Outrora hostilizada a ponto de ter sido alvo de uma passeata de protesto em São Paulo em 1967, a guitarra elétrica hoje convive pacificamente com instrumentos mais tradicionais da música popular brasileira. E não só nos palcos e estúdios de gravação. Também na academia. Um dos responsáveis por essa mudança de status é o instrumentista e compositor Budi Garcia, professor dos cursos de música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde leciona estruturação musical e guitarra elétrica.
O goiano Budi – nascido Hermilson Garcia do Nascimento – integrou, em 1989, a primeira turma do curso de música popular da Unicamp. Até ali, completara dois anos da faculdade de jornalismo em Goiás, que havia começado com o objetivo de trabalhar na cobertura do cenário musical. Ingressar num curso superior de música erudita não era uma ideia que o atraísse. Quando finalmente foi criado um curso que correspondia a seus interesses, encontrou uma turma visivelmente animada. “Provavelmente era sinal de uma demanda reprimida, prevista pelo maestro Benito Juarez quando convenceu o conselho superior a aprovar a criação de um espaço para a música popular na Unicamp”, diz Garcia. “No Brasil, a música popular preserva um vínculo estreito com a realidade social, o que a destaca da música erudita.”
Se há resistência ao repertório popular nos meios acadêmicos, em relação à guitarra o estigma é duplo. “O Brasil é o único país que faz distinção vocabular entre violão e guitarra”, diz Garcia. A palavra “violão” teria nascido para diferenciar a guitarra da viola “caipira”. A oposição entre violão e guitarra não veio propriamente da eletrificação do instrumento (que já existia desde a década de 1930), mas do surgimento do rock, identificado ideologicamente como música estrangeira indesejada. “Estava em jogo uma afirmação da identidade musical, o que foi até bom porque, nos anos 1960, a MPB pôde se mostrar para o mundo como algo diferente e único”, diz o músico.
A década já era a seguinte quando Garcia, adolescente e morador de Belo Horizonte, se interessou pela guitarra elétrica e pelo rock. Ele vinha tocando violão desde a infância, e a fase roqueira rapidamente enveredou pelo que na época se chamava de fusion, uma mistura de jazz e rock (com uma vertente que dialogava também com choro e bossa nova) que repercutiu fortemente entre músicos brasileiros como Heraldo do Monte, Hélio Delmiro e Toninho Horta.
“Assim, por via da guitarra, eu reencontrei a música brasileira”, diz o professor, que atualmente desenvolve na Unicamp a pesquisa “O projeto brasileiro do guitarrista Heraldo do Monte”, com apoio da FAPESP. Hoje com 80 anos, Heraldo sempre se dedicou à guitarra elétrica, passando praticamente ao largo do rock. “Sua atuação nos anos 1960 impulsionou a construção de um estilo com sotaque brasileiro e especialmente nordestino”, diz Garcia. Um dos objetivos acadêmicos do pesquisador era dar continuidade a trabalhos sobre a música popular brasileira feitos no campo das ciências humanas (sociologia, linguística e história sobretudo) em uma época em que a academia só tinha espaço para a música de concerto.
Embora tenha se tornado professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) em 1994, Garcia resistiu em fazer pesquisa acadêmica. Não se sentia à vontade em partir para a teorização e percebia um ambiente “muito refratário à música popular”. Estava habituado a tocar na noite de Goiânia e Belo Horizonte ao lado de músicos conhecidos (além dos já citados, o trombonista Raul de Souza e o pianista Wagner Tiso) e receava penetrar em um mundo que de início lhe parecia restrito. A pesquisa, se limitou sua presença em apresentações e gravações, não o afastou dos grandes nomes. Seu mestrado em 2001 foi sobre o pianista Custódio Mesquita, da era de ouro do rádio. No doutorado voltou-se para o maestro Cyro Pereira, nome importante da fase dos festivais dos anos 1960, que foi seu professor na Unicamp. Agora, estuda Heraldo do Monte.
As prioridades foram se invertendo para Budi Garcia e os afazeres acadêmicos hoje ocupam quase todo o seu tempo – embora, pela natureza da atividade musical, a prática e a teoria sempre andem lado a lado. O pesquisador acabou se tornando hábil na conciliação das duas atividades. A produção fora da universidade está um pouco dormente desde 2007, quando lançou o CD independente Azul marin. “Hoje tenho a perspectiva de fazer coisas mais pontuais”, diz.
Sua atenção está voltada para o lugar em que, na graduação, foi despertado para vários aspectos da música – entre eles os arranjos orquestrais ensinados por Cyro Pereira e as inspirações vindas da música erudita, quando “invadia” aulas como as do compositor Almeida Prado. “Eu me encharquei daquele clima; foi muito transformador”, diz Garcia. A meta agora é desdobrar a pesquisa sobre Heraldo do Monte em um projeto maior para, trabalhando sobre a ideia de uma guitarra brasileira, explorar a criação de novas linguagens.
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