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Neotrópicas

Um passo além da engenharia genética

Ainda neste século, a biologia sintética poderá criar sistemas ou organismos capazes de desempenhar funções totalmente distintas das encontradas na natureza

NATIONAL INSTITUTE OF GENERAL MEDICAL SCIENCESImagine um automóvel com um teto verde capaz de fazer fotossíntese. No teto, haveria uma fina camada orgânica, muito similar a uma folha de uma planta, contendo células artificiais capazes de capturar a energia solar e transformá-la em energia química (sacarose) que em seguida é usada pelas mesmas células artificiais para produzir etanol. O álcool seria transportado por uma rede de nanotubos de celulose até o tanque do seu carro. Além disso, o etanol puro ainda seria misturado com água que o próprio “tecido artificial” produz, fazendo com que, no tanque do seu carro, gotejasse etanol hidratado na proporção certa para servir como biocombustível.

Não, você não está lendo um conto de ficção científica. Tampouco o que está descrito no parágrafo acima é impossível. A descrição é bem plausível e talvez até viável ainda neste século.

Tudo isso (e muito mais) pode acontecer como conseqüência de um novo ramo da biologia que está sendo chamado de “biologia sintética”. Ela é definida em um documento divulgado em junho pela Royal Society, do Reino Unido, como um ramo da biologia preocupado com a produção de entidades com base biológica (partes, mecanismos, sistemas e organismos) que desempenhem uma nova função diferente da encontrada na natureza.

No documento da Royal Society, os pesquisadores falaram em redesenhar o código genético. Não se trata de engenharia genética. É algo além disso. O objetivo da biologia sintética é realmente montar máquinas biológicas, usando partes que tenham funções conhecidas, para integrar esses novos elementos de vida artificial e colocá-los a serviço da civilização. Pode-se imaginar coisas incríveis, como máquinas produtoras de órgãos humanos (usando a tecnologia das células-tronco). Dessa forma, pode-se evitar a retirada de órgãos de outras pessoas, encurtar as longas filas de espera para transplantes e, principalmente, salvar vidas.

Na agricultura, pode-se pensar em “instalar” sistemas de defesa mais eficientes em plantas. Pode-se também “instalar” kits de produção de hormônios que melhorem o crescimento de uma determinada planta, aumentando a produtividade e diminuindo o impacto ambiental. Dessa forma, precisaríamos de menos área plantada e abriríamos mais espaço para recuperar a biodiversidade. Poderíamos ainda “melhorar” o funcionamento das florestas em condições adversas. Poderíamos fazê-las sobreviver a períodos glaciais, protegendo suas espécies da extinção. Ou, numa outra linha de pesquisa, poderíamos desenhar florestas capazes de se adaptar a uma estação espacial e transportá-las para outros planetas. E, quando chegássemos a esse novo mundo, ainda poderíamos transplantar nossa biodiversidade.

Sonho? Talvez. É verdade que tudo isso pode nunca se materializar se a civilização não conseguir sobreviver às mudanças climáticas globais. Mas também é possível que a biologia sintética seja uma ferramenta para corrigir os rumos que as coisas vêm tomando em nosso planeta.

A rigor, a biologia sintética já está sendo usada para “engenheirar” microorganismos capazes de fermentar açúcares mais eficientemente. Hoje podemos produzir enzimas com múltiplas funções, aptas a obter açúcares fermentáveis a partir da parede celular dos vegetais e produzir o chamado  etanol celulósico. Essa abordagem, ainda não dominada pela ciência, poderá levar à produção de combustíveis renováveis e ajudar a mitigar os efeitos do aquecimento global.

Ainda numa linha de pesquisa similar, pesquisadores alemães da Ruhr-Universität Bochum vêm investigando o uso de uma parte do sistema fotossintético para a produção de hidrogênio a partir de água. Em quase todas as reações fotossintéticas, uma proteína inicialmente quebra uma molécula de água, produzindo duas moléculas de O2 e uma de H2. Essa proteína fica enterrada nas membranas do cloroplasto, organela das células vegetais que realizam a fotossíntese. Um sistema artificial, contendo membranas lipídicas fabricadas pelo homem, poderia abrigar essas proteínas e o conjunto poderia ser mantido em um frasco com água, de onde o hidrogênio poderia ser retirado facilmente.

A biologia sintética é, portanto, mais do que o chamamos comumente de engenharia genética. Não se trata de alterar apenas um gene, mas um conjunto de genes que fazem sentido como grupo e desempenham uma determinada função.

Ao lado da biologia sintética, nos níveis mais altos de organização, está a biologia de sistemas. Aqui também se avança a passos largos. Essa área da biologia ajuda a compreender o comportamento dos sistemas como redes interativas e vem gradativamente permitindo determinar a hierarquia dos nós dessas redes. Esses nós podem ser usados para a manipulação de sistemas extremamente complexos, como células, organismos, ecossistemas e até a biosfera. Em 2002,  sugeri, por exemplo, o uso de terapia gênica na floresta para melhorar o seqüestro de carbono. Isso poderia ser feito alterando artificialmente a fotossíntese das árvores e fazendo com que elas produzam mais biomassa.  A mudança teria um efeito sistêmico na floresta, mas seria transitória, já que a terapia gênica provoca uma alteração no organismo que não passa para a próxima geração. No entanto, a maior taxa de fotossíntese levaria a um maior acúmulo de biomassa, provendo mais alimento aos animais que dependessem das plantas como fonte de alimentos.  Esse exemplo ilustra ao mesmo tempo possíveis efeitos benéficos proporcionados pela  biologia sintética (alteração da fotossíntese) e pela biologia de sistemas (alteração das redes de interação entre as plantas e os outros organismos no ecossistema).

Na realidade, a biologia sintética e a biologia de sistemas constituem dois lados da mesma moeda. Enquanto a primeira caminha do micro para o macro a segunda nos ajuda a compreender a vida no sentido inverso. Aparentemente as duas abordagens são complementares. À medida que os conhecimentos gerados por ambas permitirem a compreensão cada vez mais profunda da vida, nosso poder tecnológico aumentará de forma espetacular.

Um lado crucial dessa discussão é a questão ética. O homem dificilmente deixa de aplicar o que aprende e será muito difícil deter o avanço das ciências biológicas. Por isso, um dos pontos mais importantes dessa nova biologia será a regulação do avanço científico. A sociedade tem de regular essas áreas, mas deve fazê-lo com cuidado para que os benefícios das novas tecnologias sejam adequadamente distribuídos e beneficiem a maior parcela possível da sociedade, tanto do ponto de vista social como do econômico e do ambiental.

P.S. Esta coluna é dedicada ao professor Hernan Chaimovich, do Instituto de Química da USP, que me estimulou a escrever sobre o assunto.

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