Segundo registros, foi em 1685, no Recife, que um mosquito deu uma picada num incauto cidadão e, assim, teria ocorrido o primeiro caso de dengue no Brasil. Hoje, mais de 300 anos depois, em pleno século XXI, um simples mosquito ainda consegue render um país, sinal de que a modernidade brasileira não foi capaz, como esperavam os crentes do progresso de fins do século XIX e início do século XX, de “vencer” o “atraso” representado pelos “animais”. Mesmo numa metrópole avançada como São Paulo. “Naquele período, os animais da cidade passaram por um processo de ‘recolonização’, parte do processo de passagem de um padrão de raízes coloniais para outro com elementos de modernidade, em que o homem redefiniu suas atitudes e relações com os animais, colocando em oposição o ‘couro’, símbolo do animal, e o ‘aço’, o moderno”, analisa Nelson Aprobato Filho no doutorado O couro e o aço: a “aventura” dos animais pelos “jardins” da Pauliceia, defendido no Departamento de História da USP, orientado por Nicolau Sevcenko, com apoio da FAPESP.
“Meu objetivo foi entender os impactos da modernidade sobre os animais da cidade e demonstrar que a modernidade paulista aconteceu em suas dimensões (reais, imaginárias ou simbólicas) graças e a partir dos animais e das atitudes, usos e sensibilidades que o homem passou a adotar sobre eles”, continua. Segundo o pesquisador, com a revolução científico-tecnológica, os animais passaram a ter uma importância inesperada, já que, no processo de emergência das grandes metrópoles, eram para os homens a parte constitutiva de uma “cultura de referências estáveis e contínuas” que, nota o pesquisador, foram dilapidadas com o progresso. “Foi, logo, sintomática a escolha física e simbólica de animais como elementos singulares de experimentação, contraponto e confronto para a justificação ou detração (real ou imaginária) da modernidade paulistana.” Exemplos não faltam, desde o “Ou São Paulo acaba com a saúva, ou a saúva acaba com São Paulo” até a associação, feita por Monteiro Lobato, entre o quadro social nacional e o carro de boi, visto como símbolo do atraso, da lentidão, da rusticidade “antiga” e perniciosa. Não sem razão, uma estatística comparativa, feita em São Paulo, da quantidade de bovinos, equinos, asininos e muares revela que, se em 1905 eles eram 21.606, em 1920 passam para 38.885 e em 1940 chegam a apenas 5.375. No espaço de duas décadas, mais de 35 mil animais desapareceram da paisagem da cidade grande e, mais importante, sumiram da consciência dos cidadãos.
Esse processo de “desapreço” inicia-se já em meados do século XIX. “Basta ver as caricaturas de Ângelo Agostini, em Cabrião ou no Diabo Coxo para perceber como, na época, os animais, cada vez mais, aparecem associados ao atraso, à pasmaceira, à imundice. Porém, na realidade sociocultural da época, as maleabilidades do couro eram ainda mais resistentes do que as consistências do aço. Paulatinamente esse quadro foi se invertendo”, explica o autor. Então, não era difícil ver 300 carros de boi (que só irão desaparecer entre os anos 1910 e 1920) circulando entre São Paulo e Santo Amaro. A cidade também era constantemente atravessada por tropas, compostas por 40 a 80 animais. “Se ocorresse, por acaso, o encontro de quatro tropas numa rua paulistana era possível observar-se o trânsito provocado por 320 muares e centenas de insetos e parasitas que acompanhavam as tropas. Delas aos carros de boi, das carroças às montarias, das boiadas aos urubus, das aves aos peixes etc., os animais viviam, invadiam ruas, largos e praças. Era impossível não ter uma convivência intensa com eles”, conta. O contraponto dessas maneiras do viver cotidiano, em que os animais eram, de forma até certo ponto equilibrada, agentes e pacientes, manifestou-se nos projetos e mecanismos criados por elementos ligados ao poder público, às entidades científicas e tecnológicas que passaram a atuar em São Paulo a partir de fins do século XIX e início do XX.
“Pelo acompanhamento das várias leis e projetos que tinham como alvo os animais percebe-se como o poder público tratou a questão: quais os lugares, funções e papéis que lhes caberiam na nova cidade; quais os animais ‘eleitos’ para permanecer no meio urbano; quais confrontos foram estabelecidos entre eles e o progresso.” O pesquisador lembra que, ao mesmo tempo, surgia a tendência de considerar o engenheiro como o profissional mais capacitado para gerir os destinos de uma cidade. “Eles passam a olhar com certa cobiça as administrações municipais que subordinavam seus habitantes e animais aos mecanismos da engenharia moderna. Entre o couro e o aço ia brotando uma nova e excludente mentalidade tecnológica. Na trilha das mulas, que para eles eram sinônimo de ruralismo e passado colonial, os engenheiros paulistas tentavam alicerçar seus ideais de civilização numa ‘cruzada’ pela modernidade”, observa. Até “vítimas” inesperadas, como os cães, viram alvo de campanhas de repressão por meio de leis regulatórias que incluíam gastos da prefeitura com “bolas de alimento com veneno dentro”, dado aos caninos soltos na rua, bem como taxas e obrigatoriedade do uso de coleiras (“os cães devem estar açaimados e coleira numerada que indique ter pago o imposto municipal”, dizia a Lei nº 68 do Código de Posturas de 1886). Havia discussões acaloradas sobre o que era ou não um “cão de raça” e, portanto, sujeito a privilégios. “Para construir uma cidade moderna era preciso criar mecanismos para corrigir os que denotassem tendência à ‘vagabundagem’, de homens ou cães.”
Formigueiro
Não apenas os vira-latas ganharam denotação metafísica. “A guerra contra a saúva mobilizou a cidade em todos os níveis, seja na destruição física dos formigueiros, seja pela simbologia. Lobato foi um dos escritores paulistas que mais utilizaram o inseto como símbolo do arcaísmo e ruralismo, acompanhando-o, em suas reflexões, por décadas. Em suas teses cáusticas, escritas em 1908, por exemplo, as formigas representavam a antítese do progresso, a demonstração cabal do atraso em que estavam mergulhadas cidades e populações pobres.” Vinte anos mais tarde, Mário de Andrade falaria delas, num registro mais irônico, em Macunaíma. “Inda tanto nos sobra, por este grandioso país, de doenças e insetos por cuidar. Estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes. Em breve seremos uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte. Por isso e para lembrança dos paulistas, a única gente útil do país, propomos um dístico: ‘Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são’.” O historiador Nicolau Sevcenko, em seu artigo “O Brasil e as saúvas”, faz um curiosa síntese do uso metafórico do “inseto que incomodava”, pelas várias elites dirigentes, em diferentes épocas históricas, sempre que se tentava “eliminar saúvas”, fossem quem elas fossem: a elite agrária do século XX e o Jeca Tatu; Vargas e a campanha contra o malandro; os militares e a repressão.
Os animais, porém, podiam ser um hábito arraigado de difícil contenção. “Ao observar as várias leis, por exemplo, vê-se a ineficácia das medidas governamentais para tentar coibir o tráfico dos carros de boi pelo centro da capital. Percebe-se, em especial após 1900, a insistência do poder público por afastar esses elementos das ‘áreas nobres’ e a resistência dos carreiros em abandonar uma prática de deslocamento que tinha tudo a ver com formas populares de sobrevivência. Essas figuras e seus animais iam se tornando visões indesejáveis e dissonantes para a nova metrópole.” Ao mesmo tempo, o couro e o aço, em face da tecnologia incipiente, eram obrigados a conviver, como no caso dos bondes puxados a tração animal. “Utilizados até então em tropas de mulas ou carroças, houve um estranhamento tanto da população, desacostumada desse gênero de condução, como dos animais, uma vez que o peso dos bondes era bem maior do que o que estavam acostumados.” Ou, nas palavras de uma testemunha ocular: “Os grupos pulavam e desciam dos bondinhos e se postavam à frente dos pobre muares, que, sob o ardor dos chicotes, faziam o impossível para arrastar os carros que se achavam com seu peso além da conta”. Havia quem reclamasse do novo serviço por se ver, subitamente, morando ao lado das cocheiras. “Não existirá meio de acabar com tão incômoda assembleia?”, reclamava às autoridades um morador do Rosário.
ReproduçãoO progresso logo traria o sossego ao incomodado. A partir de 1901, o monopólio dos transportes urbanos passa a ser controlado pela companhia canadense Light & Power, que iniciou a retirada dos bondes tracionados por animais das ruas centrais de São Paulo. O último deles foi retirado em 1910. Do entusiasmo inicial pelo novo transporte, a cidade agora se envergonhava de ter que andar com bonde movido a muares. “Houve a Revolução de Santana, organizada por moradores do bairro que, descontentes por pertencer a um dos únicos bairros da cidade que ainda eram servidos por bondes puxados por animais, resolveram usar a força para intimidar o poder público e a Light & Power. Soltaram os burros e colocaram fogo nos bondes”, conta Aprobato. Ao mesmo tempo, os bondes elétricos mexeram não apenas com o ego dos paulistas. “Para uma população acostumada a deslocamentos que tinham como parâmetro a velocidade desenvolvida por bois, mulas e cavalos, a adaptação integral ao novo veículo foi pautada por receios e medos constantes.” O zoólogo Afonso Schmidt descreveu como os “espíritos conservadores, habituados às doçuras dos bondinhos, puxados por uma parelha de líricos muares, não viam com bons olhos a sua substituição por amplos, limpos e rápidos veículos movimentados a força elétrica. Manhosamente alegaram um sagrado horror aos desastres”. Foi necessário que as empresas contratassem os “técnicos em acidentes”, pessoas que se deixavam atropelar pelo bonde a uma velocidade de oito pontos para demonstrar a eficácia dos limpa-trilhos.
Ritmos
“Os bondes elétricos, mais profundamente que os anteriores, de tração animal, por suas singularidades tecnológicas e impacto perceptivo-sensorial, foram um dos principais veículos da transformação comportamental urbana e sociocultural ocorrida em São Paulo no início do século XX”, observa o pesquisador. Eles, continua, “despertavam os moradores da cidade para novos ritmos que, dali em diante, eram obrigados acompanhar”. Mas não era o bastante. José Agudo, em Gente rica – Scenas da vida paulistana, revela os novos desejos por meio do personagem do Dr. Zezinho, “apurado no vestir e frequentador de cassinos e pensões que não têm hora de fechar”. Para ele, era um inferno chegar em casa “depois das duas da madrugada e não dormir, porque principiou o barulho de bondes e carroças”. Afinal, os automóveis estavam chegando e em breve “qualquer pé-rapado há de ter o seu”. “Também deixam atrás de si um fétido horrível de gasolina, mas é chic andar-se de automóvel. Oh! Um 40 HP é soberbo. Depois, quem anda dentro dele não fica sujo de poeira nem sente o mau cheiro da rabeira. Os que foram à pata que se arranjem, ora essa é muito boa!”, filosofava o playboy paulistano, para quem a prefeitura deveria “calçar as ruas de borracha”.
Dr. Zezinho tinha ainda outras filosofias. “Os bondes vieram tornar mais suave o trabalho dos burros. Já se pode ser burro em São Paulo, pois até há bebedouros para eles nas praças públicas. Ali mesmo no Largo São Francisco há um. Que sábia providência. Quanto burro antes não sofria sede. Se os burros falassem, é possível que um deles que por aqui viesse de passeio, parodiando a celebrina Sarah Bernhardt, exclamasse: ‘São Paulo é o paraíso dos burros!’.” Couro e aço iniciam um estranhamento cujas consequências finais ainda estamos sentindo.
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