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Geologia

Um Himalaia afrobrasileiro

Rochas do Brasil e da África guardam vestígios de cadeia de montanhas que teria existido há 600 milhões de anos

Amostra de coesita coletada no Mali: esse mineral só se forma a profundidades superiores a 90 quilômetros

Renaud Caby / Universidade de Montpellier IIAmostra de coesita coletada no Mali: esse mineral só se forma a profundidades superiores a 100 quilômetrosRenaud Caby / Universidade de Montpellier II

Geólogos do Brasil, da Austrália e da França encontraram indícios da formação de uma gigantesca cadeia de montanhas, equivalente à do atual Himalaia, em rochas com pouco mais de 600 milhões de anos de idade. A cordilheira teria se espalhado num arco de pelo menos 2.500 quilômetros (km) de extensão, numa região que abrange o atual Nordeste brasileiro e países como Togo e Mali, na África Ocidental. A formação das montanhas coincide com o primeiro episódio de diversificação no planeta dos seres vivos multicelulares, o que pode indicar que o processo geológico teria dado impulso a essas transformações evolutivas. Os dados estão descritos em artigo na revista científica Nature Communications, que tem como primeiro autor Carlos Ganade de Araujo, que é pesquisador do Serviço Geológico do Brasil, no Rio, e concluiu seu doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) neste ano, sob orientação do geólogo Umberto Cordani.

“A associação de processos desse tipo com o surgimento da vida complexa é algo que vários trabalhos anteriores já vinham apontando”, conta Araujo. “A novidade do nosso trabalho é mostrar que o surgimento desse grande arco de montanhas foi sincrônico, dentro da margem de erro das técnicas usadas para medir esse timing, e que ele bate com  o surgimento de fósseis da fauna do Ediacarano [período geológico em que ocorreu o florescimento da vida multicelular].”

A principal pista da existência do “Himalaia Ediacarano” são as rochas encontradas no Brasil, no Togo e no Mali. Hoje encontradas na superfície da crosta, essas rochas se formam em condições de altíssima pressão, em geral a profundidades de 100 km. Tais rochas, relativamente raras, surgem de processos de subducção, ou seja, quando uma das placas tectônicas que compõem a superfície terrestre colide com outra placa e passa a deslizar por baixo dela.

No caso das rochas coletadas no Nordeste e nos países africanos, essa subducção se deu no confronto entre duas placas que carregavam continentes. Depois de as bordas das placas ficarem “encavaladas”, as rochas alteradas pela violenta pressão desse processo voltaram a subir, gerando cordilheiras monumentais, como o Himalaia de hoje.

“Esse é outro ponto importante do trabalho”, diz Araujo. “Os dados que nós obtivemos mostram que esse provavelmente é o exemplo mais antigo desse processo de subducção continental em grandes profundidades e, portanto, do funcionamento das placas tectônicas da Terra como o conhecemos hoje.” É provável que antes desse período não existissem montanhas dessa magnitude na superfície do planeta. O trabalho atual pode, portanto, ajudar a entender a estrutura profunda de montanhas como os Alpes e os Himalaias, que se formaram pelo processo de subducção continental. As raízes dessas montanhas não podem ser acessadas hoje por estarem  a dezenas de km abaixo da superfície.

A datação das rochas foi feita graças à presença de zircão, um mineral que possui pequenas quantidades de urânio e tório. Variedades radioativas desses elementos se transformam em outros elementos químicos a taxas conhecidas, o que permite estimar a época em que o mineral foi formado. Para ser mais exato, as amostras brasileiras e africanas têm idade em torno de 610 milhões de anos.

Segundo os geólogos, a formação do “Himalaia afrobrasileiro” desencadeou processos acelerados de erosão, que passaram a carregar grande quantidade de nutrientes (sedimentos) para os oceanos. Esse “banquete” teria levado ao grande desenvolvimento de organismos que fazem fotossíntese e aumentado os níveis de oxigênio nos mares e na atmosfera.

Essas condições ambientais favoráveis, por sua vez, teriam sido ideais para o aparecimento dos primeiros organismos multicelulares. A chamada biota ediacarana ainda é relativamente misteriosa: são criaturas discoidais ou que lembram vermes e talos de algas, cuja relação exata com os animais marinhos que vieram depois ainda não é bem compreendida.

Projeto
Caracterização geocronológica e termocronológica das rochas de alto grau associadas à orogênese neoproterozóica nas adjacências do Lineamento Transbrasiliano-Kandi (NE Brasil – NW África) (nº 2012/00071-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Umberto Giuseppe Cordani (IGC-USP); Ìnvestimento R$ 144.331,80 (FAPESP)

Artigo Científico
GANADE DE ARAUJO, C.E. et al. Ediacaran 2,500-km-long synchronous deep continental subduction in the West Gondwana Orogen. Nature Communications. 16 de out. 2014.

 

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