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SAÚDE PÚBLICA

Um tratamento mais breve contra a malária

Terapia com novo medicamento foi tão efetiva em evitar recorrências quanto a atualmente em uso, mais prolongada

Agente da saúde atende paciente no município de Porto Velho (RO)

Hungry Man (Ian Cheibub e Gualter Pupo) / Medicines for Malaria Ventures

Uma terapia mais curta, com apenas três dias de duração, mostrou-se tão efetiva em controlar a malária causada pelo protozoário Plasmodium vivax e evitar o reaparecimento de parasitas no sangue quanto o tratamento tradicionalmente adotado no Sistema Único de Saúde (SUS), que exige o uso de medicamentos por, no mínimo, sete dias. A estratégia mais breve apresentou ainda uma vantagem em relação à outra: aumentou o tempo livre de sintomas, fossem decorrentes da reativação de parasitas dormentes no organismo ou da introdução de outros em uma nova infecção, revelam os resultados de um estudo publicado em março na revista médica The Lancet Infectious Diseases.

Pesquisadores da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), no Amazonas, centro de referência internacional no tratamento de doenças transmitidas por mosquitos, chegaram a essas conclusões ao acompanhar por um ano a saúde de 5.554 moradores de Manaus (AM) e de Porto Velho (RO) que entre setembro de 2021 e agosto de 2022 receberam o diagnóstico de malária por P. vivax. Essa espécie do parasita é a mais amplamente distribuída no mundo e responde pela maioria dos casos da enfermidade fora da África Subsaariana. No Brasil, 84% das pessoas com malária estão infectadas com P. vivax, em especial em áreas rurais da Amazônia, territórios indígenas e garimpos.

Transmitido pela picada de fêmeas de mosquitos do gênero Anopheles, P. vivax inicialmente invade as células do fígado. Ali, ele se multiplica de forma assexuada gerando milhares de novas cópias, que são liberadas para a corrente sanguínea. No sangue, o protozoário volta a se reproduzir no interior das hemácias, as células que transportam oxigênio, destruindo-as, o que gera episódios de calafrios, febre e suor intensos. De tempos em tempos, formas dormentes alojadas no fígado são reativadas e voltam a provocar os sintomas da doença.

Desde meados dos anos 1990, o tratamento da malária por P. vivax é feito no SUS usando uma combinação de dois antimaláricos: uma dose diária de cloroquina por três dias, para combater os parasitas no sangue, associada a uma de primaquina por ao menos sete dias, para eliminar protozoários adormecidos nas células hepáticas. Crianças, mulheres amamentando e pessoas com baixa atividade de uma enzima que protege as hemácias – a glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) – são tratadas com doses menores de primaquina, administradas por até oito semanas. Nessas pessoas, em especial aquelas com baixa atividade de G6PD (5% da população na Amazônia brasileira), a primaquina pode causar a destruição em massa das hemácias, provocar anemia e até levar a óbito.

O desempenho dessa estratégia é prejudicado pela falta de acompanhamento no uso da medicação, algo ainda mais complicado na Amazônia, onde ocorrem 99% dos casos de malária no Brasil e parte importante da população vive distante das cidades. Sem a supervisão de profissionais da saúde, as pessoas com malária podem interromper o uso da medicação antes da hora.

“O gargalo da terapia com a primaquina é a adesão ao tratamento mais longo”, afirma o infectologista Dhelio Pereira, do Centro de Pesquisas em Medicina Tropical de Rondônia. “Muitas vezes o paciente deixa de tomar esse medicamento depois que os sintomas desaparecem em razão da ação inicial da cloroquina”, explica o pesquisador, coautor do estudo, realizado em colaboração com outras instituições do Brasil e do exterior. O trabalho recebeu apoio do Ministério da Saúde e foi financiado pela organização não governamental Medicines for Malaria Venture (MMV) e pela Fundação Bill e Melinda Gates.

Na tentativa de melhorar a terapia, o ministério propôs em 2021 um novo protocolo no qual a primaquina, nos casos adequados, pode ser substituída por um composto semelhante, a tafenoquina. Ativa por mais tempo no sangue, a tafenoquina pode ser tomada em dose única por pessoas com atividade normal de G6PD – o medicamento deve ser evitado pelas demais porque, assim como ocorre com a primaquina, há risco de destruição das hemácias. Descoberta em 1978 no Instituto de Pesquisa do Exército Walter Reed, nos Estados Unidos, a tafenoquina foi desenvolvida pelas empresas farmacêuticas GlaxoSmithKline e 60° Pharmaceuticals em colaboração com a MMV. Ela é a primeira alternativa à primaquina a surgir em 60 anos e foi incorporada à lista de medicamentos do SUS em junho de 2023, assim como o teste rápido para medir a atividade da G6PD.

Hungry Man (Ian Cheibub e Gualter Pupo) / Medicines for Malaria Ventures Equipamento de teste rápido da atividade da enzima G6PD e comprimidos de tafenoquina (à dir.)Hungry Man (Ian Cheibub e Gualter Pupo) / Medicines for Malaria Ventures

No estudo feito em Manaus e Porto Velho, 3.128 pessoas (56% dos participantes) receberam a terapia tradicional, com primaquina e cloroquina, enquanto 2.152 foram submetidas à estratégia mais recente, em que o primeiro medicamento é substituído pela tafenoquina. Noventa dias após o início do tratamento, 89% das pessoas que tomaram tafenoquina permaneciam livres de sintomas. Essa proporção foi um pouco menor (83,5%) no grupo da primaquina. Aos 180 dias, a porcentagem de participantes que não tinham mais sinais de malária foi praticamente a mesma nos dois grupos: 75,7% no grupo da tafenoquina e 77,3% no da primaquina. O trabalho serviu como avaliação dos tratamentos em situação de vida real e de modelo para a implementação da estratégia no país.

“A tafenoquina aumentou para cerca de 90 dias o tempo que a pessoa fica livre dos sintomas. No tratamento com a primaquina, eles ressurgiam, em média, depois de 60 dias”, afirma o farmacêutico Marcelo Brito, pesquisador da FMT-HVD e primeiro autor do trabalho. Chamado de recorrência, o reaparecimento dos sintomas pode ser consequência de uma nova infecção, da reativação dos parasitas dormentes no fígado ou da multiplicação dos resistentes aos remédios.

Esse período extra que a pessoa permanece sem os sintomas, segundo os pesquisadores, é importante para ajudar na recuperação. O retardamento na recorrência é clinicamente relevante porque os pacientes com P. vivax sofrem também com anemia, que se aprofunda a cada episódio da malária.

Na avaliação do farmacêutico José Luiz Vieira, da Universidade Federal do Pará (UFPA), o novo antimalárico é bem-vindo. Ele, no entanto, afirma que há questões a serem consideradas antes que a tafenoquina seja incluída em uma nova versão do Guia de Tratamento da Malária no Brasil.

“A tafenoquina deve facilitar a adesão dos pacientes, mas a efetividade é muito parecida com a da droga já disponível, que é de menor custo. Antes de adotá-la seria preciso avaliar o custo-benefício, que deve prever o treinamento dos profissionais para realizar os testes de G6PD nas unidades de tratamento da doença na região”, sugere Vieira, que não participou do estudo.

Segundo o Ministério da Saúde, para uma pessoa de 70 quilos e taxa satisfatória de G6PD, o ciclo de tratamento com cloroquina e tafenoquina, incluindo o teste para medir a atividade da enzima, custa pouco mais de R$ 46. A terapia com cloroquina e sete dias de primaquina mais o teste saem por cerca de R$ 26. Em 15 de março, o território dos Yanomami em Roraima foi a primeira região a receber a tafenoquina pelo SUS. O ministério relatou também já ter iniciado o treinamento dos profissionais da saúde locais para implementar o novo protocolo de tratamento, que deve constar de uma edição atualizada do guia a ser lançada no segundo semestre.

A reportagem acima foi publicada com o título “Alternativa contra a malária” na edição impressa nº 339, de maio de 2024.

Artigo científico
BRITTO, M. et al. Operational effectiveness of tafenoquine and primaquine for the prevention of Plasmodium vivax recurrence in Brazil: A retrospective observational study. The Lancet Infectious Diseases. 4 de mar. 2024.

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