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Um projeto padrão

Construção do Soar cria um modelo de avaliação de empreendimentos de grande porte

EDUARDO CESARA esfera do detector de ondas gravitacionais: 1 tonelada de bronze maciçoEDUARDO CESAR

Foi durante uma partida de tênis, em uma tarde ensolarada de sábado em janeiro de 2000, que Luis Herrera Arias aceitou a coordenação da construção da cúpula do telescópio Soar – uma semi-esfera de 14 metros de altura que desliza com delicadeza sobre um anel metálico de 20 metros de diâmetro. Dois anos depois, Herrera estava no alto de uma montanha dos Andes chilenos, o Cerro Pachón, a 2.700 metros de altitude, à frente de 15 homens que montavam as peças feitas no Brasil, todos com roupas vermelhas e encapuzados, na esperança de escapar do frio de 8 graus negativos.

“Era horrível”, comenta o engenheiro de 66 anos, ainda hoje um parceiro de tênis de César Ghizoni, o diretor da empresa que o contratou, a Equatorial, de São José dos Campos. “Não conseguíamos ficar mais de meia hora seguida nas escadas, a 12 metros do chão.” E havia neve, muita neve: mesmo nascido no Chile, Herrera nunca tinha visto tanta neve. Por duas vezes, na iminência de uma tempestade, teve de abandonar o observatório com sua equipe, sob o risco de ficarem isolados no alto da montanha sabe-se lá por quanto tempo. “Lá fora”, lembra-se, “ninguém enxergava mais nada.” O vento branco se intensificava e, horas depois, deixaria o solo coberto por 1 metro e meio de neve.

Como uma casa, que depois de pronta silencia as vozes que a construíram, as obras científicas tendem a deixar para trás quem atuou nos bastidores e criou os caminhos a serem seguidos pelos que vêm depois. Foi assim com o Soar – o Southern Observatory for Astrophysical Research ou Observatório do Sul para Pesquisa Astrofísica -, inaugurado sob um céu azul e um tempo amigável no dia 17 de abril.

O processo de avaliação pelo qual passou esse projeto criou um modelo de financiamento de empreendimentos de grande porte, adotado a seguir em dois projetos semelhantes: o Observatório Pierre Auger de Raios Cósmicos, em construção na Argentina, no qual o Brasil participa ao lado de 16 países, e o Detector de Ondas Gravitacionais Mario Schenberg, inteiramente nacional, com início de operação previsto para o próximo ano.

“Com o Soar, a FAPESP ganhou um novo olhar para projetos de construção de grandes equipamentos, especialmente os internacionais”, diz José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP, uma das instituições que financiaram o observatório no Chile, com cerca de US$ 3,2 milhões, junto com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que liberou US$ 10 milhões.

Duas estratégias adotadas pela primeira vez nesse empreendimento – além, evidentemente, da relevância científica – passaram a nortear a avaliação de propostas semelhantes: o envolvimento dos pesquisadores em todas as etapas de trabalho, do projeto à operação dos aparelhos, e a construção dos próprios instrumentos, na medidado possível, pela indústria nacional.

“Projetos dessa envergadura devem servir para desenvolver a competência do país em instrumentação de precisão”, destaca Perez. “Preferimos assumir mais responsabilidades com a instrumentação do que em outras atividades em que poderíamos aprender menos.” Foi essa a razão pela qual a FAPESP liberou cerca de US$ 1 milhão para um projeto independente, ainda que complementar ao Soar: a construção de um instrumento bastante refinado – um espectrógrafo -, que decompõe a luz das estrelas e indica quando surgiram e de que são feitas.

Oportunidade
A maior lição dessa história talvez seja esta: aprenda a virar o jogo quando necessário. No início, o Soar era uma ideia acalentada apenas por instituições norte-americanas – o National Optical Astronomy Observatories (Noao) e quatro universidades. João Steiner, astrofísico da Universidade de São Paulo (USP), descobriu uma brecha para o Brasil em 1993, quando participava de uma reunião nos Estados Unidos como representante do país no Gemini, conjunto de dois telescópios com espelhos de 8 metros de diâmetro, um no Havaí e outro no Chile.

Soube então que a equipe do Noao, em paralelo ao Gemini, havia iniciado o projeto de um telescópio menor, mais barato e mais versátil, com espelho de 4 metros de diâmetro. Só que teve de congelar os planos com a desistência de dois parceiros, a Universidade de Columbia e a Universidade do Colorado. Era a oportunidade que o Brasil esperava havia muito tempo.

Naquele momento, haviam se passado dez anos desde que os astrofísicos brasileiros chamaram a atenção a respeito da importância estratégica para o país de um telescópio com espelho de 4 metros de diâmetro: seria uma forma de suprir as futuras lacunas do telescópio de 1,6 metro do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), inaugurado em 1981 no município mineiro de Brasópolis. Sem aparelhos mais potentes, a astrofísica, uma das áreas mais produtivas da ciência nacional, correria o risco de ficar para trás no cenário internacional.

Nesse tempo, o Brasil tinha se tornado um dos sete países do Gemini, mas com direito a apenas 2,5% do tempo de uso, o equivalente a 14 noites por ano. Faltava algo de porte intermediário, se possível com um tempo mais generoso, que ajudasse os cerca de 200 grupos de pesquisa do país a selecionar os objetos celestes a serem estudados mais detidamente no Gemini. Steiner foi, portanto, bem recebido ao apresentar a perspectiva de parceria com as instituições norte-americanas que se mantinham no projeto – o Noao, a Universidade da Carolina do Norte (UCN) e a Universidade Estadual de Michigan (MSU).

Mobilizada como uma possível fonte de recursos, a FAPESP, como de hábito, consultou especialistas brasileiros – os assessores externos ou ad hoc, que permanecem anônimos para que possam avaliar as propostas com isenção. Chegou por eles o alerta a respeito da pequena participação brasileira na definição do projeto do telescópio, que seguia o esboço dos norte-americanos. Mas, em vista da complexidade do projeto, que impôs a necessidade de um diálogo mais intenso com os pesquisadores, a fórmula tradicional de avaliação dos pedidos de financiamento não era a mais adequada – e a Fundação adotou então a assessoria aberta, que seria depois utilizada outras vezes, como na análise dos projetos ligados à pesquisa de genomas.

Além de especialistas brasileiros, a exemplo de Herch Moysés Nussenzveig, físico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de reconhecida competência, e de Cylon Gonçalves da Silva, que havia coordenado a construção do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), a Fundação convidou dois experientes astrofísicos europeus: o inglês Roger Davies, da Universidade de Durham e representante do Reino Unido no Gemini, e o italiano Massimo Tharenghi, gerente do projeto Very Large Telescope (VLT), um dos quatro telescópios com espelho de 8 metros do Observatório Europeu do Sul (ESO), erguidos também nos Andes chilenos com um orçamento de U$ 700 milhões – o do Soar era de US$ 28 milhões.

Em uma quarta-feira, 13 de dezembro de 1995, começou um encontro de dois dias promovido pela FAPESP que mudaria os rumos do projeto Soar. Os debates deixaram evidente a importância de um telescópio desse porte para a astrofísica brasileira continuar enxergando longe e manter o ritmo das pesquisas sobre a origem e a composição das estrelas, a evolução de galáxias e a distribuição de massa do Universo. Na sexta, Davies e Tarenghi reuniram-se a sós e elaboraram um documento de sete páginas, com uma análise das linhas gerais do projeto e algumas recomendações.

A mais estratégica delas: a comunidade científica brasileira deveria ter voz ativa e mais crítica, em vez de se limitar ao papel de financiador e usuário do equipamento, como havia acontecido no Gemini. “Os assessores sugeriam que o Brasil visse o projeto apenas como rascunho, embora tivesse sido apresentado como mais ou menos concluído, e explorasse outras alternativas que atendessem plenamente aos interesses dos grupos de pesquisa brasileiros”, recorda Luiz Nunes, atual pró-reitor de pesquisa da USP que foi um dos articuladores dessa reunião, então como assessor da Diretoria Científica da FAPESP. “Era como escolher entre comprar um carro ou construir um.”

Na avaliação dos assessores, o Brasil deveria também definir claramente os objetivos científicos a serem perseguidos com o Soar. Os grupos de pesquisa foram consultados e, um ano e meio depois, estava claro como deveria ser o telescópio de que o país realmente precisava. Como não era exatamente o que os norte-americanos imaginavam, começaram as propostas de ajustes do projeto original, que acabou mudando em alguns pontos essenciais. Os brasileiros preferiam um detalhamento de imagem – ou resolução – maior, ainda que com uma área observada menor. Os parceiros cederam: a mudança também atendia aos interesses deles.

“Por termos optado por uma área menor e maior resolução, ganhamos uma vantagem competitiva”, comenta Steiner. “Hoje só temos um rival, o Hubble.” Por fim, os brasileiros acabaram assinando os projetos óptico – obra de Gilberto Moretto, hoje consultor da Nasa – e elétrico – de Oliver Wiecha, que hoje cuida de um telescópio semelhante, em construção nos Estados Unidos. “A FAPESP só aprovou o financiamento depois que o projeto foi redesenhado de forma a responder claramente aos interesses científicos da comunidade astronômica brasileira, que tiveram de ser previamente enunciados”, comenta Perez.

Finanças
O Soar viveu uma engenharia financeira peculiar. Em uma articulação inédita, o governo federal e as fundações de apoio à pesquisa em São Paulo, Rio, Minas e Rio Grande do Sul se uniram para cobrir os US$ 14 milhões que o Brasil teria de liberar ao longo da construção do telescópio – depois, essa participação passou para US$ 12 milhões em capital e US$ 2 milhões em 20 anos, cobrindo parte dos custos da operação, com a vantagem de o país ganhar experiência no gerenciamento de projetos desse tipo.

Um convênio de cooperação assinado em novembro de 1998 estabelecia que o CNPq entraria com US$ 2 milhões, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) com US$ 1,7 milhão, a FAPESP com US$ 3,1 milhões e as Fundações de Minas (Fapemig), do Rio (Faperj) e do Rio Grande do Sul (Fapergs) com US$ 860 mil cada uma. Mas essa equação mudaria bastante: a crise financeira que o país atravessou em 1999, com a alta repentina do dólar, somada às instabilidades políticas geradas pelas eleições estaduais do ano anterior, inviabilizou a participação das fundações do Rio, Minas e Rio Grande do Sul.

Em outro lance inédito, a FAPESP havia assumido uma dívida do CNPq com os pesquisadores paulistas no valor de US$ 3,2 milhões, correspondente à participação do Estado de São Paulo no Soar. Mais tarde, o CNPq enviou diretamente ao projeto a parcela da Fundação e completou a cota brasileira, cobrindo a participação das outras fundações.

O Brasil, que entrou de mansinho, tem direito a 34% do tempo de uso, o equivalente a 127 noites por ano, de um aparelho de primeira linha. Segundo Steiner, entre os outros oito telescópios com espelhos de 4 metros em operação no mundo, não há outro tão moderno – com um espelho primário tão fino, de apenas 10 centímetros de espessura, mantido fixo por meio de 120 pontos de apoio, e um mecanismo de correção de imagem, o tip-tilt, que desfaz deformações da luz com comprimento de onda de até 50 hertz – cinco vezes acima do máximo do tip-tilt do Gemini.

Desafios
Esse projeto ampliou a competência nacional em construir instrumentos de precisão. De fato, o protótipo do espectrógrafo, já em uso junto ao telescópio de Minas, exibe uma inovação: as fibras ópticas que se ligam às 553 microlentes têm um diâmetro de 50 micrômetros (1 micrômetro corresponde a 1 milésimo do milímetro), a metade do habitual. A versão definitiva está em fase de montagem, em conjunto com a Leg Tecnologia, de São José dos Campos, e deverá seguir para o Chile no próximo ano.

Jacques Lépine, diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP e coordenador do projeto, segura com extremo cuidado uma de suas peças principais: um bloco de vidro mais largo que um tablete de chocolate, com 1.300 lentes, às quais serão coladas as fibras ópticas que vão conduzir a luz para ser analisada no espectrógrafo. Com uma perda de luz cabe na palma da mão custa cerca de US$ 50 mil. “Queremos estar no patamar mais competitivo que existe”, comenta Lépine.

Para os pesquisadores que trabalham no Soar e nos projetos semelhantes, lidar com as empresas é uma forma de refinar a arte do diálogo. Odylio Aguiar, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), percorreu quatro fundições antes de chegar à Italbronze, de Guarulhos, na Grande São Paulo, a única que se dispôs a construir a peça básica do Detector Mario Schenberg, cujo propósito é registrar as ondas gravitacionais, previstas na Teoria da Relatividade, mas ainda imperceptíveis aos outros 10 equipamentos similares já em operação no mundo.

À frente do projeto, que conta com cerca de US$ 1 milhão da FAPESP, Aguiar pensava em uma esfera maciça de bronze de 3 metros de diâmetro. Após ver os custos e as dificuldades de produção, contentou-se com uma de 65 centímetros de diâmetro, mesmo assim pesando 1,15 tonelada. “Foi um trabalho inédito”, recorda Jaime Jimenez, gerente-geral da Italbronze. A empresa, que nunca tinha feito nada maciço nessas dimensões nem com esse tipo de bronze, sem estanho, fundiu depois outras duas esferas semelhantes para a equipe da Holanda que trabalha com os brasileiros.

Carlos Escobar, físico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), está em contato com empresas mais intensamente desde 2000, quando assumiu a coordenação da equipe brasileira de um projeto que enfatiza o desenvolvimento da instrumentação: o Observatório Pierre Auger de Raios Cósmicos, do qual a FAPESP participa com R$ 1,6 milhão e o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) com R$ 600 mil.

Sua experiência indica que as empresas apuram o controle de qualidade em projetos dessa envergadura. Não é o único ganho. “Depois de conviver com os pesquisadores, a equipe de engenharia amadurece, perde o medo de errar e começa a buscar soluções mais criativas”, conta César Ghizoni, diretor da Equatorial, que atendeu também o Pierre Auger e, a propósito, foi quem ganhou aquela partida de tênis contra Luis Herrera.

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