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Cepids

Um sopro de renovação

Com ciência de alto nível, transferência de tecnologia e difusão de conhecimento, Cepids propõem revisão de velhos modos de produção acadêmica

BrazNos últimos dias de abril, parecia inevitável a referência imediata ao Centro de Terapia Celular (CTC), à interrogação sobre o acerto estratégico do programa dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão, os Cepids, criado sete anos antes pela FAPESP. Esse centro comandado desde 2000 por Marco Antonio Zago, instalado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, acabara de obter, como observou o diretor científico da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz, “resultados de enorme impacto no tratamento de diabetes juvenil, publicados em abril de 2007 no Jama”, o Journal of the American Medical Association. Conduzido com sucesso por uma equipe de pesquisadores coordenada por Júlio Voltarelli, o experimento envolvendo células-tronco, que valeu grande repercussão e polêmica internacionais entre os especialistas da área, está relatado em detalhes na reportagem de capa da Pesquisa FAPESP de maio, edição 135.

Talvez se a pergunta a respeito do trajeto até aqui cumprido pelos Cepids tivesse sido feita entre novembro e dezembro de 2006, a citação obrigatória para apresentar um indicador de sucesso do programa naquele momento fosse do Núcleo de Estudos da Violência (NEV). A ONU acabara de apresentar ao mundo um relatório sem precedentes, por sua abordagem metodológica e por sua abrangência, sobre a violência contra a infância em todo o planeta, elaborado sob a coordenação do sociólogo brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro. Na introdução do pesado volume, o pesquisador da USP, nomeado pelo ex-secretário-geral Kofi Annan, expert independente das Nações Unidas, rendia tributo à larga experiência científica do NEV em estudos sobre a violência, que lhe permitira desenvolver uma metodologia consistente o suficiente para, ao ser usada em larga escala em um gigantesco estudo internacional, revelar, como nunca antes se conseguira, as múltiplas, perversas e às vezes silenciosas faces da violência exercida contra crianças e adolescentes praticamente em todos os países do mundo. Registre-se que o NEV, de que Pinheiro foi fundador em 1987, juntamente com o sociólogo Sérgio Adorno, já existia há 13 anos quando se tornou um dos Cepids.

Em diferentes momentos, outros Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão se revezaram no proscênio para demonstrar o significado desse programa no processo de expansão e busca pela relevância internacional da pesquisa brasileira, em termos substantivos. Como observa Brito Cruz, ao criar o programa dos Cepids, “o objetivo da FAPESP era selecionar propostas ousadas, com equipes muito bem qualificadas, apostando que o financiamento estável por prazo mais longo que o normal levaria a realizações científicas de impacto”. E isso, ele conclui, “tem acontecido praticamente em todos os centros”.

O prazo mais longo a que Brito se refere totaliza 11 anos, uma vez que as normas do programa prevêem um primeiro financiamento por cinco anos, ao fim dos quais os centros são avaliados, e com base em seus resultados podem receber novo financiamento da FAPESP pelo prazo de três anos. Uma nova avaliação deve ocorrer ao fim desse período, e ela abre a chance para um último financiamento por mais três anos. A partir daí os centros devem ter se tornado capazes de caminhar em grande parte com recursos próprios, sem perder o direito, é claro, de solicitar financiamento das agências de fomento em condições normais. “O investimento tem sido em média de R$ 17 milhões por ano nos 11 centros, significando aproximadamente 3% do dispêndio anual da FAPESP”, diz o diretor científico. O valor é significativo, ele observa, “e soma-se ao estímulo dado devido à sistemática para organização do centro e à estabilidade. A partir de 2006 a Fundação também passou a garantir uma quota de bolsas de pós-doutorado e de Treinamento Técnico para cada centro do programa”.

Selecionar as propostas ousadas que a Fundação queria para o novo programa certamente não foi fácil – não por carência, mas exatamente por sua surpreendente abundância, em resposta ao edital lançado em 1998. Nada menos do que 227 propostas foram encaminhadas até 30 de outubro daquele ano, o que fez do programa dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão o mais competitivo já implantado na FAPESP em seus 45 anos de existência (a serem completados, aliás, em 23 de maio próximo). Como a idéia era financiar cinco ou, no máximo, seis centros, cada um dos respeitados grupos de pesquisa que haviam encaminhado sua proposta à FAPESP disputava, naquele momento, uma vaga com 45 outros grupos, no primeiro caso, ou 38, no segundo. Em outros termos, mais ou menos 2,5% das propostas deveriam terminar sendo selecionadas.

Depois de um longo processo de pré-seleção, que terminou com 30 propostas ainda na concorrência pelos recursos do novo programa, uma avaliação final, com a participação de assessores internacionais, definiu dez projetos que deveriam constituir os primeiros Cepids. Fora praticamente impossível, “pela alta qualidade das propostas”, lembra o então diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez, chegar a menos que isso, ou seja, a 4% da oferta – o que é seleção duríssima em qualquer lugar do mundo. Os avaliadores ainda propuseram que fossem reunidos dois centros de estudos de óptica e fotônica, um da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e outro da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, nessa composição final dos selecionados. Recentemente, esses dois centros, os CePofs, se separaram, razão por que hoje são 11 os Cepids apoiados pela FAPESP.

Ao olhar hoje os centros em processo de consolidação, o presidente da Fundação, Carlos Vogt, observa que “conceitualmente eles compõem uma experiência extremamente positiva, fecunda, e que criou na cultura institucional no Brasil uma singularidade excelente: a da institucionalidade virtual, capaz de congregar pesquisadores em torno de grandes temas, portanto, de grandes projetos comprometidos com todos os aspectos constitutivos da dinâmica do conhecimento”. Ele se refere à produção via pesquisa, ao acesso ao conhecimento necessário para fecundar a produção, à sua transformação em riqueza por meio da tecnologia e da inovação, e à socialização do conhecimento, por meio do ensino, da extensão ou da prestação de serviços sociais.

O modelo que orientou a formatação desses centros foi primeiramente pensado por Perez – hoje na atividade empresarial privada como diretor-presidente da Recepta Biopharma -, com base numa experiência norte-americana plenamente florescente em 1996. Isso era relatado em detalhes no Notícias FAPESP de março daquele ano (o embrião da Pesquisa FAPESP). O texto informava que estava se consolidando nos Estados Unidos “um novo paradigma para a organização da pesquisa multidisciplinar dentro do ambiente acadêmico” que, até aquele momento, se materializava em 20 Centros de Ciência e Tecnologia (STC) da National Science Foundation (NSF), distribuídos geograficamente e entre as várias áreas de pesquisa, ‘inovadores tanto em sua estrutura organizacional quanto pela missão que lhes é proposta'”. O boletim da Fundação também contava que Perez visitara quatro dos centros, que recebiam recursos, em média, de US$ 2 milhões a US$ 3 milhões anualmente, por um período máximo de 11 anos: o Molecular Biotechnology, na Universidade de Washington, em Seattle; o Light Microscope Imaging and Biotechnology, no Carnegie Mellon Institute, em Pittsburgh; o Ultrafast Optical Science, na Universidade de Michigan, em Ann Arbor, e o Quantized Electronic Structures, na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. Todos os centros caracterizavam-se por três objetivos: realização de pesquisa básica multidisplinar a ser desenvolvida de forma colaborativa; transferência de conhecimento tecnológico e colaboração com a indústria e o governo; e, por fim, atividades de extensão na área educacional. Um STC só era criado se a equipe responsável demonstrasse indiscutível capacidade de concretizar ao mesmo tempo os três objetivos. E ainda assim, depois de iniciadas as atividades do centro, as exigências da NSF eram mantidas com tal rigor que entre 1989, ano de início do programa, e 1996 a agência havia suspendido o financiamento para cinco dos 25 centros implantados.

Além dos recursos da NSF, os centros americanos contavam com uma expressiva contrapartida das universidades em que estavam hospedados, na forma de salários dos pesquisadores e verbas de infra-estrutura. Os pesquisadores dos centros também deviam buscar recursos adicionais para seus projetos em outras agências e fontes privadas.

Todos esses detalhes indicam uma profunda semelhança entre os centros norte-americanos e os brasileiros Cepids, mas, como diz o coordenador do programa na FAPESP desde 2005, Hernan Chaimovich, “qualquer idéia estrutural que se traga do exterior e se implante no Brasil será inevitavelmente aculturada, será transformada pela cultura local”. Aliás, aceita essa premissa, ele comenta, “a experiência dos Cepids já deu certo, ainda que possamos discutir se não podíamos já ter avançado muito mais”. Chaimovich, professor titular de bioquímica da USP e, desde o mês passado, vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências, entre outros cargos, observa que por trás da criação dos Cepids estava “a idéia da consolidação de centros de ciência de classe mundial, com uma atividade muito importante de transferência de tecnologia para a empresa nacional, e mais a total modificação da forma pela qual se difunde ciência para o povo paulista”. Não são desafios menores, em sua visão. E olhadas as dificuldades por que o país passou nos últimos sete anos, consideradas as crises cambiais e as mudanças de governo, o que se tem agora “são indicações de sucesso dos Cepids que se encontram até no jornal”. Como Brito Cruz, ele faz referência à cobertura dada pela mídia nacional e internacional ao sucesso da pesquisa com células-tronco para o tratamento de diabetes. “Essa indicação de sucesso no jornal coloca a FAPESP como uma criadora ímpar de estruturas, e os Cepids como as formas em que essas estruturas vêm à tona, não só no ambiente da ciência internacional, não só no âmbito da transferência de tecnologia, mas para a sociedade, que é quem paga por tudo isso.” Chaimovich refere-se também ao reconhecimento público da importância do Núcleo de Estudos da Violência na formulação da estratégia teórica que permitiu a elaboração do relatório da ONU sobre violência contra a criança para concluir que, “medido o impacto dos Cepids dessa forma, ele não está longe das pretensões iniciais”.

Há, evidentemente, um grande campo para ampliar e melhorar o desempenho dos Cepids, segundo ele, ainda que “uma mudança estrutural da magnitude que esses centros representam não possa ser avaliada de forma definitiva num curto espaço de tempo, e sem ferramentas adequadas”. A propósito, depois de uma avaliação em profundidade iniciada no segundo semestre de 2004 e que se prolongou até março de 2005, nova avaliação internacional foi acertada para maio de 2007.

Aliás, segundo Brito Cruz, “essa avaliação anterior foi rigorosa. E o objetivo de tal rigor foi o de induzir os 11 centros a acelerarem seu desenvolvimento. Todos têm respondido muito bem às recomendações”. Em sua visão, uma alteração importante e muito útil ao programa “foi o estabelecimento de um Comitê Consultivo Internacional em cada um deles, com especialistas escolhidos e convidados pelos pesquisadores que lideram o projeto. Compostos por cientistas de grande renome na área, esses comitês têm auxiliado os centros na identificação de novos desafios científicos e em sua organização e contato internacional”.

Vogt observa que a avaliação internacional auxilia de fato os centros a participarem do cenário mais amplo em que se dá a produção do conhecimento de cada campo a que cada um deles está ligado. “A propósito, vale observar que os 11 centros estão dedicados a questões que são ícones dentro do conhecimento contemporâneo, tanto os de natureza social – violência, metrópole – quanto os da área da saúde e os ligados a tecnologia da informação, fotônica etc.” São campos, ele acrescenta, onde há o desafio do domínio do conhecimento e, mais ainda, da produção do conhecimento na fronteira. Tudo isso dentro de uma visão muito cara à FAPESP, “sintetizada na frase de Louis Pasteur, ‘não existe ciência aplicada, existem aplicações da ciência'”.

A essa altura, Chaimovich levanta alguns aspectos que precisam melhorar para que os Cepids se afirmem plenamente como centros de pesquisa de classe mundial. Primeiro, é preciso agilizar o contato científico internacional, permanente e direto, superando limitações que decorrem da própria distância física do país em relação aos mais avançados centros de produção científica. Em segundo lugar, assim como fazem os países mais desenvolvidos, é preciso trazer pós-docs do exterior, “porque eles sempre trazem um novo olhar, uma nova tecnologia, capazes de transformar um grupo de pesquisa”. O que faz com que a ciência seja global, ele diz, “é esse processo de polinização cruzada com o mundo”. Para essa maior diversidade de origem dos pós-doutorandos, Chaimovich pensa que é fundamental que a projeção internacional da FAPESP tenha real correspondência com a alta qualificação da agência.

Um outro problema a ser enfrentado é a relação dos Cepids com as universidades que os abrigam. “A universidade brasileira é profundamente conservadora, daí a dificuldade que tem de acolher em sua estrutura um grupo de pesquisa multidisciplinar e com bastante poder, como é cada um desses centros – aliás, exatamente estruturas para contribuir com a mudança das universidades.”

Esse aspecto é levantado também por Vogt, quando ele diz que “a inserção dos Cepids nas instituições que estão abrigadas e suas relações com essas instituições precisam ser reformadas”. Perez bate na mesma tecla quando conta que um dos pontos fracos do programa apontados na avaliação internacional de 2004/2005 foi a não garantia de aportes necessários das instituições onde estão os Cepids. Valeria a pena uma reflexão nas universidades paulistas a esse respeito.

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