Documentos e imagens que narram os 72 anos de história da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) começam a ser oferecidos na internet. Cerca de 11,5 mil itens, entre cartazes, fichas de associados, atas de assembleias, anais de reuniões, estudos temáticos, manifestos e livros, foram digitalizados por meio de uma parceria entre a entidade e o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Em breve, eles estarão disponíveis no repositório da SBPC. O acervo pertence ao Centro de Memória Amélia Império Hamburger (CMAIH), instituído há três anos para preservar documentos acumulados desde 1948, o ano em que lideranças de várias sociedades científicas lançaram uma instituição apartidária de caráter nacional para defender a valorização da ciência e participar de discussões sobre os problemas e o desenvolvimento do país.
A digitalização vai facilitar o trabalho dos interessados em estudar episódios da história da ciência e da tecnologia no Brasil dos quais a SBPC participou. Segundo a historiadora Áurea Gil, coordenadora do CMAIH, cerca de 130 pesquisadores já consultaram o acervo. Alguns visitaram a sede da SBPC, em São Paulo, enquanto outros requisitaram cópias digitalizadas disponíveis. “Já recebemos pessoas de estados como Santa Catarina, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro”, diz a coordenadora.
Uma delas foi o historiador e cientista social Guilherme Augusto Hilário Lopes, que em 2018 se deslocou de Blumenau, Santa Catarina, para São Paulo, a fim de analisar anais científicos e programas de todas as reuniões anuais da SBPC – hoje, a viagem seria desnecessária porque esse material está quase todo digitalizado. O objetivo de Lopes era estudar a evolução da participação da comunidade científica nas reuniões da sociedade. Segundo ele, os anais e os programas desses encontros revelam diferentes fases. Nos primeiros tempos, o engajamento era maior entre biólogos e químicos das regiões Sudeste e Sul, com destaque para a USP. “Depois, o destaque foi a mobilização dos cientistas na resistência à ditadura e, em seguida, a consolidação da entidade no período de redemocratização. Desde os anos 1990, as reuniões espelham a massificação da ciência no Brasil, com a abertura de novas universidades e participação maior de estudantes e jovens pesquisadores”, diz Lopes. “Como não havia espaço para todos falarem, a programação se diversificou, com o crescimento, por exemplo, das sessões de pôsteres de trabalhos científicos.”
O material coletado por Lopes era extenso para ser analisado no tempo curto de seu mestrado, concluído em 2019 no Núcleo de Estudos da Tecnociência, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional da Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb). Por isso, ele optou por abordar a programação de uma única reunião, a 69ª, realizada em 2017 em Belo Horizonte. Agora, quer retomar a ambição inicial em uma pesquisa de doutorado.
O interesse de pesquisadores pelo acervo ajudou a resgatar episódios quase esquecidos. A arquiteta Paola Ferrari consultou o centro de memória em busca de documentos sobre o apoio da SBPC à criação da Universidade de Brasília (UnB) para seu doutorado sobre o Instituto Central de Ciências, construção concebida por Oscar Niemeyer, onde funcionam vários institutos e faculdades da instituição. “Não encontramos registros sobre esse tema no nosso acervo”, diz o historiador Bruno de Andréa Roma, documentalista do CMAIH. Ferrari foi encontrar nos arquivos da Fundação Darcy Ribeiro, no Rio, uma publicação sobre um simpósio realizado em 1960 no qual a SBPC discutiu caminhos para o modelo acadêmico inovador que seria implantado na UnB, fundada em 1962. “A pesquisadora nos enviou uma cópia digitalizada dessa publicação”, diz Roma.
A ideia de preservar a memória da SBPC era antiga, mas a escassez de recursos para organizar o acervo adiou o projeto por décadas. Em 2015, quando a bioquímica Helena Nader era presidente da entidade, o CMAIH começou a sair do papel devido a recursos de emendas ao orçamento federal apresentadas pelo então deputado Ricardo Trípoli. Para organizar o acervo, foram contratados os historiadores Áurea Gil e Bruno Roma, que lideram uma equipe de técnicos e estagiários. Eles encontraram 400 caixas de documentos textuais, 4 mil fotografias, 500 fitas audiovisuais, 400 cartazes, 2.500 periódicos e publicações e 170 objetos. Em 2017, foi criado oficialmente o centro de memória, em homenagem à física e professora da USP Amélia Hamburger (1932-2011). Mais recentemente, o centro voltou a receber recursos de emendas, apresentadas pelos parlamentares Alessandro Molon, Celso Pansera, Orlando Silva, Sibá Machado e Cristovam Buarque. “As emendas do deputado Trípoli tornaram viável a primeira etapa do projeto enquanto as posteriores permitiram dar continuidade ao trabalho”, diz Bruno Roma.
A digitalização foi feita em etapas. Envolveu, em uma fase anterior ao acordo com o IEB, o registro de fotografias, parte dos cartazes e dos programas de reuniões. Com a parceria, veio a digitalização de mais cartazes, livros de sócios, correspondências e documentos em grande formato, além dos livros de atas das assembleias realizadas entre 1948 e 1974, que ainda eram escritos à mão. A equipe encontrou lacunas – há atas posteriores a 1974 faltando e se espera que sejam encontradas em computadores da SBPC. Não há muito material sobre os primeiros anos da instituição, mas isso foi compensado pelo acesso aos arquivos de um dos fundadores da entidade, o médico Maurício da Rocha e Silva (1910-1983), doados à SBPC em 2011, em que há registros sobre aquela época. Cadernos de campo do físico Ennio Candotti, que presidiu a SBPC nos períodos 1989-1993 e 2003-2007, também foram incorporados ao acervo. “Como Candotti anotava suas atividades nesses cadernos, recorremos a eles quando queremos saber alguma informação sobre os períodos em que ele foi presidente”, diz Bruno Roma.
A equipe do CMAIH pretende, no futuro, digitalizar toda a coleção do Jornal da Ciência, que narra a atividade da SBPC desde 1985, e os clippings das reportagens sobre ciência e as atividades da entidade publicados nas últimas décadas. O acervo da revista Ciência e Cultura, editado pela SBPC a partir de 1949 e pelo Laboratório de Estudos de Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 2002, já estava digitalizado desde 2018, graças a um convênio com a hemeroteca da Biblioteca Nacional. A digitalização é vista como um complemento da catalogação da memória da SBPC, e não como um substituto desse processo. Cada documento digitalizado é arquivado em três lugares – em hard disk, em servidor e em nuvem– para garantir que não se perca. “Uma sala lotada de papel é menos perigosa do que um volume gigantesco de dados digitalizados, que podem se perder se um servidor queimar após uma descarga de energia”, diz Áurea Gil.
A organização do Centro de Memória está permitindo à SBPC conhecer melhor sua trajetória. Os responsáveis pelo acervo descobriram que a data em que se comemora a fundação da entidade, 8 de julho de 1948, não espelha exatamente o início de suas atividades. Foram encontrados registros de uma reunião ocorrida um mês antes, em 8 de junho, em que os fundadores lançam as bases da instituição. “Existe uma carta enviada pelo então proprietário do jornal Folha de S.Paulo, Nabantino Ramos, a três fundadores da SBPC, Paulo Sawaya [1903-1995] e os médicos José Reis [1907-2002] e Maurício Rocha e Silva, parabenizando pela criação da entidade e se referindo à reunião de 8 de junho”, diz Bruno Roma.
A engenheira de pesca Maria do Carmo Figueredo Soares, secretária regional da SBPC em Pernambuco, recorreu ao CMAIH para recuperar a trajetória da instituição no estado. Ela diz que sempre ficou intrigada ao ver a galeria de fotos dos secretários regionais na entrada da sede da entidade em Recife. O primeiro dirigente da galeria é o parasitologista Frederico Simões Barbosa, da Fiocruz, secretário entre os anos 1961 e 1963, mas em 1955 houve uma reunião anual da SBPC em Recife, o que sugere que a instituição já funcionava no estado na década de 1950. Uma pesquisa feita pelos historiadores do Centro de Memória encontrou uma ata assinada por Paulo Sawaya, no início dos anos 1950, em que ele relata ter viajado ao “Norte”, onde foram criadas unidades da SBPC em Salvador e Recife. Ao pesquisar em números antigos da Ciência e Cultura, Soares encontrou referências a dois secretários regionais de Pernambuco esquecidos na galeria de fotos.
O primeiro, em 1951, foi Newton da Silva Maia, professor da Escola de Engenharia da Universidade de Recife. O outro, em 1955, foi Nelson Ferreira de Castro Chaves, da Faculdade de Medicina da mesma universidade. “Ainda não consegui descobrir por quantos anos eles permaneceram na função e se houve outros dirigentes no período, mas continuo procurando”, diz Soares, professora aposentada da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Sua intenção era divulgar esse achado em um artigo a ser apresentado na próxima reunião anual da SBPC, mas o encontro, que aconteceria em julho em Natal, Rio Grande do Norte, foi adiado em decorrência da pandemia do novo coronavírus e não tem data para acontecer.
Republicar