A narrativa sobre as origens da fotografia ganha reforço com o aporte saído dos tubos de raio X do Núcleo de Pesquisa de Física Aplicada ao Estudo do Patrimônio Artístico e Histórico (NAP-Faepah), órgão do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). O artigo com o estudo foi publicado em dezembro no Anais do Museu Paulista.
Com ajuda do método conhecido como fluorescência de raios X por dispersão de energia (ED-XRF) para detectar a presença de elementos químicos, a física Márcia de Almeida Rizzutto, coordenadora do NAP-Faepah, pôde atestar que os manuscritos de Hercule Florence (1804-1879) descrevem de forma fiel os processos de produção fotográfica por ele testados em 1833. Francês radicado no Brasil, Florence deixou seis manuscritos. Um deles, L´Ami des arts livré à lui-même (O amigo das artes abandonado à própria sorte), é um relato escrito em 1837 sobre suas experiências.
É sobre três objetos deixados por Florence que recaem os estudos de Rizzutto: duas impressões obtidas em 1833 a partir da câmera escura com um papel revestido de material fotossensível entre uma prancha de madeira (ao fundo) e uma placa de vidro (à frente), além de uma cópia poligráfica (um método de impressão colorida de desenho inventado por ele), realizada anos mais tarde. Os documentos ficaram perdidos entre os herdeiros de Florence por 27 anos, de 1989 a 2016 – particularmente as duas impressões, entre as primeiras da história da fotografia.
Em uma experiência anterior, Florence já havia descoberto que o papel com a imagem gravada tendia a escurecer se contivesse cloreto ou nitrato de prata. Para evitar o escurecimento total e fixar as imagens, descobriu que podia usar amônia, procedente da urina. Dos resultados de suas pesquisas, restam as duas obras impressas: um diploma maçônico e uma série de nove rótulos de farmácia, registrados em papel fotossensível com a ajuda de derivados de prata e ouro, segundo registros do próprio Florence. Os testes físicos realizados por Rizzutto permitem constatar quais materiais fotossensíveis foram usados no processo, corroborando as anotações do artista-inventor.
A instrumentação hoje usada pela física aplicada pode ajudar a pesquisa histórica, como na aferição da procedência de uma obra. Pode também auxiliar o historiador na identificação dos materiais presentes nos objetos, bem como de particularidades invisíveis a olho nu. Em quaisquer casos, ressalva Márcia Rizzutto, é uma informação adicional que se soma a relatos como o de Florence para que, por meio da interpretação de todos os elementos disponíveis, se possa chegar a uma conclusão. “É uma análise tecnocientífica com um resultado instrumental”, diz sobre a constatação de elementos e compostos químicos.
Ou, na visão do historiador e fotógrafo Boris Kossoy, que redescobriu a história de Florence nos anos 1970, “é a comprovação física daquilo que já se sabia do ponto de vista químico”. Em 1976, Kossoy havia solicitado ao Rochester Institute of Technology, especializado no ensino de fotografia, que reproduzisse as experiências de Hercule Florence, tal o descobridor francês fizera em 1833. O resultado foi positivo para impressões em papel-jornal e banhado em barita, este segundo exigindo menos exposição à luz.
No caso da técnica XRF, um aspecto importante é o fato de não exigir a retirada de fragmentos do objeto estudado. Funciona bem para detectar elementos químicos em suportes variados, como papel, vidro, madeira, tela, tecido e cerâmica. Cogitou-se também o uso da espectroscopia Raman portátil, mas o método foi descartado pelo fato de usar um laser de baixa potência que poderia afetar o papel das obras, ainda sensível à luz.
A XRF funciona por meio de dois equipamentos. Um deles é responsável pela emissão de raio X para excitar os elementos químicos presentes no objeto a ser analisado (tubo de raios X), em posição frontal ao ponto de análise. O segundo, posicionado em um ângulo de aproximadamente 45 graus, é um detector de raios X. No caso das duas fotos de Florence, foram escolhidos pontos nos quais poderia haver maior concentração de elementos (mais cor). Como resultado do processo de fluorescência, é possível determinar os elementos químicos presentes.
Os rótulos e o diploma
Na busca por identificar os elementos químicos presentes e os processos utilizados por Florence, as imagens do diploma e dos rótulos têm importância fundamental. Por seus relatos, nessas impressões foram realizados testes comparativos entre os sais de prata e de ouro como elementos principais para a fotossensibilização. Na impressão dos rótulos, como atestam os resultados físicos obtidos por meio do XRF, Florence usou ouro (cloreto áurico, como ele mesmo descreveu) como o principal elemento químico formador da imagem.
Já o diploma, bem esmaecido, pode ter perdido muitos detalhes e, na medição de Rizzutto, não foi possível detectar ouro ou prata, o que pode estar relacionado à pequena quantidade utilizada. Já os rótulos de farmácia conservam maior nitidez, “com impressão mais escura (ou permanente) sobre papel repleto de manchas violáceas”, diz a física. “As diferenças entre os rótulos e o diploma indicam que Florence estava realizando muitas experimentações.”
Em um de seus manuscritos, Florence demonstra empolgação com o cloreto de ouro. “Suas propriedades são tais que fui obrigado a preferi-lo ao nitrato e ao cloreto de prata, que custam de quatro a seis vezes menos”, relatou no manuscrito L´Ami des arts livré à lui-même.
Descobertas concomitantes
Esses processos e as imagens decorrentes têm importância especial, pois foram realizados na mesma época em que outros descobridores faziam seus experimentos para impressão por meio da exposição à luz, na década de 1830. Entre eles aqueles que ficaram mundialmente famosos como os pais da fotografia, os franceses Joseph Niépce e Louis Jacques Daguerre, o britânico William Fox Talbot, entre outros. Ainda por algum tempo, todos eles se defrontariam com um problema: a reprodutibilidade da imagem ou a passagem do negativo, onde as cores aparecem invertidas, para o positivo.
Descobertas como a invenção da fotografia, como ressalta Boris Kossoy, não surgem do nada. São “o resultado de um processo cumulativo de outras descobertas que vão sendo elaboradas ao longo do tempo, por vezes ao longo dos séculos: a descoberta da fotografia bem exemplifica isso”, escreve ele em Hercule Florence – A descoberta isolada da fotografia no Brasil. Editado pela primeira vez em 1976 pela Edusp, o livro está prestes a ganhar uma quarta edição no Brasil, depois de ter sido traduzida no exterior (México, Alemanha, Espanha, França, Inglaterra e Estados Unidos).
Tanto quanto o reconhecimento da importância da pesquisa de Kossoy, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, essa circulação em outras línguas significa a anuência aos achados de Florence. Mesmo morando em Campinas (na época, ainda a Vila de São Carlos, de cerca de 5 mil habitantes, metade deles escravos), com apoio quase solitário do amigo Joaquim Corrêa de Mello, químico e botânico, e isolado dos grandes centros da ciência, Florence chegou a resultados similares aos de outros descobridores.
Novos elementos da história
Depois das medições com o XRF, o NAP-Faepah adquiriu um aparelho de Espectrometria de Infravermelho por Transformada de Fourier (FTIR), aparelho que identifica a composição molecular, e não os elementos químicos isolados.
De acordo com a historiadora Solange Ferraz de Lima, diretora do Museu Paulista da USP, as técnicas de identificação propostas pela física aplicada somaram-se às atividades da curadoria na documentação e análise de parte das coleções do museu. A parceria da instituição com o NAP-Faepah teve início em 2012 e já envolveu o acervo de numismática, fotografias e fotopinturas, documentos do pintor Aimé-Adrian Taunay e terá continuidade com a pesquisa de mestrado da museóloga Juliana Bittencourt, sob orientação compartilhada entre Rizzutto e Lima. Ela fará, com a mesma técnica XRF utilizada pela física da USP, a identificação de alterações de cor, conhecidas como viragens, aplicadas às fotografias do século XIX. Cruzado com o que se conhece da história do século XIX, o estudo pode revelar questões sobre a popularização da fotografia como um registro da imagem de pessoas e famílias.
Uma das coleções que será analisada é a dos cartões de visita, um retrato em formato pequeno (9,5 x 6 centímetros), sobre um cartão rígido como fundo. Inventado em 1854 pelo francês André Disderi, os cartões fizeram muito sucesso, principalmente entre os anos 1860 e 1870. Outros tipos de registro do gênero, como o cartão cabinet, apenas em formato maior, e o álbum de fotografias, o sucederam, popularizando não só a fotografia como também a ideia de retratar a si próprio – a popular selfie dos dias atuais.
Os registros dos rótulos de remédios e o diploma de maçonaria foram antecedidos por outros experimentos e pela participação do francês Hercule Florence, nascido em Nice em 29 de fevereiro de 1804, na aventura que realizou um ano após aportar no Brasil, com 20 anos. Era o tempo das expedições dos naturalistas e Florence conseguiu lugar como segundo desenhista na viagem programada pelo cônsul da Rússia ao Brasil, Georg von Langsdorff. Nessa experiência, um tanto traumática em razão de acidentes que vitimaram muitos dos participantes, destacou-se o que o historiador da fotografia Boris Kossoy chama de o “olhar científico” do jovem francês. Seus desenhos da vegetação são meticulosos e os índios são retratados com “rigor documental”.
Após a expedição, o francês se casou e resolveu permanecer no Brasil, indo residir na Vila de São Carlos (atual Campinas), onde vivia a família de sua mulher. Lá, inventou um novo sistema de impressão (a poligrafia), um sistema de registro dos sons emitidos por animais (a zoofonia) e o papel inimitável para a confecção de cédulas únicas.
Artigo científico
RIZZUTO, M. et al. Revelando Hercule Florence, o amigo das artes: Análises por fluorescência de raio X. Anais do Museu Paulista. v. 27. on-line. 5 dez. 2019.
Livro
KOSSOY, B. Hercule Florence – A descoberta isolada da fotografia no Brasil. São Paulo: Edusp, 2006.