneticamente alterados, a exposição a diferentes odores não ativou neurônios do hipotálamo.
A equipe da Unicamp ainda tentou compreender se a resposta do cérebro a diferentes cheiros depende dos comportamentos deflagrados pelos odores gerados ou apenas dos estímulos detectados no nariz. Com o emprego de uma série de abordagens, incluindo uma técnica que utiliza vírus geneticamente modificados para marcar neurônios e suas conexões no cérebro, os pesquisadores perceberam que os padrões espaciais de atividade no hipotálamo derivam do que ocorre na cavidade nasal.
No nariz, existem células receptoras especializadas em captar cheiros que ativam grupos específicos de neurônios do órgão vomeronasal. Para cada cheiro, o estudo observou uma correlação entre quais células receptoras do nariz participam da detecção do estímulo e o padrão de atividade formado no hipotálamo. Essa observação contradiz ideias antigas de que a atividade do hipotálamo é condicionada pelos comportamentos deflagrados por odores. Nos experimentos do grupo, não foram observadas reações comportamentais distintas nos roedores que justificassem os vários padrões de atividade no hipotálamo.
Além de trazer contribuições fundamentais para a compreensão de como diferentes odorantes podem desencadear respostas fisiológicas e comportamentais específicas, o trabalho apresentado pelo time da Unicamp pode ser útil para o estudo de condições clínicas. “O sistema olfatório representa um ótimo modelo para compreender os circuitos neurais envolvidos em diversos comportamentos, como agressividade, atração sexual, medo e estresse”, afirma a bioquímica Bettina Malnic, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), especialista no funcionamento molecular do olfato, que não participou do estudo publicado na Cell Reports. Segundo ela, uma das questões mais importantes na área de neurociências é entender quais grupos de células nervosas são ativadas, como esses circuitos se comunicam e quais funções biológicas influenciam. A perda do olfato — ou anosmia — é, por exemplo, uma condição médica que causa limitações na vida das pessoas e pode ser um indício da existência de outras patologias. Na Covid-19, por exemplo, a anosmia, ainda que temporária, é um sintoma precoce em muitos pacientes infectados pelo novo coronavírus.
Projeto
Mecanismos subjacentes ao efeito da experiência social sobre os níveis hormonais, sinalização sensorial e comportamento (nº 15/50371-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Fabio Papes (Unicamp); Investimento R$ 161.549,15.
Artigo científico
CARVALHO, V. M. A. et al. Representation of olfactory information in organized active neural ensembles in the hypothalamus. Cell Reports. 28 ago. 2020.