Comecei a trabalhar como docente no curso de psicologia da Unesp [Universidade Estadual Paulista], no campus de Assis, no interior de São Paulo, em 1977. Na ocasião, eu tinha acabado de finalizar a graduação na mesma instituição e fazia mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [PUC-SP] sobre crianças vivendo em orfanatos. Morava em Marília, onde minha esposa era professora universitária. As duas cidades ficam a 77 quilômetros de distância e eu percorria esse caminho diariamente, sem contar as viagens para São Paulo, por conta do mestrado, que finalizei no começo da década de 1980.
Naquela época, comecei a prestar atenção nos andarilhos que circulavam pela rodovia Rachid Rayes, que liga Assis a Marília. São pessoas que vivem caminhando pelos acostamentos, levando consigo seus parcos pertences em sacos ou mochilas surradas, ou então acomodados, por exemplo, em carrinhos de mão. A imensa maioria é homem. Passei a sair mais cedo de casa para poder parar na estrada e conversar com eles, antes de chegar à universidade para lecionar. Tinha então 27 anos. Eu me aproximava e me apresentava como professor universitário, mas fazia isso com grande receio por não saber como seria recebido. Nem sempre era bem-sucedido, muitos se recusavam a conversar comigo.
– Andarilho (2006), documentário de Cao Guimarães
Entrei no doutorado em psicologia social em 1982, também na PUC-SP, para investigar dinamismos psicológicos presentes em ideologias autoritárias. Em paralelo, fui percebendo que os andarilhos constituíam um campo de pesquisa pouco explorado no Brasil. Com o doutorado concluído, decidi transformar minha curiosidade em um projeto de pesquisa que já dura mais de 30 anos. Nesse período, fiz diversos mapeamentos sobre as condições de vida de andarilhos no interior paulista, publiquei dois livros e 11 capítulos em obras diversas, além de vários artigos. Orientei mais de 40 estudos sobre o tema, incluindo iniciações científicas, mestrados, doutorados e trabalhos de pós-doutorado. Desde 1996, diversas pesquisas que desenvolvi ou orientei sobre o tema foram financiadas pela FAPESP, inclusive o projeto atual, que será finalizado em novembro.
Ao longo desse tempo, desenvolvi uma forma de abordagem por meio da qual consigo interagir com a maioria das pessoas com quem tento conversar. Vou sozinho ou acompanhado de outros pesquisadores e alunos, estaciono o carro no acostamento a certa distância. Sempre ofereço uma garrafa d’água, mas o mais importante nesse contato é estender a mão para cumprimentá-los. Eles dizem que é mais difícil conseguir um aperto de mão do que comida ou lugar para dormir. Em seu cotidiano, enfrentam situações de preconceito e descaso. São pessoas invisíveis, não há políticas públicas específicas elaboradas para elas. O grande desafio desse campo de estudos, aliás, é a falta de referências sobre essa população em estatísticas oficiais.
Os andarilhos vivem exclusivamente nas estradas, dormem em postos de combustível, debaixo de pontes ou viadutos, em abrigos de pontos de ônibus ou no meio do mato, forrando o chão com um pedaço de plástico e se protegendo com uma coberta. Eles andam sempre na contramão do fluxo dos veículos. Costumam conseguir comida em restaurantes, doada pelos proprietários dos estabelecimentos e caminhoneiros. Eventualmente, compram uma marmita. Aqueles que possuem carrinhos de mão ou bicicletas, via de regra carregam mantimento, utensílios básicos de cozinha e improvisam um fogareiro para preparar a própria refeição. Evitam entrar nas cidades e só o fazem em caso de extrema necessidade.
Já os trecheiros pulam de cidade em cidade, onde permanecem por curtos períodos, sejam dias ou, no máximo, semanas. Nos deslocamentos, podem ir a pé pelos acostamentos, tal como os andarilhos, ou vão de ônibus, com passagens oferecidas pelos serviços municipais de assistência social. Para sobreviver, também recorrem a entidades filantrópicas e se misturam a pessoas em situação de rua. Lançam mão de “achaques” ou “mangueios”, expressões utilizadas para denominar os pedidos de ajuda que fazem nas ruas. Os trecheiros não se referem a essas abordagens como mendicância, algo que consideram humilhante. Segundo eles, o “achaque” ou o “mangueio” são formas de solicitar ajuda com dignidade e astúcia, mediante o uso de uma narrativa, uma retórica mais caprichada, com “arte”, segundo alguns me dizem em entrevistas.
Os andarilhos estão sempre sozinhos. Dizem que a solidão é o principal desafio que enfrentam. Uma parcela deles realiza pequenos bicos, principalmente em trabalhos de capina, jardinagem e outras atividades braçais, como em olaria ou canavial. As oportunidades profissionais são escassas e, quando aparecem, muitas vezes apresentam condições análogas à escravidão.
Alguns deles me contam que caíram na estrada em razão da dificuldade de permanecer nas cidades, por terem ficado desempregados ou por causa do baixo salário. Outros, por causa de um trauma, da morte de pessoas queridas. Há, ainda, casos que, no campo da psicologia, se enquadram nos chamados loucos ou delirantes. O motivo pelo qual estão na estrada tem a ver com algum delírio, normalmente, de grandeza. Eles se atribuem uma missão grandiosa, que deve ser realizada através da caminhada.
Uma vez, me deparei na rodovia Washington Luís com um senhor puxando um carrinho de mão com muitas coisas dentro, inclusive um cachorro. Em espanhol, me contou que tinha saído a pé da Argentina. Após atravessar inúmeros municípios, chegou a Marília e instalou-se no trevo da cidade por duas semanas. Montou ali uma barraca, em uma área recuada do acostamento, improvisou uma mesa e, ao lado, uma pequena fogueira, onde preparava refeições. Falou que tinha a missão de levar a paz para o mundo. Era tranquilo e se sentia realizado. Andava, viajava e conhecia pessoas pelo caminho.
Em 2005, defendi a minha livre-docência sobre andarilhos e trecheiros, analisando-os como uma forma de nomadismo contemporâneo. No estudo, debrucei-me sobre aspectos do cotidiano dessas pessoas, como o consumo de bebidas alcoólicas e as redes de sociabilidade.
Hoje, não tenho mais receio de me aproximar deles. Nessas três décadas, nunca tive problemas ou fui ameaçado e agora são poucos os que rejeitam meu contato. Em novembro, finalizo uma pesquisa sobre os desafios e as melhorias nas condições de vida para essa população. Como um dos resultados do projeto, pretendo apresentar ao governo paulista uma proposta de política pública voltada aos andarilhos e trecheiros. A primeira ação prevista é um censo dessa população. Por meio do levantamento, será possível saber a quantidade de pessoas nessa situação, ter uma visão mais abrangente sobre seus perfis, assim como suas principais necessidades e problemas.
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