Até poucas semanas antes de falecer, aos 93 anos, no dia 1º de dezembro, o físico e engenheiro eletrônico Rogério Cezar de Cerqueira Leite exercia presencialmente, em Campinas, a presidência do Conselho Administrativo do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). A instituição, que ajudou a idealizar e a tirar do papel, abriga a nova fonte de luz síncrotron do Brasil, o acelerador Sirius, o maior e mais complexo laboratório do país. Cerqueira Leite foi um dos mais influentes cientistas brasileiros, tanto por conta de suas pesquisas – publicou 80 artigos em periódicos relevantes, com mais de 3 mil citações – quanto por sua atuação na criação de institutos de ciência e tecnologia.
Autor de 15 livros, o físico sempre escreveu muito. Opinou com frequência sobre temas relevantes do cenário político e científico nacional, sobretudo por meio de artigos publicados no jornal Folha de S. Paulo, de cujo conselho editorial fez parte entre 1978 e 2021. Defendia a participação ativa dos cientistas nos debates sobre o que chamava de “grandes questões nacionais”, como defesa, violência, reformas econômicas e sociais. Fez de sua própria participação política um exemplo da atuação combativa que, em sua visão, a comunidade científica deveria assumir. Entre meados de 1981 e o início de 1982, quando era docente na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi uma das vozes mais ativas contra a intervenção decretada na universidade pelo então governador Paulo Maluf.
A formação e a atuação acadêmica no exterior entre o fim dos anos 1950 e durante os anos 1960, primeiro na França e depois nos Estados Unidos, levaram Cerqueira Leite a ter uma visão de desenvolvimento econômico acoplada à ciência, ideia que procurou adaptar à realidade brasileira. “Ele acreditava que o Brasil podia ser competitivo no cenário científico mundial e motivou a criação de instituições de ponta ao procurar as pessoas certas para os lugares certos”, diz o físico Antônio José Roque da Silva, diretor-geral do CNPEM. “Para ele, as pessoas certas eram os inconformistas, os questionadores, aqueles que não aceitam facilmente o saber estabelecido.”
Nascido em 1931 em Santo Anastácio, no interior paulista, Cerqueira Leite perdeu a mãe aos 4 anos e o pai 10 anos depois. Sempre gostou muito de matemática e queria cursar a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Por intermédio de um tio, que era capitão da Aeronáutica, acabou conhecendo o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), onde decidiu estudar, tendo se graduado em engenharia eletrônica em 1958. Dizia não ter sido o melhor aluno, nem ter feito sempre a lição de casa. Obteve um doutorado em física pela Universidade de Paris (Sorbonne) em 1962 e, no mesmo ano, foi convidado pelo físico Sérgio Porto (1926-1979), que havia sido seu professor no ITA, para fazer parte do time de pesquisadores dos laboratórios Bell, no estado de Nova Jersey, nos Estados Unidos.
Os oito anos em que foi pesquisador nos Bell Labs foram seu período mais produtivo. “Publiquei como uma besta”, ele disse, sorrindo, em recente entrevista ao Centro de Memória da FAPESP. Lá, conduziu grande parte de suas pesquisas em física do estado sólido. Naquele momento, entender materiais semicondutores era a chave para o desenvolvimento de microprocessadores. Cerqueira Leite ajudou a desenvolver aplicações da técnica de espectroscopia Raman, que usa o laser – tecnologia em que os Bell Labs eram líder – para realizar a análise da estrutura molecular de muitos desses materiais.
No final de sua experiência nos Estados Unidos, em 1968, por influência do físico brasileiro Mario Schenberg (1914-1990), Cerqueira Leite começou a pensar em voltar ao Brasil para liderar a pesquisa em física de materiais sólidos no país. O desejo se concretizou em 1970, quando aceitou o convite do então reitor da Unicamp, Zeferino Vaz (1908-1981), para encabeçar o que é hoje conhecido como Departamento de Física da Matéria Condensada do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW). Ao longo da década de 1970, junto com Porto e outro colega, o físico José Ellis Ripper Filho, Cerqueira Leite tornou o IFGW uma instituição de ponta. Para isso, contou com uma rede de conexões internacionais – recrutava pesquisadores ao redor do mundo – e aportes financeiros de entidades públicas como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social ( BNDES) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
Segundo o físico Carlos Henrique de Brito Cruz, ex-diretor científico da FAPESP e vice-presidente sênior de redes de pesquisa da Elsevier, Cerqueira Leite trouxe de suas experiências nos Bell Labs a visão de como organizar pesquisas e integrar empresas às universidades. “Ele viu que as empresas tinham papel importante nas pesquisas, mas também que as universidades continuavam sendo fundamentais para a pesquisa básica”, comenta Brito Cruz, também reitor da Unicamp entre 2002 e 2005. Compartilhava essa visão com Porto e Ripper, o que se refletiu, por exemplo, na instalação do Centro de Pesquisas em Desenvolvimento e Telecomunicações (CPqD) da empresa de telecomunicações Telebrás nos arredores da Unicamp, em 1974. De lá saiu a primeira fibra óptica brasileira, em 1976.
No mesmo período, também em Campinas, Leite criou a Companhia de Desenvolvimento Tecnológico (Codetec), incubadora de pequenas empresas e facilitadora da interação entre a universidade e a iniciativa privada – proximidade que, em sua visão, enfrentava muita resistência no meio acadêmico brasileiro. Para Brito Cruz, essa foi uma iniciativa pioneira em adaptar o modelo que deu certo no Vale do Silício, na Califórnia, em que a Universidade Stanford funcionava como polo aglutinador de empresas de tecnologia da informação. Em 1979, continuando esses esforços, Leite fundou a Companhia de Desenvolvimento do Polo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec).
Para além da mera emulação do modelo norte-americano, o que o inspirava era a visão nacionalista de que o Brasil precisava desenvolver autonomia tecnológica, científica e energética. Nos anos 1970, foi um dos mais vocais críticos do acordo Brasil-Alemanha para a construção da usina nuclear de Angra 2, em que via um processo de transferência tecnológica insuficiente e estrategicamente desinteressante para o país. Defendeu o investimento no Programa Nacional do Álcool (Proálcool) como forma de aproveitar o potencial energético do país na produção de biocombustíveis. Nos anos 1990, se opôs ao projeto do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), defendido pelas Forças Armadas, que via como exemplo de “servidão voluntária” a interesses estrangeiros.
Cerqueira Leite considerava um problema de política científica brasileira a falta de foco e de financiamento em projetos de larga escala. Era contra a pulverização de recursos, que rotulava como “pseudodemocracia”. Preferia a concentração de investimentos em grandes projetos e polos. Na década de 1980, além de ocupar a vice-presidência da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) de 1983 a 1987, o físico colocou em prática essa visão. Teve atuação decisiva para o sucesso do projeto de implantação de um grande acelerador de partículas no país, que se tornou o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS). Inaugurado em 1997 perto da Unicamp e substituído em 2020 pelo acelerador de partículas Sirius, hoje a maior instalação de pesquisa em funcionamento no Brasil, o LNLS foi o primeiro dos quatro laboratórios que atualmente integram o CNPEM.
Esse centro também abriga seu último filhote intelectual: a Ilum, instituição de ensino superior inaugurada em 2022 em Campinas, que oferece um bacharelado interdisciplinar em ciência, tecnologia e inovação. Segundo o físico Adalberto Fazzio, diretor da Ilum, Cerqueira Leite queria formar jovens pesquisadores que não fossem dependentes da figura do orientador, com conhecimentos amplos, envolvendo matemática, programação, biologia, humanidades, artes e ética. “Víamos que pesquisadores começam a carreira muito tarde, o que prejudica a criatividade”, comenta Fazzio.
Na Unicamp, além de ter comandado o IFGW, também foi um dos responsáveis pelo estabelecimento do seu departamento de música em 1970, embrião do que viria a ser o atual Instituto de Artes. Seu apreço pelo mundo artístico era notório. Na adolescência, ele se esgueirava sorrateiramente para ver peças de teatro, tinha milhares de discos de música erudita e mantinha uma vasta coleção de obras de arte chinesa, pré-colombiana e africana. “Até o fim, ele continuou estudando e aprendendo sobre suas coleções”, conta José Roque.
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