Imprimir PDF Republicar

Bruno Simões

Um jantar

FINAL_BERLIAC_Um JantarberliacApós diversas tentativas atrapalhadas e hesitantes para reservar um horário livre na agenda, finalmente conseguiram marcar um encontro num restaurante no centro da cidade de São Paulo. Frequentado por um público mais velho ou de meia-idade, o ambiente era tradicional, com antigos cartazes de Paris decorando as paredes; lustres e luminárias em estilo belle époque criavam um clima íntimo e aconchegante; taças de cristal e talheres de prata perfeitamente dispostos sobre mesas cobertas com uma toalha branca fina com motivos em renda; o cardápio francês mantinha-se irretocável, preservando, para preparar o apetite dos clientes, aperitivos clássicos. Pedro estava alinhado, usava um paletó de corte fino, sobre uma camisa polo listrada para aquela noite abafada, combinando com a calça social; a luz baixa do recinto não permitia discernir as cores de sua roupa, de modo que o conjunto harmonizava-se numa tonalidade geral escura. Chegou antes, como prezam os bem-educados; estava ansioso, aguardava a entrada de Clara.

Enquanto esperava, Pedro tomava uma taça de prosecco bem gelado, mastigando com parcimônia um bastãozinho de cenoura fatiada. Veio à mente que tinham decidido se encontrar nesse restaurante por conta dos comentários brincalhões que faziam na lanchonete do Instituto de Física quando, ainda jovens, eram graduandos de bermuda, camiseta e chinelo, obrigados a se contentar com meros salgadinhos murchos, frios e borrachudos. Clara, com manuseio esmerado de um garfo e faca de plástico descartável, fantasiava que aquela coxinha surrada parecia um confit de canard. Pedro indescritivelmente encantava-se com aqueles gestos delicados. Não sabia se de fato as pessoas de fina estirpe seguravam os talheres daquele jeito. Mas admirava-a, e isso o satisfazia. Vivia prometendo que um dia, quando tivesse grana, levaria Clara para jantar onde hoje, quase vinte anos depois, estava bem posto e a aguardando.

O celular de Pedro vibrou. Uma mensagem de Clara: “Me atrapalhei!!! Saindo daqui a pouco do trabalho. Trânsito deve tah pesado. Meia hora chego!!! rs… J”.

Viviam juntos no campus da universidade. Passavam horas na biblioteca estudando para os exames. Tinham temperamento ameno, bem diferente da excitação juvenil de seus colegas de classe, não gostavam das baladas e cervejadas promovidas pelo centro acadêmico. Preferiam uma espécie de disciplina quase monástica que foram criando pouco a pouco conforme amadureciam; sempre se ajudavam para conseguir entender e solucionar alguma questão que o professor com sotaque do leste europeu tinha deixado inconclusa. Depois de fazerem intermináveis listas de exercício, costumavam caminhar pelos bosques do campus para mudar de registro e relaxar um pouco suas mentes pensantes: ficavam a maior parte do tempo em silêncio ouvindo o vento que mexia a copa das árvores, o canto a esmo de um passarinho que vez por outra ciscava gravetos invisíveis; ou reparando na trilha que as formigas desenhavam no meio da mata até se perderem de suas vistas. Desfrutavam de uma intimidade que não precisava se justificar; eles a viviam. Ao mesmo tempo, os resultados acadêmicos positivos que foram acumulando, como o convite de professores para serem seus auxiliares, indicavam que tudo ia muito bem assim.

Já perto de se formar, Clara sentia-se inclinada a fazer um mestrado em ergonomia no curso de engenharia de produção. Clara surpreendia Pedro com suas escolhas ousadas, mais voltadas para o conhecimento aplicado, seu “lance era mais prático”, dizia ela. Ao passo que Pedro, talvez por ser um pouco mais retraído, preferia as assim chamadas “ciências puras”. Trabalhar com fórmulas que, por sua vez, se desdobravam em equações de um mundo paralelo de fusões nucleares e energia cinética atraía Pedro que, como que levado pelo movimento inercial da sua formação, mostrava-se cada vez mais ingressado na carreira de pesquisador. Aos poucos, foram se vendo cada vez menos. As cobranças de seus respectivos orientadores na pós-graduação, os prazos apertados para apresentação de relatórios de pesquisa, os resultados que não atingiam o planejamento de seus projetos foram os afastando daquela convivência contínua.

Mais uma mensagem. Era Clara novamente: “Pintou encrenca. Terminando planilha pro chefe… saindo daqui a pouquinho;)))”. E Pedro respondeu: “Ok :)))” O garçom lhe perguntou se gostaria de fazer o pedido, ao que Pedro respondeu que esperaria mais um pouco, pedindo ainda a carta de vinhos para passar o tempo.

Começou a se incomodar com aquela demora. Haviam prometido que naquela noite abandonariam tudo que não fosse os dois. Como nos tempos de faculdade, iriam se permitir fugir da correria do dia a dia, dos compromissos profissionais, reservariam o momento para si, sem nenhuma interferência, por breve que fosse.

Após terem se redescoberto virtualmente nas redes sociais, ficaram empolgados com a possibilidade de reconstituição daquela afinidade inconclusa de fim de juventude que tinha se perdido sem maior explicação, mero efeito do que ia aparecendo em tom de cobrança na vida de cada um. Passavam horas nos chats relembrando os momentos calmos e de cumplicidade que cultivaram ao longo da graduação, vendo-se agora, com certo desengano, confrontados com exigências sufocantes de suas ocupações. Como previsto, Pedro tornou-se professor do Instituto de Física e coordenava uma equipe voltada para a pesquisa de núcleos pesados. Clara já estava trabalhando na quarta empresa, no setor de compras de maquinário de produção de alimentos; por uma série de contingências, acabou se especializando em finanças corporativas na parte de fusões e aquisições empresariais.

Às vezes Clara digitalizava uma foto antiga dos dois deitados debaixo de uma árvore, cercados de livros e papéis esparramados pelo gramado. Pedro não conseguia acreditar que aqueles registros ainda existiam. Parecia que o fascínio nutrido no passado por Clara estava intacto. Contribuindo com aquele festival de reminiscências, Pedro encontrou, dentro de um caixote na sua sala de trabalho, umas folhas amontoadas de exercícios de mecânica dos fluidos com a caligrafia de ambos. Clara havia desenhado umas setas com caneta vermelha, em que riscava com um x o resultado obtido por Pedro e marcava no final da conta: “não é assim, burro, É ASSIM!!!”. Mesmo que estivessem um pouco receosos de vasculharem a vida pessoal do outro, acabaram descobrindo que nenhum dos dois tinha se casado, tiveram apenas alguns relacionamentos pouco duradouros e nada promissores. Mas não queriam entrar nesses detalhes íntimos. Mais importante era reavivar aquele passado e reunir forças para de alguma maneira refazer sua intimidade.

Outra mensagem: “Não vai dar, saindo agora do trampo, to pregada, sorry… :(((”. E Pedro respondeu: “Fazer o quê…”.

Não sabia o que fazer. Olhou para os lados sem ver nada. Nas outras vezes que tinha ido àquele restaurante, Pedro sempre pedia o mesmo prato. Fez sinal para o garçom. Ia querer o canard a quatre poivres, que, para sua surpresa, não constava mais do cardápio. Lembrou-se dos salgadinhos que ele e Clara comeram na graduação. Aquela chance de se reencontrarem parecia se dissipar com o mesmo descaso do afastamento inicial, quando, uma vez formados, passaram a se enveredar em carreiras muito distintas. O garçom sugeriu o pato com laranja, segundo ele, muito apreciado pelos clientes e que não deixava a desejar o pato com pimentas. Pedro deu um último gole no espumante já meio morno de tanto esperar por Clara. Disse ao garçom que ia pensar mais um pouquinho. E tentou mais uma vez, enviando outra mensagem a Clara: “Não quer que eu passe num boteco aqui perto e compre umas coxinhas pra gente???” .

Bruno Simões é doutor em Filosofia pela USP.

Republicar