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Neurologia

Um plano para examinar as células do cérebro de crianças e adolescentes

Grupo de São Paulo se integra a projeto mundial que reúne 1.027 institutos de pesquisa em 71 países

Neurônios (em vermelho) do córtex (em verde), a região mais superficial do cérebro (em azul, núcleos celulares)

National Center for Advancing Translational Sciences, NIH

Uma a uma, a partir de dezembro, devem ser descongeladas as 18 amostras do cérebro de sete doadores de 3 a 15 anos de idade guardadas em tubetes a 80 graus Celsius negativos em um freezer de um dos laboratórios da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp). O material genético de cada uma das células dessas amostras será sequenciado como parte de dois projetos de pesquisa, um financiado pela FAPESP e outro pela Chan Zuckerberg Initiative (CZI), instituição ligada ao fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, e a sua esposa, Priscilla Chan.

Como resultado desse trabalho, em três anos deve começar a comparação dos neurônios, oligodendrócitos, astrócitos e outras células nervosas de crianças e adolescentes com as de adultos, em estágio mais avançado de mapeamento. A esperança dos cientistas é que as diferenças que emergirem possam indicar as causas mais profundas de doenças como a epilepsia refratária a tratamentos, que exige a retirada de um fragmento lesionado do cérebro para evitar as crises convulsivas. Foi esse procedimento, feito em vários pacientes, que deu origem às amostras estudadas.

“Minha hipótese é que encontraremos muitas diferenças no funcionamento, na expressão gênica e na proporção de neurônios e outras células nervosas de crianças e adolescentes, de um lado, e as de adultos, de outro”, afirma a médica geneticista Iscia Lopes-Cendes, coordenadora do Laboratório de Genética Molecular da FCM-USP. “O sequenciamento dos genes de células misturadas entre si já indicou essas diferenças.”

A intensa atividade do cérebro infantil tem uma expressão bastante conhecida: o desbragado riso dos bebês. “O riso de um recém-nascido pode não indicar exatamente um amor desmedido, mas representar espasmos faciais, reflexos da maturação e organização das conexões neuronais, então em formação”, comenta o biólogo Daniel Martins-de-Souza, coordenador do Laboratório de Neuroproteômica da Unicamp, que não participa desse trabalho.

Cendes cita outro processo que corre nos primeiros anos de vida: a cobertura das extensões dos neurônios com a chamada camada de mielina, que torna mais rápida a condução dos estímulos nervosos. Ela começou em 2013 a guardar amostras do cérebro de adultos e crianças submetidos a cirurgia para retirar lesões e evitar as manifestações de epilepsia resistentes a outros tratamentos. Ligada ao Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia (Brainn), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, a coleção – ou biorrepositório – tem atualmente 731 amostras coletadas em 282 cirurgias realizadas no Hospital de Clínicas da Unicamp. As amostras de crianças são poucas porque cirurgias desse tipo são feitas em geral após os 18 anos.

“As técnicas usadas atualmente de análises de genoma e transcriptoma [conjunto de RNAs gerados a partir dos genes] funcionam com base em uma média de dados obtidos a partir de um grande número de células”, diz o biólogo computacional Diogo Veiga, pesquisador da equipe do Brainn que coordenará as pesquisas no Brasil. “Por meio de uma técnica chamada single-cell, poderemos sequenciar milhares de genomas e transcriptomas de células individuais em um único experimento. Dessa forma, pretendemos obter informações genéticas detalhadas de cada uma das células de algumas regiões do cérebro em idade infantil e criaremos um atlas para catalogar a diversidade celular do cérebro no início da vida, que ainda é desconhecida.” Segundo ele, os estudos sobre diversidade celular foram feitos somente em adultos e embriões.

Formado em ciências da computação e em biologia, com 15 anos de aperfeiçoamento nos Estados Unidos e no Canadá, Veiga já tem quase todos os equipamentos e reagentes à mão para separar as células por tipos em dezembro e começar o sequenciamento dos genes em janeiro de 2022. Por enquanto, sua maior preocupação é se o DNA das células congeladas estará íntegro e poderá ser sequenciado como o esperado. Senão, será preciso trabalhar com células recém-colhidas em cirurgias, mais raras em crianças.

“O atlas celular do cérebro infantil servirá como ponto de partida para entendermos as modificações que ocorrem em doenças neurológicas em crianças, como as epilepsias”, diz Veiga. “Além disso, poderemos comparar o desenvolvimento cerebral em fase embrionária, infantil e adulta, para entender como os neurônios se modificam durante esses períodos da vida.”

Por meio de um projeto apoiado pela FAPESP, ele pretende examinar as células anormais, extraídas das lesões que causam a epilepsia. As normais, retiradas das bordas das lesões, investigará por meio de financiamento de R$ 2,4 milhões da CZI, que em agosto anunciou a liberação de cerca de US$ 30 milhões para apoiar 17 propostas de pesquisa de 14 países, entre eles o Brasil, com células de diferentes tecidos – do coração, pulmão, intestino, ovário e outros órgãos – de crianças e adolescentes. Todos usarão a técnica de single-cell e têm o mesmo prazo de três anos para serem concluídos. Outra equipe, liderada por pesquisadores da Universidade da Califórnia em São Francisco, nos Estados Unidos, trabalhará com células do córtex – a camada mais externa do cérebro – de crianças, mas obtidas post-mortem.

Os projetos recém-aprovados integram o Atlas das Células Humanas, que reúne 1.027 institutos de pesquisa em 71 países e até o início do ano passado havia reunido informações sobre 3.394 tipos de células de 34 órgãos e tecidos de adultos, como detalhado em um artigo publicado em setembro de 2020 na Experimental & Molecular Medicine.

Ao concluir o sequenciamento das células do cérebro e de outros órgãos de crianças e adolescentes, diz Cendes, “teremos dados sobre os padrões de normalidade e possíveis origens moleculares de doenças para analisar por muitos anos”.

Projeto
Integração de tecnologias ômicas para caracterizar biomarcadores epigenéticos em doenças humanas: rumo a uma melhor compreensão dos mecanismos de doenças e novas terapias (no 19/07382-2); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Diogo Fernando Troggian Veiga (Unicamp); Investimento R$ 1.927.036,34.

Artigo científico
Panina, Y. et al. Human Cell Atlas and cell-type authentication for regenerative medicine. Experimental & Molecular Medicine. v. 52, p. 1443–51. 15 set. 2020.

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