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Obituário

Um jurista do Estado e da sociedade

Dalmo Dallari atuou em prol dos direitos humanos desde a luta contra a ditadura militar

Dalmo Dallari em sua casa, em 2016

Cecilia Bastos / USP Imagens

Em seus textos e intervenções públicas, o jurista Dalmo de Abreu Dallari, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP), morto em 8 de abril, aos 90 anos, insistia frequentemente no vínculo entre direito e justiça: sem levar em conta essa ligação, as leis se tornam uma forma vazia. Esse modo de pensar está no cerne de sua atuação como intelectual. Autor do livro Elementos de teoria geral do Estado, publicado em 1971 e atualmente em sua 33a edição, Dallari foi reconhecido internacionalmente por sua atuação em defesa dos direitos humanos.

“Seu pensamento sobre o Estado e o trabalho em direitos humanos é indissociável”, afirma Sebastião Botto de Barros Tojal, professor da FD-USP e orientando de Dallari no mestrado e no doutorado. “Dallari compreendeu a essência do papel do Estado como promotor dos direitos fundamentais da pessoa humana. Bem cedo, a vida lhe permitiu aliar uma coisa à outra, verticalizando a teoria para incorporar aquilo que, em última instância, é a grande razão de ser do Estado: a promoção do desenvolvimento humano.”

De acordo com Nina Ranieri, também professora da FD-USP e orientanda de Dallari no doutorado, “a teoria do Estado de Dallari traz aos alunos todo o repertório do pensamento político para fazer uma crítica social e política. Ou seja, para examinar a criação do Estado constitucional e em seguida o desenvolvimento do Estado democrático. Nesses movimentos, os direitos humanos são uma decorrência natural”.

Ranieri observa que o arcabouço conceitual denominado “teoria do Estado”, oriundo do período de unificação da Alemanha, no século XIX, se disseminou no Brasil a partir de 1937, quando professores de direito constitucional se recusaram a ensinar a Constituição outorgada pela ditadura do Estado Novo (1937-1945). “A disciplina chegou ao país como forma de ensinar princípios fundamentais do Estado constitucional e democrático, sem se dobrar ao poder. Nesse sentido, na origem, já era uma disciplina de crítica política”, observa. “Dallari ensinava a teoria a partir de problemas concretos da sociedade. Ele deu substância à teoria do Estado, porque vivia essa crítica na prática.”

O jurista aliou sua reflexão sobre o Estado à atuação em direitos humanos no início da década de 1970, quando o país atravessava os anos mais duros do regime militar (1964-1985). Chegou a ser proibido de lecionar e foi detido pela polícia em 1980, quando teve de explicar aos colegas de cela que não estava ali na condição de advogado deles. Participou da criação e presidiu a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, iniciativa do cardeal dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016). A comissão auxiliou presos políticos, promoveu estudos sobre as condições de vida da população e foi uma das entidades que denunciaram o assassinato do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), morto sob tortura nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo.

Nos anos 1980, embora não tenha sido parlamentar constituinte, foi um ativo promotor da participação popular na elaboração da Constituição Federal. Na USP, em que era professor titular, instalou uma “sala da Constituição” para recolher propostas de cidadãos. O advogado Ariel de Castro Alves, presidente do grupo Tortura Nunca Mais, escreveu em suas redes sociais que “as principais previsões de direitos humanos da atual Constituição Federal foram idealizadas por ele”.

Para Tojal, a marca mais profunda deixada por Dallari no texto constitucional é o capítulo VIII, intitulado “Dos índios”. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora aposentada da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, ressalta a redação do artigo 232, onde se lê que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.

A antropóloga afirma que o enunciado removeu um obstáculo que impedia os povos originários de acessar a Justiça: como o Código Civil não os reconhecia como plenamente capazes, na interpretação de muitos juízes eles só podiam propor uma ação por intermédio da Fundação Nacional do Índio (Funai). “O artigo explicitamente confere personalidade jurídica aos indígenas, como também a suas comunidades. Ou seja, um povo indígena não precisa de CNPJ para ingressar com uma ação judicial, e muito menos da Funai, que não os representa”, resume. “É notório que o artigo 232 mudou radicalmente o acesso dos indígenas à Justiça.”

A ligação de Dallari com a luta dos indígenas data do início dos anos 1980, quando foi consultado pela antropóloga Beatriz Góis Dantas, então doutoranda e hoje professora emérita da Universidade Federal de Sergipe (UFS), sobre a possibilidade de usar documentos históricos para ajudar o povo Xokó a recuperar suas terras, às margens do rio São Francisco. Segundo Dantas, o estudo “Direitos sobre terras indígenas”, que o jurista publicou no volume coletivo Terra dos índios Xocó: Estudos e documentos (1980), “deu estatura e fundamentação aos embates jurídicos que terminaram com o reconhecimento legal do território daquele povo”.

Cunha acrescenta que só recentemente, em 5 de abril deste ano, foi aprovada uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para detalhar a atuação dos tribunais em ações iniciadas por povos indígenas, “para conferir realidade ao artigo 232, entendendo e dialogando com as especificidades das organizações sociais desses povos”, nos termos da antropóloga.

Carreira e atividades
Natural de Serra Negra, interior de São Paulo, Dallari se formou em direito pela USP em 1957. Defendeu sua livre-docência em 1963, na disciplina de Teoria Geral do Estado, após ter sido assistente de Ataliba Nogueira (1901-1983), primeiro responsável por esse curso na instituição. Tornou-se professor titular em 1974, com uma tese sobre o futuro do Estado, lançada em livro em 1980. Foi diretor da Faculdade de Direito da USP entre 1986 e 1990 e teve uma breve incursão no setor público entre 1990 e 1992, como secretário de Negócios Jurídicos da prefeitura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992).

Em sua atuação internacional, destacam-se a coordenação da Cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, instalada no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, entre 2001 e 2006, e a atuação na Comissão Internacional de Juristas, organização não governamental fundada em 1952 e sediada em Genebra, que presta consultoria em direitos humanos à Organização das Nações Unidas (ONU).

Ao longo de seis décadas como docente, Dallari orientou teses e dissertações de juristas como os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski, além de professores como Tojal, Ranieri e Eunice Prudente, autora da primeira tese que propõe a criminalização da discriminação racial, em 1980. Segundo Ranieri, Dallari se caracterizava por conduzir os orientandos a chegar às próprias conclusões.

“Certa vez, eu disse a ele que tinha decidido remover um capítulo da tese”, contou. “Ele respondeu: ‘Fico muito contente que você tenha tomado essa decisão’. Dallari não tinha interferido na minha escrita, não sugeriu que o capítulo deveria ser excluído; a decisão surgiu naturalmente das nossas conversas. “Em outra ocasião, ele me passou um papelzinho, dizendo: ‘Você vai meditar sobre isto’. Estava escrito: ‘A educação é pública porque é oferecida pelo Estado ou é pública em razão de suas finalidades?’. Nunca me esqueci. Ele tinha esse jeito de sintetizar questões importantes para os alunos.”

Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf.

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