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Resenha

Um livro plural

Lendo e relendo | Walnice Nogueira Galvão | Edições Sesc São Paulo e Ouro sobre Azul | 516 páginas | R$ 90,00

Dividido em quatro partes – “Figuras”, “Duo”, “Paisagens”, “Flagrantes” – Lendo e relendo comete o feito surpreendente de conter em suas 516 páginas a referência comentada a algumas centenas de obras. Como seria impossível ao tamanho desta resenha referir seus artigos sequer de maneira aproximada, nos concentraremos sobretudo na primeira parte. Walnice Nogueira Galvão principia com “Poe”, originalmente publicado em 1999. O escritor Edgar Allan Poe (1809-1849) é visto na confluência dos vários autores integrados no romance “gótico”, numa linhagem que continua a estar presente em certo William Faulkner (1897-1962). Não contente em assinalar esse filão, Walnice ainda ressalta a presença de Poe no satanismo, principal responsável pela repercussão que alcança Charles Baudelaire (1821-1867) e Stéphane Mallarmé (1842-1898) e se prolonga a Walter Benjamin (1892-1940) e Jacques Lacan (1901-1981).

Segue-se lhe a reflexão sobre a repercussão post mortem de Fernando Pessoa (1888-1935), cuja primeira edição de seu acervo então conhecido saiu em 1960, no Brasil. Para muito leitor, será uma surpresa saber que sua divulgação aqui se iniciara, em 1943, com o destaque de Patricia Galvão (Pagu, 1910-1962) e Cecília Meireles (1901-1964), estendendo-se a Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), o crítico português que nos seria doado pela ditadura salazarista. Paralelamente à meta do artigo, importa o destaque concedido à cidade de São Paulo, que, na década de 1950, continha um exuberante centro cultural, pulverizado, em 1968, pela ditadura militar, temerosa das manifestações estudantis.

Sem nos obrigarmos a saltos, aqui ainda cabe o destaque do artigo sobre a vinda de Casais Monteiro, extremamente favorecida pela comemoração do IV Centenário de São Paulo. Seus detalhes são fascinantes e, ao menos hoje, desconhecidos no resto do país. Rapidamente acrescento: o presente resenhador deve a Casais, junto à delegação portuguesa e a Mário da Silva Brito, ter sua comunicação aceita no 1º Congresso de Crítica e História Literária, sucedido em 1960, em Recife, opondo-se ao veto que lhe havia sido imposto pela direção do congresso. Destaco as contribuições sobre “Proust e Joyce, um diálogo que não houve”, sobre Oswald de Andrade (1890-1954), realce da “língua bífida” de um talento selvagem, estragado, como ele próprio reconhecia, por sua incontinência amorosa, o prefácio à tradução do Finnegans wake, por Donaldo Schüler.

Ainda não me furto a ressaltar que Walnice não discrimina autores nacionais e estrangeiros. Assim Castro Alves (1847-1871) tem lugar ao lado do crítico Edmund Wilson (1895-1972), cujo desconhecimento recente entre nós provoca frase quase ao final: “[…] Aquilo que o fascismo e o nazismo não conseguiram, ou seja, a submissão consentida de todos, o consumismo (o conseguiu) pela paz”. Encerro as referências à primeira parte do livro pelo destaque das anotações de Gilberto Freyre (1900-1987) sobre Euclides da Cunha (1866-1909), para acentuar um ponto em que discordo relativamente tanto de Walnice quanto de Freyre. Na escrita de Euclides, Walnice destaca a afirmação do sociólogo: “A ciência serve ao drama”. Não é que assim não suceda, senão que me pergunto se não seria decisivo indagar-se sobre as diferenças entre o discurso científico e o literário, tratamento que tem repugnado aos euclidianos. Das demais seções, quase nada mais direi.

Em “Duo”, ressalte-se a homenagem a Antonio Candido (1918-2017). Tivesse mais espaço, gostaria de questionar a ênfase de Candido na ideia de “formação”. Mas entendo que não caberia na homenagem que era prestada a Walnice fazê-lo. Em “Paisagens”, o “Achegas ao imaginário do sertão”, com o realce do “mascate libanês” que, nos anos 1930, filmou o bando de Lampião. E, em “Flagrantes”, à presença relativamente rápida de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), em São Paulo, quando suas incursões às comunidades indígenas do Amazonas eram financiadas pelo departamento cultural da cidade. Em suma, conhecida sobremaneira pela realização de edição crítica de Os sertões e da correspondência de Euclides, assim como sua principal comentadora, com destaque para O calor da hora (1974), a autora torna-se uma fonte obrigatória a quem pretenda conhecer melhor como é e como se pensa no Brasil contemporâneo.

Luiz Costa Lima é professor emérito do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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