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Resenha

Um paraíso ainda perdido

Arrabalde: Em busca da Amazônia | João Moreira Salles | Companhia das Letras | 424 páginas | R$ 79,92

No início do século XX, mais especificamente em 1904, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, Euclides da Cunha, inicia uma jornada pelos “sertões” amazônicos seguindo a saga da população sertaneja que para lá havia se deslocado em busca do “ouro negro” da borracha. A sutileza e a potencialidade do projeto intelectual euclidiano estão na combinação de seu espírito republicano associado a uma enorme sensibilidade social e a um profundo interesse pela ciência de sua época. Na bagagem, ele levava um roteiro de viagem que previa ao final a escrita de seu segundo livro, Um paraíso perdido. Uma obra inacabada, como todos sabem, mas que deixou bastante vivas na cultura intelectual brasileira as marcas de um projeto ambicioso de interpretação da Amazônia.

Entre as marcas deixadas pelo projeto euclidiano está a percepção de que a superação das desigualdades e mazelas que separam os diversos brasis deveria se dar por um processo lento de expansão da influência da civilização ocidental. Um movimento de homogeneização gradual, que abarcaria as raças autenticamente adaptadas ao meio e localizadas nos lugares mais inóspitos – mesmo que considerados culturalmente atrasados e inferiores – e as quais poderiam garantir uma maior capacidade de sucesso e adaptação das regiões mais distantes do processo de absorção dos valores da civilização. Isso contribuiria para a consolidação da identidade e da unidade da nação brasileira.

Não é preciso ir muito longe para identificar a força retórica desse argumento ainda nos dias de hoje. No livro Arrabalde: Em busca da Amazônia, João Moreira Salles resgata, simbolicamente, e atualiza, com perspicácia, a saga euclidiana pela valorização da Amazônia; assim como a busca da superação de seus mitos e desafios atuais. Da mesma forma como Euclides, Salles se surpreende quando da sua chegada à região ao encontrar uma Amazônia bastante distante da sua imaginação. Diferentemente de Euclides, no entanto, ele não parece acreditar que o avanço da civilização possa se dar com o protagonismo do sertanejo e de seus descendentes, que hoje se agregam aos povos e comunidades tradicionais, estabelecendo a base atual da economia da sociobiodiversidade na região.

Como alternativa, propõe como pauta prioritária a construção de modelos de desenvolvimento orientados pela experiência e pela prática recente de empresários, políticos, pesquisadores, intelectuais e representantes destacados do terceiro setor na região. Interlocutores, que fazem as vezes de atores em cena, entram e saem da narrativa e dos capítulos do livro, contando suas estórias de vida, interpretações e projetos que orientam, tendo, como pano de fundo, as propostas consideradas com potencial efetivo de redenção da Amazônia.

Com foco no que a Amazônia representa hoje para a humanidade e seu potencial de levar o país a um protagonismo internacional nunca antes imaginado, Salles se empenha em oferecer uma perspectiva de futuro para o país em que, por outro lado, à moda de Euclides, a Amazônia é vista ainda como uma esfinge, e/ou paraíso, a ser decifrada; assim como, de forma mais contemporânea, um lugar a ser cuidado e protegido como monumento que revela a grandeza das antigas civilizações que habitaram a região há milhares de anos. Seu olhar atual sobre a chamada Amazônia profunda revela, nesse sentido, um encantamento pelos avanços científicos da arqueologia e da botânica, e demonstra como a Amazônia teria o potencial de se desenvolver, valorizando o que tem de específico e único: a sua biodiversidade.

Contrapondo-se de maneira brilhante ao projeto hegemônico que hoje valoriza a exploração imediata dos recursos naturais da região até a sua completa exaustão, o projeto de transformar a Amazônia em região protagonista no cenário internacional defendida pelo autor tem, sem dúvida, um estatuto científico e civilizatório muito mais elevado do que seus concorrentes imediatos. No entanto, um leve desencanto pode tomar conta do leitor mais atento diante da manifestação de desconfiança do autor em relação a um potencial protagonismo das populações tradicionais de pequenos produtores, agricultores, extrativistas e ribeirinhos nesse novo e ambicioso projeto. Nesse sentido, Salles talvez se mantenha preso, sem perceber, à perspectiva do viajante que carrega consigo, desde os tempos coloniais, a marca da desconfiança no desconhecido.

Danilo Araújo Fernandes é coordenador do Programa de Pós-graduação em Economia e integra o Programa de Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, ambos da Universidade Federal do Pará.

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