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Biomedicina

Um parasita desnudo

Sem armadura proteica, protozoário causador da malária fica vulnerável a substância tóxica produzida por ele mesmo na pele do hospedeiro

Rogerio Amino/Instituto Pasteur Montagem com imagens do parasita da malária em presença do anticorpo citotóxico. O anticorpo faz o parasita (verde) perder sua capa protetora de proteína (vermelho). Vulnerável às toxinas que ele mesmo produz, o protozoário morre (pontos verdes)Rogerio Amino/Instituto Pasteur

Uma equipe coordenada pelos biomédicos brasileiros Rogério Amino, do Instituto Pasteur, na França, e Silvia Boscardin, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), isolou uma proteína que pode levar à remoção da armadura que envolve os parasitas unicelulares causadores da malária, a principal doença tropical transmitida por mosquitos. Chamada de J6, a proteína é um anticorpo produzido por animais vacinados contra a principal molécula que reveste o protozoário do gênero Plasmodium, causador da doença. Sem armadura os protozoários morrem, vítimas de uma proteína que eles mesmos produzem enquanto atravessam as camadas de células da pele. A descoberta, publicada no dia 22 de outubro na revista Nature Microbiology, sugere que as vacinas antimalária podem ser melhoradas para estimular o organismo humano a produzir esses anticorpos em maior quantidade.

A vacina antimalárica mais avançada, RTS,S/AS01, foi aprovada em 2015 pela Organização Mundial da Saúde para um estudo de implementação piloto na África, e não garante proteção total. Mesmo inoculadas com a vacina, muitas pessoas acabam doentes depois de serem picadas por mosquitos do gênero Anopheles infectados com o protozoário. Para entender por que a imunização da RTS,S/AS01 nem sempre funciona e melhorar sua eficácia, os laboratórios de Amino e Boscardin se juntaram para realizar experimentos com camundongos infectados por Plasmodium yoelii, parasita que causa malária em roedores.

De acordo com Amino, o efeito da RTS,S/AS01 no corpo humano e o da vacina análoga em camundongos é principalmente estimular o organismo a produzir anticorpos contra a proteína circunsporozoíta (CSP). Essa proteína recobre a célula da forma invasora do plasmódio, gerando uma espécie de cápsula protetora. A proteína CSP foi identificada em 1980 pela bioquímica brasileira Nobuko Yoshida, quando integrava o grupo liderado pelo casal de pesquisadores brasileiros Ruth e Victor Nussenzweig na Universidade de Nova York, Estados Unidos. Como a CSP é uma proteína estranha tanto ao organismo humano quanto ao do camundongo, o sistema imune reage à sua presença e produz anticorpos para neutralizá-la. “Pesquisas anteriores sugeriam que a neutralização da CSP fazia os parasitas pararem de se mexer e diminuía a capacidade de infectar o fígado do animal hospedeiro”, conta Amino. “Agora, descobrimos que o efeito dos anticorpos é muito mais complicado.”

Entrevista: Silvia Boscardin
     

Durante cinco anos, o brasileiro Eduardo Aliprandini e a portuguesa Joana Tavares, dois pesquisadores em estágio de pós-doutoramento no laboratório de Amino, em Paris, trabalharam para identificar o que acontece quando os anticorpos se ligam à CSP dos protozoários. Primeiro, os pesquisadores inocularam camundongos com doses de proteína CSP de Plasmodium yoelii, para estimular o organismo dos animais a produzir anticorpos contra a proteína. A imunização contra CSP impediu que os camundongos ficassem doentes mesmo quando infectados com uma quantidade de parasitas bem superior à transmitida por uma picada de mosquito. A vacina só funcionou, porém, quando os parasitas eram injetados na pele dos camundongos, exatamente como ocorre na picada de um mosquito.

Quando os parasitas eram injetados com uma agulha diretamente em um vaso sanguíneo, a imunização era ineficaz: mesmo produzindo anticorpos contra a CSP, os camundongos adoeciam e morriam. Os anticorpos dos camundongos imunizados contra CSP pareciam funcionar apenas na derme.

Imagens de microscopia de camundongos vivos e anestesiados confirmaram que os parasitas morriam na derme. Vistas pelas lentes de um microscópio, as células dos parasitas vivos e saudáveis tinham uma forma de meia-lua e se locomoviam com rapidez entre as células – e também através delas – na pele translúcida da orelha dos camundongos. Quando os anticorpos se ligavam à capsula de CSP, porém, os parasitas começavam a se mover cada vez mais devagar e a se despir da cobertura proteica. “O parasita jogava para trás a cápsula de CSP ligada ao anticorpo, saindo dela como um pé se despindo de uma meia”, conta Amino. “Sem a cápsula de CSP, a superfície do parasita acabava exposta a alguma substância no tecido da pele que o fazia parar de se locomover e morrer.”

O laboratório de Boscardin na USP possui um acervo de dezenas de linhagens de células criadas em laboratório, cada uma delas capaz de produzir um único tipo de anticorpo. Uma dezena de anticorpos dessa biblioteca se mostrou capaz de se ligar à CSP. Os pesquisadores testaram injetar cada um desses anticorpos em camundongos. Apenas dois deles imunizavam os camundongos contra os plasmódios injetados por microagulhas na pele ou por picadas de mosquitos infectados. O anticorpo mais potente foi o J6. Experimentos mostraram ainda que altas concentrações de J6 podiam eliminar os protozoários mesmo fora do hospedeiro, em tubo de ensaio. “O J6 é um anticorpo capaz de matar o parasita por si só, sem o auxílio de uma célula ou substância do sistema imune”, afirma Amino.

Apenas um tipo de Plasmodium yoelii testado em laboratório era completamente imune ao efeito tóxico do anticorpo J6. Mesmo depois de serem atacados pelos anticorpos J6 e perderem suas cápsulas de CSP, os protozoários dessa variedade, geneticamente modificada para não produzir a proteína Spect2, não morriam. A Spect2 é uma proteína capaz de produzir buracos em membranas celulares. Spect2 produzidas pelo parasita permitem que perfure as células da pele do hospedeiro em seu caminho em busca de um vaso sanguíneo.

Aliprandini et al./Nature Microbiology Marcadores distintos revelam danos à membrana do parasita. A marcação em branco da CSP permite ver quando ela é retirada da superfície do parasita; a tubulina marca a parte anterior do protozoário, importante para saber por onde a CSP sai; a proteína fluorescente verde (GFP) indica se o protozoário está vivo (1, 3 e 4) ou morto (2)Aliprandini et al./Nature Microbiology

A partir desses resultados, Amino e seus colegas concluíram que a função cápsula de CSP não é, como se pensava, apenas auxiliar a locomoção do parasita. “Sem a capa de CSP, o parasita fica vulnerável à ação das moléculas perfuradoras de membrana produzidas por ele próprio”, explica. “Por isso, o anticorpo contra a CSP funciona tão bem na pele, onde o parasita produz a Spect2, mas não gera efeito na corrente sanguínea, onde o plasmódio não precisa furar as células para se locomover.”

Amino pretende agora repetir os testes com células humanas cultivadas em laboratório e com camundongos infectados com parasitas geneticamente modificados para produzir capas de CSP idênticas às do Plasmodium falciparum, um dos principais causadores da malária em seres humanos.

Caso confirmadas, essas conclusões sugerem que há um caminho para aumentar a eficiência da vacina RTS,S/AS01: alterar sua fórmula para induzir o corpo humano a produzir maiores concentrações de anticorpos citotóxicos, como o J6. Irene Soares, especialista em desenvolvimento de vacinas antimalária da USP, concorda. “A partir do conhecimento desses mecanismos”, ela afirma, “será possível desenvolver estratégias de vacinação baseadas na indução de anticorpos anti-CSP citotóxicos, capazes de impedir que o parasita migre para a corrente sanguínea em direção ao fígado e estabeleça a infecção”.

Projeto
Imagem e aperfeiçoamento da proteção imunológica contra parasitas da malária (nº 14/50631-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Silvia Beatriz Boscardin (USP); Instituição parceira Instituto Pasteur, França; Investimento R$ 386.981,93.

Artigo científico
ALIPRANDINI, E. et al. Cytotoxic anti-circumsporozoite antibodies target malaria sporozoites in the host skin. Nature Microbiology, v. 3, p. 1224-33. 22 out. 2018.

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