A palavra afiada reúne entrevistas, ensaios e cartas de Gilda de Mello e Souza (1919-2005). São escritos que estavam espalhados em publicações e arquivos de difícil acesso, e que agora, graças ao trabalho de Walnice Nogueira Galvão, chegam a um público mais amplo. Em cada um dos gêneros há peças memoráveis, que são leitura obrigatória para os interessados em cultura brasileira.
Um dos tópicos salientes do livro é o impacto que teve a criação da Faculdade de Filosofia, com seus professores europeus, na São Paulo da década de 1930. Outro tópico é a figura de Mário de Andrade, em cuja casa brasileiríssima a autora – sua prima – viveu a juventude e sobre o qual o seu depoimento é insubstituível. O leitor atento notará convergências entre o brasileirismo de combate praticado pelo artista e as novidades discretas mas radicais trazidas pelos professores de fora. Nos dois casos assistimos à desprovincianização de São Paulo e, por extensão, do Brasil, um movimento de fundo de que a autora se sente testemunha e protagonista.
Comentando a surpresa causada pelos professores franceses, que lhe revelaram o que deve ser uma aula moderna, Gilda observa que não tinham vergonha de consultar as suas notas enquanto falavam, que as aulas tinham um plano previamente redigido e que a bibliografia era moderna, além de lealmente franqueada aos alunos. Tudo muito diferente da exposição tradicional, de corte romântico, baseada na improvisação e no brilho fácil, com suas fontes “cautelosamente escamoteadas da classe”. Com franqueza tranquila, desprovida de agressividade, Gilda lembra que este segundo modelo dominava na Faculdade de Direito. Muito breve e instrutiva, a comparação é um bom exemplo do poder de síntese e de revelação que as suas entrevistas frequentemente têm.
Além do prestígio da língua e das ideias francesas, Gilda lembra o veneno sutil do marxismo e da psicanálise que as aulas também traziam. Como conciliar isso tudo com a rotina patriarcal na casa de Mário, “com os serões familiares, com o bordado, o tricô, as meias cerzidas, a roupa engomada?”. Sem falar no ambiente muito católico, na frequência periódica à igreja e no hábito semanal da costura dos pobres… A certa altura, refletindo sobre o abalo trazido pelas ideias de fora, ou pelo afrancesamento maciço, Gilda se pergunta pelos anticorpos que salvaram a sua geração de cair no estrangeiramento. A resposta, inesperada e esclarecedora, vem na lista de obras excelentes produzidas no Brasil na década de 1930. “O que nos salvou foi termos testemunhado essa explosão de vigor. Daí em diante foi bem mais fácil encarar a diferença brasileira, objetivamente, sem humilhação ou paranoia, através da ‘pauta’ (grille) europeia, que a Faculdade de Filosofia estava nos fornecendo. A minha geração se formou na encruzilhada dessas duas influências.” São observações propriamente dialéticas, que superam a alternativa estéril entre nacionalismo e cosmopolitismo, observações aliás que merecem ser ruminadas.
Outro ponto alto do livro está na descrição do grupo de estudantes que logo adiante criaria a revista Clima e daria ao país alguns de seus críticos de peso, como Lourival Gomes Machado, Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes e Antonio Candido, sem esquecer a própria Gilda. A camaradagem no interior do grupo era grande, animada pelo entusiasmo com as aulas, por certa afinidade nas origens sociais e pelas simpatias esquerdizantes. Na bonita formulação da autora, “a partir de certo momento creio que só conseguíamos nos divertir se estivéssemos juntos”. Para Gilda, que vinha do interior e queria escapar ao destino feminino tradicional, a oportunidade era extraordinária. “Era a primeira vez que via o grupo feminino e masculino se defrontando no espaço neutro das tarefas escolares, onde a disputa intelectual se faria com grande fair play, sujeitando todos às mesmas regras.”
Dito isso, ao mesmo tempo que reconhece a atenuação da desigualdade entre os sexos na faculdade, Gilda observa que o preconceito masculino tomava novas feições e não desaparecia. Este é o tema talvez mais ácido do livro. Avessa aos lugares-comuns sobre o progresso e o atraso, menos interessada em levantar bandeiras que em ser fiel à sua experiência, Gilda não disfarça as dificuldades envolvidas no processo da modernização, em particular para as mulheres. Assim, os passos da emancipação feminina que mal ou bem estavam em curso não vão simplesmente, ou linearmente, da sujeição à liberdade, como quer o chavão. No percurso das primeiras gerações de universitárias encontramos, para dar um exemplo, “a curiosa relação sadomasoquista de que são vítima as mulheres que decidem se cultivar”. O progresso, noutras palavras, não vinha sem custo. Vários dos melhores achados do livro, bem como a qualidade de sua prosa, têm a ver com essa atitude reticente, que busca a verdade nos meandros do processo, antes que nos seus mitológicos pontos de partida e de chegada.
A presença de Mário de Andrade no livro é central. Ele é o destinatário de uma dezena de cartas de Gilda, extremamente interessantes, e o objeto de vários ensaios e entrevistas. A sua inserção simultânea no Brasil antigo e no vanguardismo artístico internacional é vista de perto, no dia a dia. Assim, por exemplo, o andar térreo da casa em que mora Mário pertence ao interior paulista do século XIX, com sua atmosfera católica, ao passo que no primeiro andar está o studio, com os quadros modernistas, as estantes Bauhaus e a livralhada de um intelectual atualizado. Noutro ensaio, aliás muito notável, assistimos à amizade profunda e produtiva, cheia de diferenças, entre o escritor experimental e um seu parente tradicionalista em gramática. Analogamente, veja-se ainda o apego pormenorizado de Mário pela culinária brasileira, cujos requintes encerram para ele uma sabedoria de vida inestimável. São exemplos da importância que tinha a tradição para o artista revolucionário, que não pensava deixá-la para trás, mas ativá-la com os meios da vanguarda, abrindo-lhe o futuro. Os desdobramentos estéticos dessas observações biográficas, em que o desejo modernizador tem feição imprevista, não foram ainda explorados.
A certa altura, comentando a carreira de Cacilda Becker, que pertencia à sua geração, Gilda observa que ela soube passar da velha escola do estrelismo, então dominante no teatro brasileiro, para outra mais avançada, em que o principal era o espetáculo visto no conjunto. Esse seria o resultado de um trabalho em equipe, no qual a música, o cenário, os papéis menores e a direção não contavam menos que o ator principal. Algum tempo depois, sob a direção de encenadores estrangeiros que acabavam de chegar ao país e ensinavam essa concepção, Cacilda subiria ao nível dos grandes intérpretes do tempo. Há aqui um paralelo possível com a evolução do grupo de Gilda na faculdade, a quem os professores de fora também ensinaram o padrão atualizado de trabalho, favorecendo a eclosão de uma geração de críticos de primeira linha. O percurso da própria Gilda, de menina do interior a intelectual adiantada, pode ser aproximado dessas transformações. Por fim, sem desconhecer a desproporção, digamos que o salto pioneiro que Mário dera duas décadas antes, em contato com o vanguardismo europeu, havia desbravado essa mesma perspectiva e os conflitos correspondentes. São especulações, ou painéis involuntários, que o livro faculta em quantidade – uma verdadeira mina para o leitor que não seja preguiçoso.
Para concluir, transcrevo um trecho que dá ideia da qualidade literária do ensaísmo de Gilda. Trata-se da divisão de papéis entre homens e mulheres na família.
“Eu, por exemplo, como já assinalei, vinha de um meio burguês e em certos aspectos culto, mas onde a cultura fora sempre privilégio exclusivo do grupo masculino. Entre as figuras femininas da minha família – algumas excepcionais como iniciativa e inteligência – não consegui encontrar nenhuma que tivesse se distinguido por qualquer pendor intelectual. Desde o século passado, minhas tias e avós viveram dobradas sobre os trabalhos domésticos: primeiro afeitas às duras lides rurais, fiando o algodão, cosendo a roupa dos filhos e do marido, distribuindo entre os escravos as tarefas diárias; mais tarde, na cidade, ajudando o marido a ampliar a modesta receita doméstica, através das encomendas de doces, tricô e trabalhos de agulha. E mesmo quando me lembrava de minha mãe, normalista e civilizada, era para surpreendê-la ambientada às tarefas rudes da fazenda, criando galinhas, engordando porcos, formando o seu pomar afamado, saindo de baixo de chuva para atender doentes, aplicando com dedicação nos filhos dos colonos os ensinamentos médicos que havia adquirido com talento ao cuidar de seus próprios filhos. À noite, nos serões familiares, à luz fraca da fazenda, era meu pai que, descansando, relia os velhos livros de solteiro, em suas belas edições encadernadas. Minha mãe, nunca a surpreendi lendo nada além dos jornais. Comentava as notícias políticas com paixão e injustiça, investia com violência contra o governo e voltava apaziguada às costuras, que, de tempos em tempos, nos enviava para São Paulo, junto com os caixotes de frutas, os ovos, a goiabada cascão, as recomendações de preceito.
Cresci admirando essas mulheres fortes, trabalhadeiras, desprendidas, sem direito ao sonho e capazes de sustentar a luta quando a casa caía. Não lembro de nenhuma que fosse leitora inveterada de romances, poetisa ocasional ou autora anônima de contos para revistas.
Quando decidi me cultivar, arrostando as consequências de uma carreira intelectual, tive de pôr entre parênteses as existências conformadas que haviam povoado a minha primeira mocidade (…).”
Roberto Schwarz é professor de literatura (aposentado) da Unicamp. Livros recentes: Martinha versus Lucrécia (ensaios), Companhia das Letras, 2012, e A lata de lixo da história – chanchada política, Companhia das Letras, 2014.
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